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3.4 Trocar para não acumular: reciprocidade e acesso à terra

O trabalho e a compra de terras seriam os aspectos que levariam à construção de propriedade privada em níveis desiguais. Tal aspecto, conseqüentemente, esfacelaria um modo de vida a qual se pensa fornecer o justo acesso a todos do grupo. Mas como, então, temos ainda várias comunidades que mantêm uma forma de organização social na qual os princípios da propriedade estão ditos como de um grupo familiar e, de mesmo

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Para Locke (1988), o uso da moeda é o responsável pela criação das desigualdades sociais, possibilitadas pelo acúmulo decorrente de transações onde ela é o principalmente elemento de troca. Este aspecto assume importância na análise deste autor; todavia, aqui não considero este aspecto, porque a venda de terras na Comunidade é quase inexistente, e quando ocorre será geralmente entre parentes. Nossa perspectiva tomará somente o trabalho como formador da propriedade, por ser este elemento constitutivo maior do pensamento do grupo quilombola da ilha do Marajó.

modo, ainda a todos pertence? Como entender este processo que se coloca como importante para definir a lógica interna de um grupo que possui as características acima descritas na apropriação, e uso dos recursos naturais disponíveis de forma comum a um grupo de pessoas?

Em meus vários diálogos, evidenciei que a propriedade, mesmo que se diga fazer parte de um patrimônio familiar, pode ser transferida a outro grupo familiar com certa facilidade, tendo como base o sistema de troca no qual os parceiros estão envolvidos. Os grupos familiares que detêm o direito sobre determinada área, nunca negam ceder o uso da terra aos outros quando solicitado, porque negar implica no rompimento de uma rede de reciprocidade. Assim, quando se solicita uma área de terra de outro grupo familiar, o solicitante já fez uma prévia avaliação sobre a possibilidade de ter seu pedido aceito, pois conhece plenamente a regra do jogo. Jamais pediria a concessão para uso de uma área de terra se não estivesse consciente sobre os laços que os unem e quais as implicações da recusa para a relação.

Diante do universo conflitivo constituído entre as várias unidades sociais, aspecto tratado anteriormente, cada uma delas sabe com precisão quem são seus aliados e com quem tem relações conflituosas. Sabe também com quem pode contar para realizar tarefas nas roças, na construção ou reforma da casa, para tirar madeira no mato, para servir de parceiro na atividade de pesca, caça, ou para qualquer outra atividade. Sabe com quem estabelecer laços de reciprocidade e as implicações de mantê-las. A recusa de uma solicitação para concessão de uso de uma área de terra, sem justificativa, é matriz de tensão.

Um homem não é absolutamente inocente a ponto de não saber para quem fará a solicitação de uma área de terra da qual não tem direito, por outro já possuir como sua. Ele somente fará o pedido a quem realmente tem como parceiro de troca, tendo, dessa forma, quase certeza de que seu companheiro não poderá recusar, se não por um bom motivo: a necessidade da terra para seu cultivo próprio ou pelo pedido antecipado de outra pessoa a quem já concedeu autorização para o cultivo. Para negar a solicitação, jamais poderá mostrar motivações egoístas em manter a área para si, já que o outro necessita dela naquele momento.

Pode, porém, um homem incorrer em erros avaliativos quanto à possibilidade das pessoas que ele acreditava fazerem parte de sua rede de troca, de reciprocidade, e estes não pensarem da mesma forma que ele. Esse é um erro possível.

Dona Conceição deixou clara essa situação quando, certo dia, se levantou e iniciou o preparo de alimento para o trabalho em sua roça. Ela queria, naquele dia, roçar o mato para iniciar o plantio de mandioca, macaxeira, milho, arroz, logo depois da queimada. Para tanto, ela organizou um “ajuntamento”. O ajuntamento, “mutirão” ou “convidado”, é o trabalho em conjunto numa roça de parentes ou amigos. Parte das atividades é realizada nesse sistema. O ajuntamento envolve o convite, por parte do organizador, de pessoas que estão na rede de reciprocidade. Aos presentes se é obrigado a fornecer comida e, se possível, alguma cachaça. Justo aquele dia amanheceu cinzento, indicativo de chuva. As pessoas a quem ela convidou não apareceram. Ela lamentou, dentre outras coisas, o gasto extra. Chegara a mandar um neto à cidade de Salvaterra, comprar alimentos e bebidas para aqueles que viessem.

Dona Conceição mostrou seu aparente desencanto com a negativa de pessoas que ela acreditava jamais recusariam uma solicitação sua. Ela lançou o convite e tinha como certa a presença de alguns. Ela disse-me, contando sobre o passado, que um convite para um ajuntamento era quase uma intimação ao comparecimento, não somente por ter a possibilidade de receber seu trabalho de volta pago com outro dia de trabalho, mas pela consolidação das relações de parentesco ou amizade.

Nessa atividade, na maioria das vezes, não se paga em dinheiro às pessoas pela participação no trabalho, apenas fica-se em dívida e, quando elas necessitarem, ter-se-á que retribuir o dia de trabalho recebido. Caso não se possa comparecer, mandar-se-á um parente ou mesmo se pagará a diária de outra pessoa para que a substitua, a represente. Esta prática ainda é recorrente na Comunidade de Bairro Alto, apesar de ser menos intensa que no passado. Atualmente, algumas pessoas somente vão a um convidado quando fazem parte da mesma unidade social, ou se há laços fortes de parentesco ou

amizade ligando os sujeitos de unidades sociais distintas. Caso contrário, somente comparecerão mediante o pagamento de uma diária de trabalho.

Muitas das pessoas com quem conversei relatam que hoje não se atende mais aos convidados como se fazia no passado. Elas vão, mas se os laços que os une ao solicitante forem fortes a ponto da recusa representar uma perda significativa em seu universo de reciprocidade. A obrigação inegável de se fazer presente não existe mais.

Outro exemplo tem caráter contrário ao apresentado anteriormente. Um homem de 33 anos precisava construir uma roça e a área por ele escolhida pertencia de direito a outro, com quem realizava pesca, caça, dividindo dias de trabalho na roça e, além disso, eram compadres. Então, a solicitação da área de terra, ao ser feita, não poderia ser negada, com a possibilidade de abalar as relações entre os dois. A recusa somente seria possível se o proprietário da terra realmente já a tivesse selecionado para cultivo. O solicitante, porém, já sabia qual área seu compadre tinha escolhido para sua roça naquele ano. Então a solicitou, e, como ele já tinha possivelmente previsto, não houve de nenhuma forma a recusa à concessão. Ainda foi ajudado na construção da roça com a promessa de que também auxiliasse na construção da do outro.

Muitos processos de construção se dão sob o signo da ajuda mútua, pois esse é o maior elemento que evita a possibilidade da construção da propriedade privada com produção voltada para atender às demandas do mercado. O princípio da reciprocidade que se estabelece entre os vários grupos familiares se estende como tentáculos que a todos envolvem. Ter várias pessoas no circuito de reciprocidade é não estar solitário, é cumprir o próprio princípio da vida social ao estabelecer relações. Isso significa não se afastar dos circuitos de relações que permitem inúmeras atividades em comum. Como as roças são em geral pequenas, um homem é capaz de construí-las sem a ajuda de outrem, não perdendo assim parte significativa da produtividade. Mas não é somente a produtividade que importa, e sim as relações que são possibilitadas pela construção da roça, aspecto que reúne várias pessoas no trabalho. Não é simplesmente a produtividade que está em jogo, é, como

ressalta um informante, não estar só. “Se não a gente acaba trabalhando só. Roçando só, ficando praticamente só”.

Nós estamos fazendo um pedaço de roça para mim, para o Carlos e outro para o Rondon. Nós roçamos juntos no ano passado e no retrasado também. Nós roçamos e vamos deixando divisas entre as roças. Por exemplo, roça do Carlos, chega uma certa altura, cortamos um pau e colocamos no meio. Daí, quando vamos limpar as roças para plantar, sabemos a divisa de cada uma. As roças estão juntas, mas todas separadas. A roça do Rondon é a maior. Mas quando eu quiser uma roça maior, ele vai me ajudar. Nós trabalhamos todos juntos. Eu vou roçando para um, vou roçando pra outro e assim ganho dias de trabalho na minha roça. Se não, eu acabo trabalhando sozinho. Aí fica atrasado tudo. Aí eu trabalho com eles. (Aldo, 26 anos).

Descrevi anteriormente que um homem, ao imprimir sua marca numa área de terra, torna aquela área sua propriedade. Este aspecto, todavia, não chega a se transformar numa propriedade privada de caráter definitivo. É categórica desde que exista uma memória social sobre o espaço, aspecto que será ultrapassado com o tempo. Enquanto a terra for reivindicada como de alguém, será respeitada, mas a terra muitas vezes atenderá os imperativos da rede de reciprocidade na qual seu proprietário está inserido. Então, deverá cedê-la em nome de seus laços de troca. Neste caso, a troca parece ser mais importante que a terra. Entretanto, ambas são fontes de manutenção da vida.

Uma pessoa, quando pede autorização para usar uma área de terra que acredita já possuir dono, espera, de certa maneira, alcançar seu desejo, porque tem uma expectativa concreta diante do conjunto das regras sociais que liga solicitante e solicitado, pois a recusa abalaria a relação de ambos. De certa maneira, todos conhecem o jogo do qual fazem parte, são cientes das regras às quais se vinculam. Ninguém fará um pedido o outro com o qual sabe não possuir laços de reciprocidade, pela provável recusa que receberá, pois jamais o solicitado abriria mão de um direito à terra, a fazer troca em seu favor. A terra possui grande valor, como fonte de produtos para troca. Dessa maneira, não é cedendo-a que se inclui uma pessoa entre aqueles com quem se troca. São outros produtos que servem como início de uma relação e a alimentam, para evoluir ao produto máximo de troca, a terra.

Por conseguinte, esse conjunto de regras alicerçadas na reciprocidade constitui a mais forte maneira de se evitar a formação da propriedade privada. Mesmo que, nominalmente, se tenha uma área e dela alguém se possa dizer dono, a pessoa nunca deixará de abrir mão dessa propriedade em favor de seus laços de reciprocidade. Isso indicaria, dentre outras coisas, um desejo egoísta de acúmulo de terra para si, aspecto reprovado por todos, mediante a necessidade de outro alguém fazer sua roça para a manutenção familiar.

Os laços de reciprocidade como uma das bases das relações sociais, tal como foi possível descrever anteriormente, têm recebido contribuições de muitos autores, que de perto seguem os fundamentos de Marcel Mauss. Autores como Claude Lévi-Strauss (2003), Clastres (2003), Godbout (1999), Caillé (2002), Godelier (2001), brasileiros e estrangeiros, têm mostrado a eficiência de pensar a reciprocidade como um dos fundamentos da sociedade. Assim, acredito que, quanto a esse aspecto, a formação de um conjunto sólido de relações sociais fundamenta-se a partir do princípio da reciprocidade na Comunidade de Bairro Alto. E a reciprocidade é o maior imperativo para a manutenção da ordem de uso comum do território quilombola, um aspecto que impossibilita que o homem atenda, muitas vezes, seu desejo egoísta de manter para si uma área de terra como patrimônio exclusivo de sua família. São os laços de reciprocidade em que se encontra inserido que o impele a ter como mais importante o conjunto de relações, de troca, do que ficar, como disse Aldo: “sozinho nas atividades”.