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A constituição de uma ordem jurídica local foi tema também dos estudos de Geertz ([1983] 1997), no livro Saber Local, onde ele revela a importância do direito, tendo como ponto central a relação entre a lei e o fato, como um sistema de símbolos e significados. Para Merry (1988, p. 886), Geertz propõe um foco sobre a estrutura do significado, especialmente sobre os símbolos e os sistemas de símbolos, através dos quais os meios de tais estruturas são formados, comunicados e impostos na análise comparativa da lei, assim como na análise comparativa do mito, ritual, ideologia, arte ou sistemas de classificação. Portanto, para Geertz, a lei está aqui, lá, ou em qualquer lugar, é parte de uma maneira distintiva da imaginação do real.

Geertz constrói o que chama de sensibilidade jurídica, a qual é o sentimento de justiça que, tal como sensibilidade, varia de sociedade para sociedade. Suas interpretações surgem a partir da comparação de pesquisas realizadas em três culturas: a islâmica, a indiana e a malasiana. Usando dados etnográficos, o autor demonstra como um homem em Bali pode perder a própria “raça humana” por descumprir normas jurídicas locais, como, por exemplo, se negar a fazer parte do conselho da aldeia, cessando, com isso, de usufruir o terreno de sua casa e tornando-se um nômade. As pessoas da comunidade negam-lhe o direito de entrar no templo da aldeia, distanciando-o

dos deuses. O aldeão perde também todo seu universo social, pois ninguém poderá dirigir-lhe a palavra sob pena de ser igualmente penalizado.

O relato de Geertz sobre a condição do homem submetido às sanções do grupo é longo e evidencia riqueza etnográfica e analítica, orientando a percepção para um conjunto jurídico complexo de coação simbólica agindo sobre o infrator. Esse aspecto do corpo jurídico, em uma pequena localidade em Báli, na Indonésia, é dotado da mesma força de qualquer Estado moderno e seus órgãos de poder e repressão.

O conceito de sensibilidade jurídica de Geertz revela em si pontos importantes para qualquer análise sobre as práticas jurídicas locais. O primeiro deles é a palavra sensibilidade como parte do conceito. Para a Filosofia, a palavra designa a faculdade, que é fonte de conhecimento imediato e intuitivo, a qual se manifesta nas sensações propriamente ditas; possui um caráter ligando-a diretamente ao vivido, às formas nas quais pessoas se relacionam, percebem e constroem sua vida material e simbólica. A imediatibilidade do que sugere o conceito de sensibilidade, para Geertz, tem seu delimitador, ao ser acrescida à palavra “jurídica”, como forma de marcar a presença de normas, códigos e leis constituídas nas instâncias das relações cotidianas próprias a cada grupo social. Assim, o conceito de sensibilidade jurídica visa a resgatar o caráter criativo das relações sociais e o delimita por um conjunto normativo de princípios.

Geertz aponta para um universo complexo com o conceito de sensibilidade jurídica, sobretudo, quando acrescenta a noção de local/lugar, pois ele não faz referência a uma sensibilidade jurídica universal e abstrata, positivista, mas a uma localizada no tempo e espaço. Esse aspecto não é reclamado diretamente por Geertz (1997), mas mais bem evidenciado em seu livro Negara: O Estado teatro no século XIX (GEERTZ, 1980, 69 p.), quando define lugar ao se referir a Báli, nos seguintes termos:

O lugar, ou banjar, era muito mais do que uma simples unidade de residência: era uma corporação pública duradoura regulando uma área da vida da comunidade muito vasta, mas bem demarcada. Onde tinha jurisdição, era supremo até o ponto do absolutismo. [...] o propósito do lugar enquanto corpo político era cívico no sentido mais alto, aprovação de muitos requisitos legais, materiais e morais para uma saudável vida em comum.

O conceito de local é esclarecedor para demarcar um mundo social definido com regras e um conjunto de práticas jurídicas nas quais muitas relações estão prescritas. O significado do lugar para Geertz nos mostra que este conceito assume o sentido estrito de regulamentação da vida social. Isto soma à compreensão do conceito antropológico de território, ao indicar a existência de relações sociais e simbólicas marcadas a partir de regras locais de direito construídas pelo grupo. Com isso Geertz marca o quão forte podem ser as leis locais, e se afasta da perspectiva dos autores funcionalistas e estrutural-funcionalistas, os quais percebem a ordem jurídica basicamente como formas de resolução de conflitos.

Deste modo, Geertz anuncia de forma clara seu afastamento de perspectiva de Max Gluckman, negando a possibilidade de sua vinculação à Antropologia do Direito, que possui como princípio “problem-solver” (MOORE, 2001, p. 95-116). Distanciando-se de Gluckman, Geertz constrói sua vinculação à corrente teórica que percebe o direito como “law as culture”, aventurando-se a entender a lei como parte de um sistema cultural. Assim, ele reativa, de certa maneira, o debate entre Max Gluckman ([1969]1997) e Bohannan ([1957]1997) sobre os princípios do direito em cada sociedade. Para Gluckman, pois, seria possível entender as leis dos povos primitivos tomando como base o passado histórico do direito na Europa. Por outro lado, Bohannan acreditava que a tradução dos sistemas de leis da Europa para uma outra sociedade era uma verdadeira distorção. As discussões entre os dois autores os colocam em campos distintos na compreensão do direito. Geertz se aproxima da discussão de Bohannan por acreditar na impossibilidade de tradução dos códigos jurídicos, das sensibilidades jurídicas de uma sociedade para outra. Ele acredita que, no máximo, podem ser feitas leituras dos significados dessas leis em seus contextos e, com isso, encontrar possibilidades comparativas entre as sociedades.

Portanto, pelas discussões entre os vários autores, podemos imaginar que os elementos que envolvem a construção do direito são cercados de complexidades, evidenciando uma ordem cultural prenhe de significados simbólicos, aspecto que está presente no conceito de sensibilidade jurídica de Geertz, quando ressalta:

o que é relevante mais imediatamente, no entanto, é que temos aqui uma série de eventos, regulamentos, políticas, costumes, crenças, sentimentos, símbolos, procedimentos e conceitos metafísicos agrupados de uma maneira tão estranha e engenhosa que faz qualquer contraste menos sofisticado entre aquilo que “é” que “dever ser” pareça primitivo. Não podemos negar uma sensibilidade jurídica poderosa: uma sensibilidade que contém forma, personalidade, perspicácia e - mesmo sem ajuda de faculdades de direito, juristas, reafirmações, periódicas, ou decisões que servem como ponto de referência - um conhecimento profundo, bem desenvolvido, e até obstinado de si mesma.

Geertz adota, na análise do direito, a noção de sensibilidade jurídica. Ele demonstra como tal aspecto constrói a realidade, ao invés de simplesmente refleti-la, percebendo também a parcialidade do campo jurídico e os sentidos que estão sendo evocados nesse campo. Dessa maneira, reafirma a interpretação dos atores sociais em suas inserções sociais particulares, locais. Este ponto é a chave da sua análise etnográfica.

O que podemos apreender no debate acima é a tentativa de traduzir a constituição de ethos, de visão de mundo, de caráter ordenador das relações e do espaço social, para expor a noção de direito local ou de uma noção de sensibilidade jurídica, muitas vezes prescrito, mas não livre de mudanças. Negar uma lógica cultural e política a este fato é negar a capacidade de certos grupos criarem as bases que formulam o ordenamento de seu cotidiano. Com isso, Geertz revela que o sistema jurídico local é uma forma de percepção geral do mundo, é uma maneira específica de imaginar a realidade.

O conceito de sensibilidade jurídica de Geertz, segundo Schuch (2003, p. 165), pode elucidar questões importantes para o campo jurídico ao evidenciar que:

As sensibilidades jurídicas, os sentidos de justiça, variam não apenas em graus de definição, mas também no poder que exercem sobre o processo da vida social frente a outras formas de pensar e sentir, o que introduz uma dimensão importante na análise em torno do campo jurídico que é a de, assim como a etnografia, só funcionar à luz do saber local, através do entendimento das estruturas de significado e dos sentidos evocados e compartilhados por indivíduos e grupos sociais ao longo da vida, a partir de suas inserções sociais particulares.

Compreender esse universo de relações é o que nos leva a investigar direito e as práticas jurídicas numa comunidade quilombola, além da justa crença que “nossos interesses (dos antropólogos) de conhecimento dizem respeito à compreensão das teorias, do conhecimento, do pensamento e das práticas de outras culturas, antes que à defesa de uma noção particular de racionalidade, de humanidade e de ciência ocidental” (OVERING APUD SANTILLI, 2001, p. 128). De outro modo, evidenciar a constituição das práticas jurídicas e do direito numa comunidade negra requer a discussão apontada por Geertz sobre a ordem simbólica do direito.

A discussão sobre a ordem simbólica do direito não se coloca somente no campo da Antropologia. Outros campos do conhecimento apresentam posicionamentos quanto a este aspecto e suas implicações na vida social. Essa forma de ver o direito, porém, encontra seus opositores na História da Filosofia, por exemplo, desde Emmanuel von Kant, como enfatiza Agamben (2003), que percebem a lei e o direito como a “vigência sem significado”.

Outro ponto significativo nesse cenário, para a Antropologia, é “que não se precisa do direito para se criar o direito” (AGAMBEN, 2003). Desse modo, existe uma compreensão de que lei e direito são constituintes das relações sociais cotidianas como ponto significativo. Essa perspectiva também é contemplada por Walter Benjamim, quando ele percebe a consumação da lei indiscernível da vida que regula. Essas duas perspectivas, da lei e do direito, como vazios de significados, e a do direito como regulador da vida, são significativas para a compreensão do mundo atual. Uma investigação que

vincule o relacionamento entre vida e direito em nosso tempo deve confrontar- se com as perspectivas que Kant e Benjamim representam (AGAMBEN, 2003).