2. O Paraíba vai com suas águas,
3. Um mancebo vivia e mais famoso,
4. Entre os outros daqueles arredores,
5. Em brandir com destreza o curvo arco,
6. Cauí era o seu nome; e as suas manhas,
7. Seu valor, e seu brio de mil Ninfas
8. Eram doce atrativo; mas de todas
9. As que dentro no peito mais sentiam
10. Lavrar este cuidado, uma Itaubira
11. Por nome tinha, e a outra era Itaúna.
1112. Eram ambas iguais na formosura,
13. Ambas no amor iguais, iguais na idade.
14. Mas o flecheiro Deus, que a seu capricho
15. Os que amam faz felizes e infelizes;
16. Quis que Itaubira então fosse a ditosa,
17. De seus olhos vibrando a seta ardente,
18. Que de Cauí feriu o isento peito.
19. De um e de outro os quebrados ternos olhos
20. De suas almas foram os primeiros
21. Intérpretes sutis, que declararam
22. O vivo incêndio, em que elas se abraçavam.
23. Mas depois que ao amor cedeu o pejo,
24. E que ousaram falar-se; que ternuras
25. Vós, solitários montes, não lhe ouvistes!
26. Entre trespassos mil e mil carícias
27. Pelos raios do Sol ambos juraram
28. De se amarem fiéis até a morte;
29. E à promessa fiéis, até a morte
30. Com o mesmo fervor ambos se amaram.
31. Destarte longo tempo venturosos
32. Em doce paz, em doce amor viveram;
33. Até que o vil ciúme cruelmente
34. Sua doce afeição perturbar veio.
35. Quanto, ó infame monstro, mais ditosa
36. Sobre a terra seria a raça humana,
37. E quanto de invejar a feliz sorte
38. Dos que amam, e igualmente são amados
39. Se não foras na terra conhecido!
40. Junto das praias, que Helle
12fez famosas
41. Numa escabrosa furna, onde morada
42. A fria Noite tem, se alverga o mostro;
43. A quem assobiando horrendamente
44. Em feia confusão cerúleas cobras
45. Guarnecem a cabeça, e no pescoço
46. E descarnados braços se lhe enroscam,
47. E o triste coração estão roendo.
48. Por entre as cegas, carregadas sombras,
49. Que a caverna, qual denso fumo inundam,
50. Mal se distinguem sem cessar voando
51. Espantosas Visões, cruéis Cuidados
52. De cem partes soar ao mesmo tempo
53. Tristes queixas se escutam, tristes prantos,
54. E contra Amor imprecações horríveis;
55. Que as naturais abobadas ferindo,
56. Retumbam tristemente, enchendo os peitos
57. De espanto e de pavor. Feras Suspeitas,
58. Vãos Receios, falaces Aparências,
59. E às vezes vis Traições, feios Enganos
60. Os seus Ministros são, suas espias,
61. Por quem o quanto sobre a terra passa
62. Entre os amantes sabe, e por quem soube
63. A sincera união, a paz gostosa,
64. Em que os dias passavam, desfrutando
65. De um recíproco amor todas as glórias,
66. Itaubira e Cauí. Então disposto
67. A turbar dos felizes o descanso,
68. Um dos duros Ministros, que o rodeiam,
69. Raivoso chama, e chamejando intima,
70. Que as asas despregando veloz parta,
71. E da terna Itaubira o brando peito
72. Com uma fria cobra, que impaciente
73. Arranca da cabeça, o peito fira.
74. Voa a fera Suspeita, e invisível
75. O que o monstro lhe manda fiel cumpre,
76. Itaúna, que bem que desprezada,
77. De seu peito lançar Amor não pode,
78. Escapar não deixava vigilante
79. Uma só ocasião de apresentar-se
80. Sempre louçã do amado moço aos olhos:
81. E posto que Cauí, como quem tinha
82. À formosa Itaubira a alma entregue,
83. E com ela as potências e sentidos,
84. Em tal não atentava; a Ninfa bela,
85. A quem o coração ferido havia
86. A bárbara Suspeita, estimulada
87. Pelo excesso, que observa em Itaúna,
88. Começou a tremer dentro em seu peito
89. Da rival a beleza, e do mancebo,
90. Posto que sem motivo, a inconstância;
91. E desde este momento principia
92. (Ah funesto momento!) as ações todas
93. De Cauí a espiar atentamente.
94. Um dia, pois que o descuidado moço
95. Na selva a caçar foi, como soía,
96. Ela por entre o mato o foi seguindo.
97. Cauí depois de haver veloz cansado
98. As mais ligeiras feras na carreira,
99. Com seu sangue manchando ervas e flores;
100. Do calor e do excesso fatigado,
101. A respirar um pouco se reviva
102. Numa sombria lapa, que se esconde
103. No mais denso da selva; onde rebenta,
104. Com suave murmúrio borbulhando,
105. Um grande jorro de água cristalina.
106. Itaubira, que o doce amante vira
107. Embrenhar-se na selva, dentro n’alma
108. Crescer sente a suspeita, que lhe finge,
109. Que Itaúna a Cauí ali aguarda:
110. E para ver se é certo o que receia,
111. Para aquele lugar dirige os passos.
112. A sua turbação, sua impaciência,
113. A pressa, com que corre, lhe não deixam
114. No ruído atentar, de que era causa,
115. Movendo impetuosa as bastas ramas
116. Da intrincada floresta. Neste tempo
117. O mesquinho Cauí alboratado
118. Do súbito rumor, e presumindo
119. Que dele origem era alguma fera,
120. Das armas lança mão. Ah cego moço!
121. Quanto melhor te fora, se essas setas
122. Nunca houvesses tão destro arremessado!
123. Mas quem pode fugir de seu destino!
124. Toma o arco Cauí, e nele a seta
125. Prontamente embebendo, o tiro aponta
126. Para onde o grão rumor alçar-se ouvia.
127. Veloz a seta voa, e incontinenti
128. Os ouvidos lhe fere um ai piedoso,
129. Que de Itaubira ser se lhe figura.
130. Então largando as setas, pronto corre
131. Ao lugar d’onde a triste voz saíra.
132. Mas qual seu espanto foi, quando passada
133. Da desastrada flecha a Ninfa encontra!
134. Sobre a terra jazia rociando
135. As árvores e flores, que a rodeiam,
136. De seu sangue com as roxas espadanas;
137. E entre crebros soluços exalando
138. Da triste vida os últimos respiros.
139. Itaubira, Cauí lhe brada aflito,
140. E a Ninfa a força abrindo os turvos olhos,
141. Que a Morte a pesada mão cerrava,
142. Nele por um pequeno espaço os fita,
143. E a cerrá-los eternamente volve.
144. Coado, frio, e qual Marpésia caute
13.
145. Fica imóvel Cauí por algum tempo;
146. Mas em tornando em si, desesperado
147. Corre a arrancar do peito de Itaubira
148. A despiedosa flecha; porque acabe
149. Com ela o coração atravessando,
150. Junto da amada Ninfa a amarga vida:
151. Mas ao tirá-la, viu (coisa espantosa!)
152. Que o sangue, que do peito lhe corria,
153. Em cristalino humor se transformava:
154. Viu que a pálida Ninfa pouco a pouco
155. Se ia derretendo, e em claro arroio
156. Toda se convertia. Então absorto
157. Primeiro que de todo o lindo corpo
158. A antiga forma perca, a abraçá-lo
159. Pela postrema
14vez chorando corre;
13 Marpésia – nome de uma rainha amazona – é um termo pejorativo, indicando uma dureza nas ações.
No documento
O Arcadismo em Metamorfoses, de Antonio Dinis da Cruz e Silva
(páginas 119-123)