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Esse conjunto teórico e a compreensão a respeito da diversidade social relacionada à ordem do direito, as práticas jurídicas de vários grupos sociais, levam-nos às idéias presentes nas discussões do pluralismo jurídico. A apreensão desse conceito é elemento central para a compreensão do universo social de vários grupos, muitas vezes construídos nas bordas dos estados nacionais, a exemplo das comunidades quilombolas no Brasil.

O pluralismo jurídico parte da compreensão sociológica de que o direito é atributo de um campo social e não da ordem legal estatal. A teoria descritiva do pluralismo jurídico trata com fatos sociais num campo específico, onde direitos de várias procedências podem estar operando. Assim, ele existe quando, num campo social, há mais de uma fonte de ‘direito’, mais de uma ‘ordem legal’; é, portanto, nessas condições que se poderá afirmar que o campo social exibe o pluralismo jurídico (GRIFFITS, 1986).

A perspectiva do pluralismo jurídico surgiu ou se consolidou nos espaços acadêmicos internacionais há aproximadamente três décadas. Ela surgiu como posicionamento contrário à filosofia européia – na passagem do século XIX para o XX – e ao centralismo do Estado. Antes, acreditava-se ser somente o Estado capaz de produzir direitos. Pesquisadores, a partir de perspectiva teórica do pluralismo jurídico, empreenderam investigações em muitos espaços sociais, possibilitando a percepção de que normas legais eram produzidas, tanto nos pequenos bairros urbanos, nas sociedades camponesas, nas indígenas, nas populações tradicionais, quanto no comércio internacional, no qual os Estados nacionais possuem pouca ingerência (SANTOS, 2001). Para Randeira (2003)

“a idéia de pluralismo jurídico, central na antropologia jurídica dos anos 60 e 70, questiona as assunções básicas das teorias políticas e da jurisprudência liberais, especialmente no que diz respeito à congruência entre o território, o Estado e o direito. Ao trazermos para primeiro plano a coexistência de uma pluralidade de ordenamentos jurídicos no seio de uma unidade política única, particularmente dos direitos consuetudinários das comunidades e dos direitos religiosos a par com o direito da metrópole e com o direito criado especificamente nas e para as colônias nas sociedades (pós) coloniais, o pluralismo jurídico questiona a centralidade do direito elaborado pelo Estado e a sua exigência de exclusividade no ordenamento normativo da vida social”.

O conceito de pluralismo jurídico conota a moderna legalidade da lei costumeira e tradicional. Esta perspectiva analítica tem permanecido atenta ao papel do direito do Estado, na plena dinâmica da produção da cultura e das experiências de grupos sociais. No Brasil, os estudos de Arruti (2006), Chagas (2006), Rios (2005) estão, de certa forma, nessa esfera analítica. Para o pluralismo jurídico, o direito do Estado é somente uma modalidade dentre tantas outras (GEENHOUSE, 1988, p. 63-4). Tal perspectiva critica a ideologia do modelo do centralismo legal do Estado – legal centralist of model (GRIFFITHIS, 1998 GRIFFITHS, 1986), no qual este é o único a criar direitos na sociedade moderna. Muitos antropólogos no Brasil e no exterior têm feito críticas ao Estado com base nessa matriz interpretativa. Almeida (2005, p. 15) situa o surgimento dos debates sobre pluralismo jurídico no Brasil, ao salientar:

que as teorias do pluralismo jurídico, para as quais o direito produzido pelo estado não é único, ganha força, no caso brasileiro, com a constituição de 1988. Juntamente com elas e com as críticas ao positivismo, que historicamente confundiu as ‘chamadas minorias’ dentro da noção de povo, também foi contemplado com o direito à diferença, enunciando o reconhecimento de direitos étnicos.

Chagas (2006, p. 12-3) assume o debate do pluralismo jurídico na investigação sobre a Comunidade quilombola de Morro Alto, localizada na região sul do Brasil, com o intuito de investigar se a “ênfase ou intensificação sobre os modos ‘possíveis’ de recordar o passado concorrem, na comunidade quilombola, para dar significado ao protocolo legal do Artigo 68” da Constituição Brasileira. Tal artigo confere o direito aos territórios ocupados pelas comunidades quilombolas.

A autora segue de perto os caminhos traçados por Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português, nas discussões sobre o pluralismo jurídico, ao destacar como “fundamental, como condição teórica das disciplinas de sociologia jurídica e da antropologia do direito, a possibilidade de articulação entre o macro e o micro, através do estudo das complexas inter-relações em que atualmente opera o direito”. Para ela, torna-se problemático trabalhar unicamente com a perspectiva de caracterizar o direito local, costumeiro, pois essas formulações locais estão situadas num quadro maior de hibridação17 jurídica, presente em vários espaços sociais.

O estudo de Chagas (2006) sobre a Comunidade de Morro Alto é um exemplo do caminho a seguir nas discussões do multiculturalismo e do pluralismo jurídico, para apreender as bases sobre as quais estão alicerçadas as relações entre o Estado e as comunidades quilombolas. É preciso, portanto, compreender tais grupos numa perspectiva do conjunto de suas práticas jurídicas locais, possibilitando com isso discutir aspectos ligados às suas formas de organização social. Isso permite delimitar um campo de discussão no qual possamos entender quais são os elementos formadores da ordem

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Santos (2003, nota de pé de página 16, p.61) define hibridação jurídica como situação jurídica na qual se misturam elementos de diferentes ordens jurídicas (por exemplo, direito oficial, direito costumeiro e direito religioso). De tais misturas nascem novas entidades jurídicas, entidades híbridas. A sua presença revela-se privilegiadamente na resolução de litígios.

social interna e os aspectos ativados para se manterem enquanto grupo social e no território.

Chagas (2006) compreende, portanto, que atualmente não é possível analisar as relações sociais sem considerar as inter-relações entre campos distintos da vida social, sendo o direito um deles. Santos (2003, p.49) contribui com as discussões de Chagas (idem), ao considerar que:

Nas sociedades atuais a pluralidade de ordens jurídicas em presença é maior e são muito mais densas as articulações entre elas. Paradoxalmente, se por um lado esta maior densidade de relação torna mais provável a ocorrência de conflitos e tensões entre as diferentes ordens jurídicas, por outro se faz que estejam mais abertas e permeáveis às influências mútuas. As fronteiras entre as diferentes ordens jurídicas tornam-se porosas e a identidade de cada uma destas perde a sua ‘pureza’ e a sua ‘autonomia’, passando a ser determinada apenas pela constelação jurídica que faz parte. Vivemos, pois, num mundo de hibridação jurídica, uma condição a que não escapa o próprio direito nacional estatal (SANTOS, 2003, 49).

Portanto, Chagas considera fundamental o conceito de interlegalidade, pela possibilidade que ele oferece de percebermos a inter-relação entre campos jurídicos distintos. Dessa maneira, ela marca o trilho sobre o qual seguirá seu pensamento para compreender uma situação cara ao debate acadêmico, jurídico e político no Brasil: a relação entre a ordem jurídica quilombola e a do Estado. O trabalho dela agrega elementos novos ao campo etnográfico e às construções teóricas com base no pluralismo jurídico. Chagas então esclarece o conceito de interlegalidade:

A multiplicidade dos ‘estratos’ jurídicos e das combinações entre os que caracterizam o mundo da vida. Consoante as situações e os contextos, os cidadãos e os grupos sociais organizam as suas experiências segundo o direito estatal oficial, o direito consuetudinário, o direito comunitário, local, ou direito global, e, na maioria dos casos, segundo complexas combinações entre estas diferentes ordens jurídicas(CHAGAS, 2006, p. 23).

Nessa perspectiva, o desafio da pesquisa de Chagas é pensar a sociedade brasileira como multicultural e conformada por pluralismos jurídicos, assim como na perspectiva de outros autores, como Rios (2004), Shiraishi Neto (2004) Leite (2007, 2003), Arruti (2006), Chagas (2006), Almeida (2006).

Para fins deste trabalho de tese, entende-se o conceito de sociedade multicultural na esteira de Hall (2003, p. 52), quando afirma ser este “termo qualificativo, por descrever características sociais e problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade original”.

Santos (2003, p. 33) reafirma o posicionamento de Hall (2003), ao realçar que “as várias versões do (...) multiculturalismo baseiam-se no reconhecimento da diferença e do direito à diferença e da coexistência ou construção de uma vida em comum além das diferenças de vários tipos”. Essa natureza de entendimento alimenta os debates sobre as diferenças entre os grupos sociais e ocasiona novas definições de direitos, de identidade, de justiça e cidadania no mundo atual, e leva grupos sociais diferenciados à luta pelo reconhecimento. Para Taylor (1994, p. 45-94) “a democracia introduziu a política do reconhecimento igualitário, que tem assumido várias formas ao longo dos anos, e que regressou agora sob a forma de exigências de um estatuto igual para as diversas culturas e para os sexos”. Isso porque a “defesa da diferença cultural, da identidade coletiva, da autonomia e da autodeterminação pode, assim, assumir a forma de lutas pela igualdade de acesso a direitos ou a recurso, pelo reconhecimento e exercício efetivo de direitos de cidadania ou pela exigência de justiça” (SANTOS, 2003, p. 43).

1.4 – Ordenamento jurídico local e o reconhecimento das