1. Ainda no seio da espumosa Tétis
42. Às atrevidas proas se ocultava
3. Da madre Terra a quarta parte nova;
4. Quando em seus campos graciosa Ninfa,
5. Seguindo as feras, fatigava os bosques.
6. Cristália era o seu nome, e a mais formosa
7. Que até hoje pisou o novo mundo.
8. Mais alvos do que a neve, que nos Alpes
9. Congela o frio vento, eram seus membros:
10. Nas lindas faces, na engraçada boca
11. Dos cravos e das rosas a cor viva,
12. Dos olhos doce encanto, lhe brilhava:
13. E sobre o colo de alabastro fino
14. Em crespos fios de ouro lhe ondeava
15. O comprido cabelo solto ao vento.
16. Amor travesso, que em seus olhos mora,
17. Tão vivas chamas deles despedia,
18. Que neles sem alívio se abrasavam
19. Os tristes corações de mil amantes.
20. Enfim era Cristália tão formosa
3
Deusa grega da justiça, causando dor ou dando felicidade, conforme decisão sua.
4 Tétis é esposa do deus Oceano. No terceiro verso, “Da madre Terra” refere-se à Europa e “a quarta parte nova” à América. Portanto, os versos iniciais indicam que o fato aconteceu antes do Descobrimento da América.
21. Que inveja à Mãe de Amor
5fazer podia.
22. Um dia, que de agudo dardo armada
23. Com seus cães denodada perseguia
24. Um mosqueado Tigre na floresta,
25. A viu passar um rústico Silvano,
26. (Quanto melhor lhe fora, se a não vira!)
27. Que habitava o horror daqueles matos.
28. Topázio se chamava, e era tido
29. Entre os Silvestres Deuses do contorno
30. Pelo mais sábio em grande acatamento.
31. Viu-a, e vê-la e adorá-la foi o mesmo.
32. Desde este ponto o triste um só instante
33. Não deixou de seguir suas pisadas.
34. Em vão tentou com lágrimas e rogos,
35. Em vão com tristes dons mover o peito
36. Da dura Ninfa, mais que os montes dura.
37. Em bravíssima costa alto rochedo
38. Tão firme não resiste as duras vagas,
39. Do mar, que em flor rebenta em suas abas;
40. Como a fragueira Ninfa resistia
41. Às tristes mágoas, ao contínuo pranto
42. Do importuno Topázio. Quantas vezes
43. Dos mortais invejou o triste a sorte,
44. Desejando acabar a infeliz vida!
45. Mas a lei dura pelo Fado escrita
46. Em rígido diamante, lhe embargava
47. Este mísero alívio. Quantas vezes
48. Ao Amor se queixou da ingrata Ninfa!
49. Mas o travesso Deus, que por deleite
50. Os corações amantes atormenta,
51. Que de pranto e de sangue se não farta,
52. Outras tantas se riu de suas queixas.
53. Desenganado enfim de achar remédio,
54. Servindo e suspirando, a seu tormento,
55. Tentar manhoso a força determina.
56. Ah rústico Topázio, a que te arrojas!
57. Tem-te insano, suspende a dura força!
58. Suspende! que infeliz te precipitas!
59. Ternos suspiros, lágrimas ardentes,
60. Brados rogos, invicto sofrimento
61. As fortes armas são, que só sujeitam
62. Rebeldes corações de ingratas Ninfas.
63. Ai! que se elas não bastam, nada basta.
64. Junto de um claro rio, que corria
65. Bordando com mil giros a campanha
66. De fragrantes boninas, se elevava
67. Um frio bosque de árvores sombrias,
68. Onde os campestres Deuses na alta noite
69. Com os Faunos foliões tecer costumam
70. Ligeiras, graciosíssimas coreias.
71. Aqui as verdes folhas encrespando
72. Serena viração com o fresco bafo,
73. Aqui cantando nos confusos ramos
74. Mil pássaros de mil diversas cores,
75. Doce paz, doce sono derramavam.
76. Aqui pois uma cesta, fatigada
77. De seguir pelo mato as bravas feras,
78. De suor e de sangue salpicada,
79. A repousar Cristália se retira.
80. Num ramo dependura o ebúrneo arco,
81. No outro o buído dardo, e sobre a aljava,
82. Inocente do mal, que ali a espera,
83. O lindo rosto mansamente inclina.
84. Em breve espaço lisonjeiro sono
85. Os membros lhe ocupou. Então Topázio,
86. Que idônea ocasião anda espiando
87. Para suas traições há longo tempo,
88. Com ela arremeteu, e os tenros braços
89. Com seguras cadeias, que tecera
90. De floridas vergônteas, manso, manso
91. A uma árvore vizinha lhe prendia.
92. Segura da vitória, e em voraz fogo,
93. Que as entranhas lhe corre, todo ardendo,
94. O Silvano insofrido se dispunha
95. De seus desejos a tocar a meta;
96. Quando a Ninfa acordou, e ao ver-se presa,
97. Do lascivo Topázio ao ver a fúria,
98. Desbotadas do rosto as vivas rosas,
99. Palpita e semiviva aos Céus levanta
100. Os belos olhos, porque as mãos não pode;
101. E com cortada voz assim exclama;
102. Ó Deuses! Se entre vós algum assiste,
103. Que dos tristes mortais cuidado tenha,
104. De uma inocente mova-vos a sorte
105. A virginal pureza defendei-me.
106. Disse, e subitamente (caso estranho!)
107. Os delicados membros se lhe gelam,
108. E em transparente pedra se convertem,
109. Sem que da antiga alvura nada percam.
110. E qual cândido jaspe, a quem deu vida
111. De Policleto, ou Fídias
6a mão destra,
112. Tal fica a bela Ninfa. Largo espaço
113. Espantado do súbito prodígio,
114. Imóvel fica o mísero Topázio;
115. Mas logo que em si torna, sobre o colo
116. Do adorado Cristal se precipita:
6 Policlito (c. 460 - c. 410 a.C.) e Fídias (c. 490 - c. 430 a.C.), doisescultores da Grécia, fundaram o Classicismo escultórico.
117. Com terno pranto o rega, e ardentes beijos
118. Na fria pedra suspirando imprime.
119. Logo em cruéis imprecações horrendas
120. Se volve contra Amor; de um tigre Hircano,
7121. De uma Marpésia rocha
8filho o chama:
122. O seu arco detesta e suas flechas.
123. Depois ao Céu se torna, e em seus delírios
124. De quando em quando repetir se ouvia
125. De ternas vozes de Cristália o nome.
126. Enfim tais coisas fez, tais coisas disse,
127. Que os Deuses lastimados de seus males,
128. A dar-lhe algum remédio se moveram.
129. Louco, se tino à pedra se voltava,
130. E os pés endurecidos se lhe travam.
131. Os braços a abraçá-la aflito estende,
132. E os braços estendidos se endurecem,
133. Frio gelo lhe corre pelas veias,
134. E o sangue pouco a pouco lhe coalha.
135. Cristália quer chamar, e fria língua
136. Dobrar não pode. Enfim desta maneira
137. Ficou também o mísero Topázio
138. Todo em pedra tornado, que ainda guarda
139. Na cor a palidez do aflito rosto:
140. E junto de um penedo outro penedo.
141. Graciosíssimo Silvio, tu, que habitas
142. Os ricos campos, que pisaram vivos
143. A bela Ninfa, e o desgraçado amante;
144. Onde ainda depois de tantos anos
145. Em finas pedras convertidos brotam:
146. Se do pobre Museu do teu Elpino
9147. Ainda cuidado tens; ah! tu com elas
148. Cuida, amigo, também de enriquecê-lo.
149. Que as Ninfas de Permesso
10, que mil vezes
150. De entrar em meu alvergue se não pejam,
151. Ao som da minha lira descantando
152. Levaram às Estrelas o teu nome.
7 O nome faz alusão a uma terra de lobos ferozes, pois Hircânia é uma antiga região grega, atualmente sob o domínio do Irã.
8
Marpésia – nome de uma rainha amazona – é um termo pejorativo, indicando uma dureza nas ações.
9 Provável referência a Elpino Duriense, pseudônimo árcade de Antonio Ribeiro dos Santos (1745-1818).