1. Entre as ásperas serras, que rodeiam
2. O Cerro, que do frio o nome toma,
3. Arapira nasceu, Ninfa a mais bela,
4. Que viram em primeiros seu seio aquelas selvas.
5. Desde os anos costumada
6. A montear as feras pelas brenhas,
7. Tal dureza no peito contraíra,
8. Que a mais gente intratável, só nos montes,
9. Só nos bosques vivia. A morte e o sangue
10. Das feras, que seguia sem descanso,
11. Eram só seu prazer, suas delícias
12. Com ódio e com espanto olhava os homens;
13. E o falar-lhe em amor era delito,
14. Que jamais perdoava. Mil amantes
15. Fizeram por seu mal esta experiência.
16. Mas Itaubí que um dia acaso a vira
17. Seguindo denodada um feroz tigre;
18. E que ao vê-la, sentiu passar-lhe o peito
19. De Amor a aguda seta; nem por isso
20. De abrandá-la perdeu as esperanças.
21. Era Itaubí de todos conhecido
22. Pelo moço mais belo do contorno,
23. E juntamente pelo mais manhoso.
24. Na flor da idade estava, pois apenas
25. A barba lhe apontava em seu semblante
26. Uma gentil fereza se lhe via,
27. Que amável o fazia e respeitado.
28. Da fortuna gozava em larga cópia
29. Os bens, que muitas vezes seu capricho
30. Às cegas, e com larga mão reparte.
31. Unidos em si tendo desta sorte
32. Da natureza os bens e os da fortuna,
33. Por esposo em extremo cobiçado
34. De muitas Ninfas era; mas seu livre
35. E altivo coração todas enjeita.
36. Até por mofina de Arapira
37. Viu a rara beleza. Então sua alma
38. De amor a conhecer entre o veneno,
39. Que calando-lhe as veias, pouco a pouco
40. As entranhas lhe abrasa e lhe consume.
41. Desde aqui a seguir a esquiva Ninfa
42. Impaciente começa; ante seus olhos
43. Em as selvas mil vezes se apresenta,
44. Mil vezes seu amor entra a pintar-lhe;
45. Mas a Ninfa cruel lhe atalha às vezes,
46. Fugindo mais veloz, que veloz nuvem,
47. Pelo Noro nos ares açoitada
22.
48. Em vão lhe brada o triste, em vão a chama,
49. Em vão chora e suspira, que a seus prantos
50. Só respondem as selvas circunstantes.
51. Para abrandar enfim seu duro peito
52. Ricos presentes sem cessar lhe envia:
53. Arapira porém que em mais estima
54. De um morto tigre a mosqueada pele.
55. Que do moço infeliz toda a riqueza,
56. Como suas palavras, igualmente
57. As suas ricas dádivas despreza.
58. Vendo o triste Itaubí, que seus suspiros,
59. Seus rogos, e seus dons nada aproveitam
60. Para o peito amolgar de fera moça,
61. Tomar outra vereda determina.
62. Um dia, pois que a topa na floresta,
63. A seus pés se lançou, e a persuadi-la
64. Com brandos rogos entra, que piedade
65. De seu tormento sinta: mas apenas
66. A falar começou, a crua Ninfa
67. As costas lhe volveu, como costuma.
68. Itaubí sem acordo a foi seguindo:
69. O que vendo Arapira, pelo campo
70. A fugir começou mais levemente
71. Que fugaz cervo dos lebréus
23seguido.
72. Corre Itaubí após ela ligeiro,
73. E enquanto corre, vós erguidos montes.
74. Dizei as ternas queixas, que lhe ouvistes!
75. Ah Ninfa! de quem foges? por ventura
76. Sou um Tigre feroz? sou brava Onça,
77. Que a fartar em teu sangue a sede corra e
78. Quem te adora não sou, e quem daria
79. Por piedosa te ver contente a vida?
80. Os suspiros, que em vão me saem do peito,
81. E que há tanto exalar, cruel me escutas,
82. O pranto, que após ti meus olhos vertem,
83. (Ah que eles uma rocha abrandariam!)
84. Não são de um puro amor prova constante,
85. Não bastam a abrandar teu duro peito?
86. Ah cruel! que de algum duro penedo
87. Ou carniceiro tigre certamente
88. Gerada foste, e não de sangue humano.
89. Para, fragueira Ninfa! A não ofendam
90. Teus delicados pés as duras pedras!
91. Pára, amada Itaubira! olha que pode
92. Entre a relva jazer oculta cobra!
93. Estas e outras palavras semelhantes,
94. Seguindo a esquiva moça, ao vento espalha
22 No contexto, quer dizer um vento vindo da latitude noroeste, geralmente forte.
95. O mesquinho Itaubí, enquanto a mesma,
96. Sem descansar movendo as leves plantas,
97. Já quase que a seus olhos se escondia.
98. Então com mais fervor Itaubí corre,
99. Amor para seu mal lhe empresta as asas;
100. Pois em espaço breve a Ninfa alcança.
101. Já de Itaubí a sombra sobre a terra,
102. Pelo Sol que nas costas os feria,
103. Estendida, antes seus ligeiros passos
104. Arapira assombrada correr via;
105. E já seu bocejar de quando em quando
106. Levemente os cabelos lhe encrespava,
107. Quando a Ninfa cruel entre si vendo,
108. Que escapar do insofrido cego amante
109. Aos furiosos desejos não podia;
110. De repente se volta, e com a seta,
111. Que levava na mão, lhe crava o peito.
112. Cai o moço infeliz na dura terra.
113. E vendo a fria morte já vizinha,
114. Em pó, em sangue envolto, estas extremas
115. Palavras arrancou do fundo d’alma;
116. Já, cruel Arapira, a tua sanha
117. Satisfeita está; vem, a sede apaga,
118. Que o coração te abrasa, de meu sangue
119. Na copiosa corrente. Eu morro, e morro
120. Em parte satisfeito; porque creio,
121. Que só morrendo posso contentar-te.
122. Mas já sinto que a vista me turba,
123. Densa treva me esconde à luz do dia,
124. As vozes se me prendem na garganta
125. Já sinto... e aqui dando um grande arranco,
126. O derradeiro alento o triste exala.
127. Amor! cruel Amor! quem teus arcanos,
128. Penetrar poderá? quem tuas obras?
129. Arapira, essa mesma, que tirana
130. Vivo tanto Itaubí aborrecera,
131. Que com as próprias mãos lhe deu a morte;
132. Apenas o viu morto, derreter-se
133. Com amor e compaixão sua alma sente
134. Sobre ele se lançou; com terno pranto
135. A ferida lhe banha e o frio rosto:
136. Por ele uma e outra vez, mas em vão, chama.
137. De cem fúrias então toda agitada,
138. Depois do arco quebrar e as duras setas,
139. A si própria se torna, e delirante
140. Os cabelos arranca, o peito fere,
141. E contra os Céus exclama: finalmente
142. Arrancando do peito ao terno amante
143. A seta, que ela mesma lhe cravara,
144. No próprio coração toda a enterra,
145. E junto ao triste amante exala a vida.
146. Amor então, mas tarde, condoído
147. Do desastrado fim dos dois amantes,
148. E por memória eterna deste caso,
149. Ambos convertem em preciosas pedras:
150. Arapira em diamante, que em dureza
151. E em se abrandar com sangue ainda mostra
152. E Itaubí em Jacinto; cujo nome
153. Da voz final tomou, que o triste moço
154. Ao finar-se exalou; gema, que ostenta
155. No amarelo e sanguíneo a cor e o sangue,
156. Que ao fugir-lhe o espírito, o cobria.
157. Belíssima Melissa, tu que o colo
158. E torneados braços adereças
159. Destas brilhantes pedras, que desprezas
160. Os ternos corações, que mil amantes
161. Suspirando te ofertam: considera
162. Que Arapira, qual tu, foi Ninfa bela,
163. E que seu coração a Amor esquivo
164. A tornou nessas gemas, que em ti brilham;
165. Tarde de não amar arrependida.
A ROSA DO MATO
No documento
O Arcadismo em Metamorfoses, de Antonio Dinis da Cruz e Silva
(páginas 129-132)