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―E talvez seja esta a marca de todas as religiões: o esforço para pensar a realidade toda a partir da exigência de que a vida faça sentido‖. (Rubem Alves)

A partir do momento em que a morte é percebida como fator irreversível e inevitável da vida, inicia-se o processo de reconhecimento da vulnerabilidade humana diante da presença de um tempo futuro, das imposições naturais e da transformação de um estado em outro. Encarada como impura e ameaçadora, a mortalidade relaciona-se ao medo primitivo do homem e, por isso, a sepultura indica o primeiro sinal de consciência primária, fazendo da ―morte grande propulsora da humanidade‖ (CONTRERA, 2002: p.118).

A consciência angustiante da morte promove a invenção da cultura. A cultura é uma invenção que consegue transformar o horror da morte na força motriz da vida que por meio do despropósito da morte constrói a expressividade da vida como sugere o sociólogo francês Edgard Morin:

―A consciência surge a partir da pré-história do sapiens, como testemunha daquilo a que quisemos chamar precisamente a consciência da morte (...). Existe uma ansiedade animal ligada à vigilância, e que desperta ao mínimo sinal de perigo. Ao que parece, a vigilância é menor no homem do que nos primatas (Gastaut) e a ansiedade propriamente humana está menos ligada ao perigo imediato do que à emergência da consciência‖. (MORIN, 1988: p.135)

Pelo artifício da complexidade humana, a estrutura psíquica do homem intercala a função das imagens e os códigos de comunicação à consciência da mortalidade e ao medo primitivo da morte. No caminho à totalidade, a participação mística, desenvolvida a partir da magia do mito e do ritual de dimensão coletiva, foi

criada pelo homem como forma de digerir sua angústia, impotência e ansiedade diante dos mistérios da existência. Essa conscientização de perda de unidade da psique (consciente/inconsciente) envolve uma questão social e cultural que fundamenta toda a história da humanidade conforme sugere Norval Baitello:

"A percepção humana tende a polarizar os fatos da natureza, culturalizando-os. Assim, dois momentos distintos de uma seqüência de eventos bioquímicos são classificados pelos mecanismos semióticos da cultura como pólos opostos nascimento e morte. A própria cultura elabora mecanismos de superação para estas dualidades, criando mitos, rituais mágicos e similares". (BAITELLO JR., 1997: p.72)

O mito, a linguagem da experiência humana diante do mistério da vida, pode ser apenas expresso pelo uso dos símbolos. Os símbolos, por sua vez, representam as vias de comunicação que se estabelecem por meio de configurações que lhe proporcionam sentido. No caso das religiões primitivas, os símbolos englobam o universo das representações da tribo, refletindo as inter-relações Homem/Natureza, humano/sobrenatural de acordo com a capacidade de entendimento coletivo.

A vida de um organismo pluricelular sempre com a morte. O fato de que a morte é mais forte que a vida constitui uma assimetria. Apenas com a criação da 2ª realidade, ou seja, de que existe uma forma de vida qualquer após a morte. Somente em alguns casos podemos dizer de sobrevivência na 1ª realidade: quando na biologia se afirma, por exemplo, que não são os indivíduos, mas os gens que vencem a morte (BYSTRINA).24

A mídia surge na passagem para o século XX com a função de mediadora entre o acontecimento puro e a população. Com o progresso tecnológico, assume também a responsabilidade de agente vinculador da sociedade. Porém, diante desse contexto em foco nasce a indagação e o questionamento ―que papel [a mídia] está fazendo que não liga ninguém a coisa alguma?‖ (CONTRERA, 2002: p.114).

a escrita impressa, a palavra impressa mecanicamente em papel e que vai possibilitar o desenvolvimento de formar escritas rápidas como os jornais e as revistas. A escrita consegue aquilo que o homem em sua existência física jamais logrou: sagrar-se vencedor perante a morte. E aquilo que na natureza não é possível, é passível

24 BYSTRINA, Ivan. Tópicos da semiótica da cultura. São Paulo: Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia, PUC-SP, 1995. Disponível em http://cisc.org.br/html/.

de criação artificial pelo mecanismo semiótico da cultura". (BAITELLO JR., 1997: p.69)

A rejeição humana da mortalidade exige um constante exercício de esquecimento. Na modernidade, uma outra forma de vida é montada sob a materialidade dessa condição. A mídia, palco estrutural de construção da realidade social, traz uma proposta de superação: uma nova noção de tempo. A eternização é uma estratégia de fuga da mortalidade, que se torna possível graças à sua escolha pelo espaço virtual. A troca do mundo físico (concreto) pela virtualidade (fantasia) inverte a codificação do real, que passa a ser construído sob as bases subjetivas da segunda realidade25 do humano.

o homem contemporâneo recorre à comunicação virtual, inaugurando um tempo virtual infinito que foge às leis da mortalidade, satisfazendo seu instinto/ pulsão de poder e de controle do egóico. Na carne, morremos; na imagem somos, instantaneamente, ilusoriamente eternos. Virtualizar o corpo foi uma forma simbólica encontrada por nosso tempo para apaziguar o medo da morte. Só que, ao abrirmos mão da morte, abrimos também mão da vida, já que elas são indissociáveis.‖ (CONTRERA, 2002: p.54)

A mídia contemporânea trabalha para a constituição de um imaginário cultural e na criação de uma organização social, e representa o espaço concreto para a expressão das ações e transações que formam o social. Com a perda do território físico do ritual primitivo, que ajudava a digerir a ansiedade humana, a modernidade redireciona para a mídia a sua função apaziguadora como território de legitimação das bases simbólicas. Afinal, ―os instrumentos não nos advém da penumbra misteriosa, não são venturosos. Pelo contrário, estão aqui, diante da nossa mão para servir-nos‖ (FLUSSER, 2002: p.92), driblando o vazio existencial e a negação da mortalidade humana. Acerca disso, reflete Norval Baitello:

25 A eficácia simbólica das forças criativas do macrosistema comunicativo faz da Cultura fator de autoconsciência, responsável pela atuação do homem no mundo humano; e essa segurança de sobrevivência em um território material, sob circunstâncias físico-biológicas, foi chamada por Ivan Bystrina de primeira realidade. O conceito de segunda realidade é usado para designar as criações imagéticas da cultura humana operadas por códigos simbólicos. Bystrina considera que as raízes da cultura estão diagnosticadas em quatro momentos específicos: no sonho, no jogo, nas variantes psicopatológicas e nos estados alterados da consciência. Conforme BYSTRINA, Ivan. Tópicos da semiótica da cultura. São Paulo: Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia, PUC- SP, 1995. Disponível em http://cisc.org.br/html/.

'breve é a vida', o homem, o ser biólogo, que inevitavelmente é levado um dia pela morte, o mais implacável componente do percurso vital; 'longa é a arte', aquela que, criada pelo mortal, tem a finalidade de vencer a morte, de sobreviver aos tempos, e com isto, imortalizar o seu criador. E o consegue. (BAITELLO JR., 1997: p.20)

Morrer é o fim inexorável para todos. Se a vida é como um filme cujo final conhecemos antes mesmo de iniciada a sessão, então é a história é que vale a pena. O sentido da morte é atribuir sentido à vida.