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No “Pós-escrito” à segunda edição, Alencar tocava, assim, em

dois assuntos de capital importância, mas de conteúdos absolutamente distintos: a questão da língua como fator de identidade e a questão da ortografia.

3.1. A questão da língua como fator de identidade literária foi algo

de que Alencar só tomou consciência a partir das críticas de Pinheiro Chagas. Em 1856, ao teorizar sobre como deveria ser o verdadeiro poema épico nacional, nas Cartas sobre A Confederação dos Tamoios, o autor de

Iracema apenas tecia considerações em torno das personagens, do assunto,

dos comparantes a serem usados nos símiles, da maneira de fazer falar os selvagens. Só depois da crítica do escritor português, passou a advogar que, para além da paisagem e das personagens, o romance fosse brasileiro também na língua. Curiosamente, hoje, é a diferença de vocabulário que, veiculada pelas novelas oferecidas pela televisão, encanta muitos portu- gueses e os faz assimilar muitos termos e expressões brasileiras.

3.2. A questão ortográfica das obras de Alencar poderia ser

sanada com tipógrafos mais bem preparados ou afeitos à língua portu- guesa. Chagas, aliás, como já se disse anteriormente, não fez nenhuma 14 ALENCAR, José de. Iracema, lenda do Ceará. Cartas sobre “A Confederação dos

observação quanto a esse assunto. Talvez porque, em Portugal, também reinasse a desordem, uma vez que, só em 1911, seria estabelecido naquele país um modelo ortográfico de referência para as publicações oficiais e para o ensino.

Hoje, no entanto, diferentemente do que acontece com a língua — e veja-se que digo língua — a ortografia vem merecendo muitas discus- sões dos dois lados do Atlântico. Muitos portugueses (e muitos brasilei- ros também) não querem ceder às normas do Novo Acordo Ortográfico. Alguns deles — ignorando por completo a diferença entre língua e regis- tro escrito — dizem que seguir as novas regras de ortografia vai mudar a língua, como se a leitura e a escrita antecedessem a fala. Alegações à parte, o que se vê é a comprovação da lei do menor esforço: ninguém quer deixar aquilo a que está habituado. Se fosse vivo, Alencar certamente defrontar-se-ia com mais este problema. E talvez, por conta de algumas reações brasileiras e de alguns africanos de língua oficial portuguesa, não pudesse culpar apenas, como escreveu na carta dirigida à Revista Lux, “a férula do pedagogismo português, que pretende o monopólio da ciência e polimento de nossa língua”.15

E grAmáTICAS DE uSoS

Maria Helena de Moura Neves1

Introdução

Este meu capítulo tem a destinação específica de ressaltar que a validade da consideração das noções gramaticais da língua – de que é mestre inconteste nosso homenageado, Evanildo Bechara – não se cir- cunscreve aos manuais declaradamente de “gramática”, mas está presente em qualquer estudo que, tendo como objeto a linguagem, necessariamente visa a explicitar as relações internas que com ela produzem significado.

Com tal propósito, este texto põe sob consideração a atividade lexicográfica paralelamente à atividade de produção de gramáticas, bus- cando mostrar, especialmente, a importância do potencial gramatical de que podem valer-se os dicionários de língua para estabelecer as acepções, visto que as significações só se obtêm, realmente, pela trilha dos arranjos gramaticais dos enunciados. Para isso ponho historiados e comentados, aqui, (quatro) dicionários (“de usos”) de língua portuguesa de cuja ela- boração participei, com o objetivo de pontuar, no geral, a importância de uma condução “gramatical” para o fazer lexicográfico, particularmente quando a proposta se conduz para respostas quanto à língua em função (que foi o caso dessas obras). No respaldo do que defendo, e para a devida relação entre a tarefa lexicográfica e a de elaborar manuais de gramática, trago a comentário, no que interessa, (três) obras gramaticais de minha autoria, também elaboradas com o interesse na língua em função, ou seja, na linguagem se fazendo.

1 Universidade Presbiteriana Mackenzie, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho/CNPq.

Krieger2 define o “dicionário” – com uma simplicidade e uma cla- reza muito bem-vindas, especialmente em uma obra de destinação peda- gógica – como “um livro que tem a tradição de reunir as palavras de um idioma, de definir seus significados, identificando os sentidos comuns e também os específicos, resultantes dos usos que os falantes fazem de seu léxico”.3 Destaco como muito interessante – e extremamente relevante para as minhas reflexões – esse gancho no “uso” que a indicação oferece, especialmente porque ele vem de uma autora que se move na lexicogra- fia ortodoxa, sem nenhum aceno a correntes orientadas por princípios funcionalistas, particularmente ligadas a fontes de ocorrências reais da língua, como é o caso dos dicionários de “usos” (e é o meu caso).4

Ora, não se desconhece que o que está nos dicionários em geral são significados “potenciais” das palavras, já que, nessas obras, figuram “pala- vras” avulsas que, canonicamente, são postas em sucessividade, alfabeti- camente organizadas, para abrigar, à sua direita, as diversas “definições lexicográficas” que lhes competem e que vêm devidamente registradas, seja mediante sintagmas definidores (definições analíticas), seja mediante outras simples palavras oferecidas como sugestão sinonímica. Fica por esclarecer, entretanto, em que se assenta essa competência do lexicógrafo para decidir sobre tal “potencialidade”.

Não resta dúvida de que, a depender da orientação teórica do dicio- nário, esse “significado potencial” terá diferente ponto de partida:

(i) ou o oferecimento de cada acepção se organiza a partir daquilo que o verbetista (ou a equipe) simplesmente concebe como signifi- cado potencial da palavra, pela sua experiência de usuário da língua (competente e atento), acrescida do forte respaldo fornecido pelos dicionários disponíveis;

(ii) ou o oferecimento de cada acepção se organiza – na direção contrária – a partir de amostras de usos da língua que o verbetista (ou a equipe) – obviamente sem perder sua experiência de usuário(s) da língua – interpreta, no momento, para compor suas definições lexicográficas (ana- líticas e sinonímicas), o que não deixa de prover “significados potenciais”. 2 KRIEGER, Maria da Graça. Dicionário em sala de aula: guia de estudos e exercícios. Rio

de Janeiro: Lexicon, 2012. 3 KRIEGER, 2012, p. 9.

4 Observo que, nas referências a “Dicionários consultados”, registradas ao final de Krieger (2012), não consta nenhum dicionário “de usos”.

Os primeiros, que são os dicionários ortodoxos, decidem por apor, ou não, “exemplos” (inventados ou transcritos de alguma fonte) aos sig- nificados potenciais que (por sua competência) registram na composição dos verbetes; os segundos, que são os dicionários “de usos”, apõem acep- ções (significados potenciais) a palavras já interpretadas, de partida, pelas relações gramaticais em que se envolvem nas ocorrências examinadas (e oferecidas ao consulente), produzindo os resultados semânticos que con- duzem às afirmações das potencialidades significativas.

São estes últimos os que estão na experiência pessoal que tenho, em produção de obras lexicográficas, e a eles vou, nas considerações que trago sobre a validade de um direcionamento “gramatical”, para garan- tia de depreensão mais segura do valor semântico das entradas de um dicionário de língua. Por outro lado, no cerne de minhas considerações há de pesar, particularmente, o fato de que minha atividade de produção de gramáticas (e de obras teóricas de suporte dessa produção gramatical) tem abrigo na teoria funcionalista da linguagem,5 embora não guarde vinculação a uma ou outra corrente particular, centralmente valendo o compromisso de que a “gramática” seja posta a produzir significado na “língua em função”.6

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