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Ao Senhor Luis Botelho 1. Junto das verdes margens, que talhando

2. O Paraíba vai com suas águas,

3. Um mancebo vivia e mais famoso,

4. Entre os outros daqueles arredores,

5. Em brandir com destreza o curvo arco,

6. Cauí era o seu nome; e as suas manhas,

7. Seu valor, e seu brio de mil Ninfas

8. Eram doce atrativo; mas de todas

9. As que dentro no peito mais sentiam

10. Lavrar este cuidado, uma Itaubira

11. Por nome tinha, e a outra era Itaúna.

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12. Eram ambas iguais na formosura,

13. Ambas no amor iguais, iguais na idade.

14. Mas o flecheiro Deus, que a seu capricho

15. Os que amam faz felizes e infelizes;

16. Quis que Itaubira então fosse a ditosa,

17. De seus olhos vibrando a seta ardente,

18. Que de Cauí feriu o isento peito.

19. De um e de outro os quebrados ternos olhos

20. De suas almas foram os primeiros

21. Intérpretes sutis, que declararam

22. O vivo incêndio, em que elas se abraçavam.

23. Mas depois que ao amor cedeu o pejo,

24. E que ousaram falar-se; que ternuras

25. Vós, solitários montes, não lhe ouvistes!

26. Entre trespassos mil e mil carícias

27. Pelos raios do Sol ambos juraram

28. De se amarem fiéis até a morte;

29. E à promessa fiéis, até a morte

30. Com o mesmo fervor ambos se amaram.

31. Destarte longo tempo venturosos

32. Em doce paz, em doce amor viveram;

33. Até que o vil ciúme cruelmente

34. Sua doce afeição perturbar veio.

35. Quanto, ó infame monstro, mais ditosa

36. Sobre a terra seria a raça humana,

37. E quanto de invejar a feliz sorte

38. Dos que amam, e igualmente são amados

39. Se não foras na terra conhecido!

40. Junto das praias, que Helle

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fez famosas

41. Numa escabrosa furna, onde morada

42. A fria Noite tem, se alverga o mostro;

43. A quem assobiando horrendamente

44. Em feia confusão cerúleas cobras

45. Guarnecem a cabeça, e no pescoço

46. E descarnados braços se lhe enroscam,

47. E o triste coração estão roendo.

48. Por entre as cegas, carregadas sombras,

49. Que a caverna, qual denso fumo inundam,

50. Mal se distinguem sem cessar voando

51. Espantosas Visões, cruéis Cuidados

52. De cem partes soar ao mesmo tempo

53. Tristes queixas se escutam, tristes prantos,

54. E contra Amor imprecações horríveis;

55. Que as naturais abobadas ferindo,

56. Retumbam tristemente, enchendo os peitos

57. De espanto e de pavor. Feras Suspeitas,

58. Vãos Receios, falaces Aparências,

59. E às vezes vis Traições, feios Enganos

60. Os seus Ministros são, suas espias,

61. Por quem o quanto sobre a terra passa

62. Entre os amantes sabe, e por quem soube

63. A sincera união, a paz gostosa,

64. Em que os dias passavam, desfrutando

65. De um recíproco amor todas as glórias,

66. Itaubira e Cauí. Então disposto

67. A turbar dos felizes o descanso,

68. Um dos duros Ministros, que o rodeiam,

69. Raivoso chama, e chamejando intima,

70. Que as asas despregando veloz parta,

71. E da terna Itaubira o brando peito

72. Com uma fria cobra, que impaciente

73. Arranca da cabeça, o peito fira.

74. Voa a fera Suspeita, e invisível

75. O que o monstro lhe manda fiel cumpre,

76. Itaúna, que bem que desprezada,

77. De seu peito lançar Amor não pode,

78. Escapar não deixava vigilante

79. Uma só ocasião de apresentar-se

80. Sempre louçã do amado moço aos olhos:

81. E posto que Cauí, como quem tinha

82. À formosa Itaubira a alma entregue,

83. E com ela as potências e sentidos,

84. Em tal não atentava; a Ninfa bela,

85. A quem o coração ferido havia

86. A bárbara Suspeita, estimulada

87. Pelo excesso, que observa em Itaúna,

88. Começou a tremer dentro em seu peito

89. Da rival a beleza, e do mancebo,

90. Posto que sem motivo, a inconstância;

91. E desde este momento principia

92. (Ah funesto momento!) as ações todas

93. De Cauí a espiar atentamente.

94. Um dia, pois que o descuidado moço

95. Na selva a caçar foi, como soía,

96. Ela por entre o mato o foi seguindo.

97. Cauí depois de haver veloz cansado

98. As mais ligeiras feras na carreira,

99. Com seu sangue manchando ervas e flores;

100. Do calor e do excesso fatigado,

101. A respirar um pouco se reviva

102. Numa sombria lapa, que se esconde

103. No mais denso da selva; onde rebenta,

104. Com suave murmúrio borbulhando,

105. Um grande jorro de água cristalina.

106. Itaubira, que o doce amante vira

107. Embrenhar-se na selva, dentro n’alma

108. Crescer sente a suspeita, que lhe finge,

109. Que Itaúna a Cauí ali aguarda:

110. E para ver se é certo o que receia,

111. Para aquele lugar dirige os passos.

112. A sua turbação, sua impaciência,

113. A pressa, com que corre, lhe não deixam

114. No ruído atentar, de que era causa,

115. Movendo impetuosa as bastas ramas

116. Da intrincada floresta. Neste tempo

117. O mesquinho Cauí alboratado

118. Do súbito rumor, e presumindo

119. Que dele origem era alguma fera,

120. Das armas lança mão. Ah cego moço!

121. Quanto melhor te fora, se essas setas

122. Nunca houvesses tão destro arremessado!

123. Mas quem pode fugir de seu destino!

124. Toma o arco Cauí, e nele a seta

125. Prontamente embebendo, o tiro aponta

126. Para onde o grão rumor alçar-se ouvia.

127. Veloz a seta voa, e incontinenti

128. Os ouvidos lhe fere um ai piedoso,

129. Que de Itaubira ser se lhe figura.

130. Então largando as setas, pronto corre

131. Ao lugar d’onde a triste voz saíra.

132. Mas qual seu espanto foi, quando passada

133. Da desastrada flecha a Ninfa encontra!

134. Sobre a terra jazia rociando

135. As árvores e flores, que a rodeiam,

136. De seu sangue com as roxas espadanas;

137. E entre crebros soluços exalando

138. Da triste vida os últimos respiros.

139. Itaubira, Cauí lhe brada aflito,

140. E a Ninfa a força abrindo os turvos olhos,

141. Que a Morte a pesada mão cerrava,

142. Nele por um pequeno espaço os fita,

143. E a cerrá-los eternamente volve.

144. Coado, frio, e qual Marpésia caute

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145. Fica imóvel Cauí por algum tempo;

146. Mas em tornando em si, desesperado

147. Corre a arrancar do peito de Itaubira

148. A despiedosa flecha; porque acabe

149. Com ela o coração atravessando,

150. Junto da amada Ninfa a amarga vida:

151. Mas ao tirá-la, viu (coisa espantosa!)

152. Que o sangue, que do peito lhe corria,

153. Em cristalino humor se transformava:

154. Viu que a pálida Ninfa pouco a pouco

155. Se ia derretendo, e em claro arroio

156. Toda se convertia. Então absorto

157. Primeiro que de todo o lindo corpo

158. A antiga forma perca, a abraçá-lo

159. Pela postrema

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vez chorando corre;

13 Marpésia – nome de uma rainha amazona – é um termo pejorativo, indicando uma dureza nas ações.