• Nenhum resultado encontrado

Ao publicar Iracema pela primeira vez, em 1865, o jovem José

de Alencar deparou-se com um problema: ver seu texto repleto de erros de grafia. Alguns ele mesmo deixara passar, por ler o texto com os olhos da memória de quem o havia escrito; outros decorriam do fato de não haver bons revisores nas tipografias brasileiras; outros ainda eram moti- vados — e é ele próprio quem o afirma — pela incerteza que reinava sobre a ortografia da língua portuguesa,2 isto é, pela inexistência de uma norma ortográfica.

Além desse problema, pouco depois de Iracema ter vindo a lume, Pinheiro Chagas — um escritor popular em Portugal de XIX, princi- palmente pelo seu drama A Morgadinha de Valflor3 — elogiava o novo romance brasileiro, mas lançava-lhe duras críticas. Entre elas, “a mania de tornar o brasileiro uma língua diferente do português”.4

1 Professora da Universidade de Coimbra, onde dirigiu o Instituto de Estudos Brasileiros da Faculdade de Letras, coordenou o Projeto Tempus, envolvendo a Universidade de Coimbra e a Universidade Carolina (Praga, República Checa). É membro integrado do Centro de Literatura Portuguesa e membro colaborador do Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos e do CLEPUL. Tem livros e artigos publicados em Portugal, Brasil e em alguns países europeus.

2 ALENCAR, José de. “Pós-escrito” (à 2ª edição), Iracema. Lenda do Ceará. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1965 (edição do Centenário), p. 161.

3 Na Av. da Liberdade, uma das principais artérias de Lisboa, existe um monumento ao escritor, onde também está representada a Morgadinha.

4 CHAGAS, Pinheiro M. Novos Ensaios Críticos. Porto: em Casa da Viúva Moré,1868, p. 221 [a folha de rosto registra 1867; 1868 é a data da capa, que entendemos como data da divulgação].

Pinheiro Chagas entendia que os escritores brasileiros propunham novas formas gramaticais “a seu bel-prazer”. Não conhecendo suficiente- mente o inglês e o espanhol, era incapaz de encontrar diferenças linguís- ticas entre escritores americanos e ingleses, espanhóis e hispano-ameri- canos. E, sem perceber que as línguas transplantadas tendem a realizar as derivas contidas no seu espírito, achava que os escritores brasileiros seguiam “veredas escabrosas”, levando “aos tombos a língua de Camões”.5

Na crítica que fez a Alencar, Pinheiro Chagas deu como exemplos de romances brasileiros, dois textos de outro escritor português, Mendes Leal: Calabar e Bandeirantes. E, não satisfeito, resolveu ele próprio escre- ver A Virgem Guaraciaba, certamente com a intenção de mostrar ao Brasil como escrever um romance brasileiro naquilo que considerava um bom português, um português escorreito. Publicado em 1866, logo a seguir a Iracema portanto, o texto, que hoje é desconhecido de portugueses e brasileiros, teve pelo menos três edições, o que certamente revela a sua aceitação na época,6 fosse pelo chamariz de seu título exótico, fosse pelo seu enredo rocambolesco, fosse apenas pela popularidade de seu autor entre seus compatriotas. Que enredo tem essa obra?

Como bom romance romântico, A Virgem Guaraciaba centra a sua ação num par de namorados: Jaime de Mendonça e Beatriz de Sousa. No entanto, a Companhia de Jesus, encarregada da catequese dos índios no Brasil, usa-os para atingir seus objetivos. O Padre Navarro incentiva Beatriz a converter o índio Caeteguara ao Cristianismo, ao mesmo tempo em que um outro jesuíta procura incutir o ciúme em Jaime, que acaba por matar o selvagem.

Depois disso, Beatriz quer entrar para o convento e Jaime é aconse- lhado a rezar e tomar hábito para “sufocar as paixões”. Porém, nas muitas peripécias criadas por Pinheiro Chagas, a moça é vítima de um naufrágio e fica prisioneira dos franceses no Rio de Janeiro, onde acaba reencon- trando Jaime que a ajuda a fugir, auxiliado por Tibiriçá, um chefe indí- gena aliado dos portugueses. Reacende-se o amor entre os dois jovens. No entanto, Beatriz sugere a Jaime, já padre, que fora amada por um francês. Num duelo, o rapaz, protegido pelas suas roupas de jesuíta, vence 5 Ibid., p. 223.

6 Hoje é vendido na internet como e-book e também surge gratuitamente como e-livro da Google.

o francês. Mais uma vez, porém, os da Companhia de Jesus interferem, impedindo com artimanhas o amor entre os jovens.

Beatriz enlouquece e vagueia pela floresta. Por fim, atira-se a um rio, que a embala como a uma nova Ofélia. Jaime, que meditava entre o arvoredo, é atraído pelo baque do corpo. Chega tarde, e, por isso, tam- bém quer precipitar-se e morrer. Dois braços o impedem. É o Padre José de Anchieta. “Se morreis quem expiará o crime?” — pergunta ele, que ainda considera: “É preciso que a morte dê frutos, que não seja a morte estéril de mais um corpo ao sepulcro e mais uma alma ao céu”.7 Ora, tal evidencia o outro objetivo de Pinheiro Chagas ao escrever o romance: criticar o excesso de rigor da Companhia de Jesus.

Vale dizer que A Virgem Guaraciaba chegou a inspirar uma ópera:

Tagir. Da autoria de Francisco Sá Noronha, cantada em italiano e com

libreto de Ernesto Pinto de Almeida, ela foi apresentada no Teatro São João (Porto), em 1876.

Mas também vale dizer que Pinheiro Chagas vai buscar situações, imagens e até linguagem seja em O Guarani seja em Iracema, conforme já se teve ocasião de demonstrar.8

No entanto — e isso é bastante significativo e assinala a dife- rença de pontos de vista entre o crítico português e o escritor brasi- leiro — se o narrador de Iracema é capaz de procurar usar a linguagem figurada dos índios, assumindo-os, assim, como marca da sua identidade, o narrador de A Virgem Guaraciaba não o faz, porque deles se distancia. E esta distância não é somente aquela inerente ao fato de narrar em 3ª pessoa, mas também a de quem não se revê na terra brasileira nem nos seus moradores.

Daí a ironia que perpassa algumas cenas, como, por exemplo, a do ritual antropofágico, onde o cacique é descrito como “sacrificador” a caminhar “muito ufano de si como homem que percebe a grandeza do ato que vai desempenhar”.9 Ou então quando Chagas fala da hospitalidade indígena. Se o oferecimento do próprio corpo é encarado pelo narrador 7 CHAGAS, Pinheiro M. A Virgem Guaraciaba. Lisboa: Imp. De Sousa Neves, 1866, p. 245. 8 Cf. Maria Aparecida Ribeiro, “O Anchieta de Pinheiro Chagas: entre o fanatismo e a

santidade”, Actas do Congresso Internacional Anchieta em Coimbra – Colégio das Artes da Universidade (1548-1998), Porto, Fundação Eng.° António de Almeida, v. I, p. 895-916.

com neutralidade, numa das frases aflora o preconceito contra os hábitos de trabalho dos brasileiros (então tomados como mestiços), quando, ao falar do repouso do padre Aspilcueta, o narrador diz que este não con- seguiu conciliar o sono, por mais que se revolvesse nesse “leito suspenso onde se baloiça flacidamente a indolência10 crioula”.11

Fazem parte também desse discurso que evidencia a não pertença do narrador ao povo cuja história narra os clichês da exuberância, que o narrador de Iracema não emprega — “troncos gigantes, vestidos de flo- res intensamente coloridas”, “nuvens de pássaros de cores brilhantes”, o cajueiro “com seus frutos d’oiro”. Essas fórmulas além de revelarem o via- jante deslumbrado e incapaz de falar pormenorizada e naturalmente da floresta tropical, mostram a impossibilidade de dizer algo mais do que notícias de segunda mão. Qualquer pormenor acrescentado pode tornar- se fatal deslize: é o caso da referência aos “cachos de jaboticaba” penden- tes de “latadas naturais que lhes formavam os cipós”. A jaboticaba — qualquer brasileiro o sabe — nasce individualmente e agarrada ao tronco e aos galhos da árvore.

Documentos relacionados