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AO PÉ DO FOGO

No documento CAUSOKA5 (páginas 139-144)

(por José Teixeira Meireles)

“Era uma tarde do mês de junho. Embora estando Januário Garcia já fatigado foi deixando as margens do São Francisco, por onde palmilhava, e, pela necessidade de orientar-se pôs-se ainda a subir por uma encosta de montanha.

Lança dali a vista pelos horizontes desmedidos e ermos. E foi galgando sempre, sempre alongando olhares ansiosos, na esperança ou no pressentimento de que, se chegasse ao cimo, alguma coisa havia de descobrir que lhe pudesse interessar.

Enfim, era já mais noite do que dia, e meio desanimado já, parou, quis voltar, passou as costas da mão pela testa alagada de suor, espalmou-a de par sobre os olhos e olhou pelos quadrantes, perscrutando. Nada! Ele e a solidão. E rios emergindo, longe, da mataria e das curvas estiradas, vagarosas e hesitantes.

Mais um esforço, uma tentativa de descobrir, para ver se compensava a canseira daquela subida. Olhou de novo, mais atentamente, longe cada vez mais, quanto podia, no imenso desdobrar daqueles ermos.

neblina da tarde, ou vapores que subiam dos rios e lagoas. Porém, fixando melhor, compreendeu que era realmente a fumaça que subia de uma habitação humana perdida nas distâncias e nas brumas, quase imperceptível.

Dirigiu-se para ela.

Quando já se achava menos distante, verificou com satisfação, que era um rancho com diversos fogos ao redor, ponto de pouso das tropas e dos boiadeiros do vasto sertão. Estava inteiramente ocupado pelas rústicas bagagens e pelos couros em que dormiam à noite, após as fatigantes caminhadas, aqueles rudes sertanejos. Ao redor de cada fogo, estavam alguns homens meio deitados, aquecendo-se e preparando refeições, ao mesmo tempo que iam narrando intermináveis peripécias de viagens.

Quem não conhece, ou não imagina o que é a vida áspera do sertão, não pode fazer idéia do prazer, que trazem ao cansado viajante, aqueles apetecidos momentos de repouso.

Garcia chegou, finalmente, e aproximou-se do primeiro fogo, fora do rancho. cumprimentou aqueles caboclos, que tinham tanto de feios e mal encarados quanto de fortes e valentes, e pediu-lhes por obséquio alguma refeição, e licença para também se aquecer. De boa vontade foi atendido.

A conversa, entre os homens do rancho, continuou. Januário, por sua vez, tomava parte, mas sempre ocultava o verdadeiro motivo daquelas viagens, e como sempre, mais ouvia do que falava. Ia observando e colhendo informações. O seu sono era pelas longas noites silenciosas, em que passava a sós tão perdido e sumido naquelas desérticas jornadas.

Quando, já noite fechada, estendiam os couros para se deitarem, não esqueceram de ceder um a Garcia. Alguns iam deitar-se bem próximo ao fogo, por causa do frio imenso...

Depois, em meio ao vasto silêncio daquelas paragens, cadenciava-se ali o ressonar de um sono profundo.

terrível missão que se impusera, tendo diante de si o juramento que havia feito, ainda em presença do cadáver ensangüentado e escalavrado do seu irmão.

Um dos tropeiros, que estava pousando fora do rancho, foi aquecer-se a um dos fogos restantes, conservados em apenas brasas consumidas, encobertas na cinza.

Acendeu o cigarro, aspirando com força. Com tanta força que às vezes, o fumo do cigarro, assim avivado, aclarava o rosto do fumante.

Januário, a quem nada passou desapercebido, reconheceu, naquele homem, Carlos da Silva...

Também, como nas brasas avivadas, seus olhos brilhavam, no brilho da cólera terrível.

Saiu sem ser visto. Fingiu que ia procurar qualquer coisa, junto a arbustos mais densos, tateando repetidamente. Carlos da Silva, se pressentira, não teria suspeitado de coisa alguma, pois não o reconhecera.

No rancho, o ressonar cadenciado e forte dos sonos despreocupados. Dali, em vasto círculo, o silencioso rebrilhar das estrelas longínquas, a névoa que descia e se adensava, concretizando e impondo a quietude enorme...

Velavam somente a vingança e o remorso de Januário Garcia e Carlos da Silva. Um desatento, outro já a medir o golpe... De repente, como se fora o fuzilar de uma fagulha, o facão de Januário Garcia refletiu rápido o reluzir das estrelas... e embebeu-se no sangue de sua vítima, cravando-se-lhe fundo e, em poucos momentos fazendo-o cadáver.

A quinta orelha foi cortada e a vingança partiu satisfeita, escondida, silenciosa. Tendo agido com presteza e acerto, nem se interrompera por momento o sossego dos descampados...

Aos primeiros sinais da madrugada, como de costume, começou o despertar, o levantar-se dos viajantes, os aprestos da partida.

Só então houve a surpresa: um companheiro assassinado, e desaparecido o peregrino.

As suspeitas, é claro, recaíram sobre o desconhecido viajante. Este, porém, já estava longe e ninguém pensaria em procurá-lo, no desmedido daqueles sertões.

Enterraram o cadáver, fincaram mais uma cruz naqueles caminhos, e relembraram sua estranheza quando notaram que Carlos da Silva, taciturno sempre, não tivera jamais uma expressão mais viva, nem mesmo momentos despreocupados.

É que ignoravam quanto houvera, naquele homem, de remorso e de temor!

CAPÍTULO VI

À PROCURA DA SEXTA ORELHA

“Ainda em Bagagem, Januário ouvira falar da mineração concorrida do Tejuco (hoje Diamantina), talvez mais produtiva e por isso tanto mais atraente que a do Triângulo Mineiro. Cansado, mesmo assim estava ele de regresso, mais uma vez ao Centro das Gerais. Duas orelhas ainda lhe faltavam no colar, e sua vingança continuava inacabada. Sumidos por esse mundão de Deus, os dois derradeiros filhos de Chico da Silva tinham que ser continuamente caçados. Caminha Januário, caminha. Partamos, Judeu Errante...

Muitos e muitos meses após sua estada em Bagagem, Januário conseguiu alcançar os Serros de Diamantina. Quase nas imediações da famosa mineração, assentou-se à beira da estrada, apoiou o seu cajado, acendeu um cigarro de palha e aguardou a passagem de numerosa comitiva, composta de tropeiros e bestas de carga. Pelos comentários que ouviu, muitos se dirigiam à Ermida, lugar assim chamado por habitar um santo homem, que

estava a operar curas milagrosas. Januário foi também convidado a incorporar-se aos romeiros. Aceitando, partiu com eles. Estava mais que necessitado de palavras amigas e de bons conselhos. Oito horas de caminhada, enquanto comentavam todos a bondade e santidade do ermitão, sua habilidade em solucionar questões, espargir paz aos espíritos sofridos e operar curas maravilhosas. Segundo diziam ainda, gente de todas as bandas estavam descendo para ao menos enxergarem sua face de apóstolo.

Agora, pasmem-se senhores leitores! Assim também para Januário foi como um raio que despenhasse sobre sua cabeça, constatar que o santo milagreiro, famoso solitário, nada mais era que Luís da Silva, um dos seus desejados perseguidos! Este também o reconheceu à primeira vista. Ambos velhos e encanecidos, guardavam no coração sentimentos diversos. Um desejoso de executar logo o seu trabalho vingativo, o outro temeroso e acovardado. Fingindo desconhecerem-se, mantiveram perfeito duelo de dissimulação. Porém Luís da Silva arquitetava um plano de auto defesa, e que só poderia ter como epílogo o extermínio de Januário. Ordenou a seu auxiliar, uma espécie de sacristão, que o hospedasse na sua própria gruta, e o prevenisse da hora certa que ele adormecesse. Pensava atacá-lo nessa ocasião, à faca.

Assim, quando todos os romeiros se retiraram, de volta aos seus lares, e na gruta só restavam Januário, Luís e seu ajudante, encontraram-se os dois últimos para estabelecerem um plano de guerra. Tiveram a infelicidade, no entanto, de serem ouvidos por Januário, através de uma fresta que havia nas pedras. O vingador, por sua vez, já notara certo lampejo nos olhos de Luís e troca de sinais com seu auxiliar.

Luís manda o “sacristão” para casa, depois de combinarem como dar sumiço ao cadáver na manhã seguinte, e pé ante pé, sorrateiramente, caminhou para a enxerga de Januário. Este havia cerrado as pálpebras, fingindo dormir, porém mantendo na mão

seu afiado punhal. Luís, candeia numa das mãos e uma faca na outra, abaixou-se ao catre, tentando iluminar o alvo. Suspendeu o braço assassino e foi baixando lentamente. Januário, homem terrivelmente calmo, descerrou as pálpebras, e de inopino, levantou o braço e imobilizou aquela mão matadora. Surpresa para Luís que, dada a constituição mais forte do seu oponente, foi facilmente dominado. Januário soerguia-se vagarosamente, enquanto, em tom de oração, descrevia, cavernosamente, a cena macabra do Tira Couro. E de terçado, sem piedade, destroçou o corpo de Luís da Silva. E usou sua faca mais uma vez, para juntar a sexta orelha ao seu terrífico colar. Estava perto para consumar, portanto, sua prometida vingança!

Partiu então sem destino, como sempre, para recompor adiante suas idéias e determinar seus novos rumos. Ainda lhe faltava Bento da Silva...

CAPÍTULO VII

No documento CAUSOKA5 (páginas 139-144)

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