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O apanhador de desperdícios

CAPÍTULO 3 MANOEL DE BARROS: O MENINO DO MATO E SUAS

3.5 O apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras

fatigadas de informar. Dou mais respeito

às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo.

Entendo bem o sotaque das águas Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade

das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado

para gostar de passarinhos.

Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos

como as boas moscas.

Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.

eu sou da invencionática.

Só uso a palavra para compor meus silêncios. (BARROS, 2018, p. 25).

No mundo globalizado, as informações se multiplicam com rapidez extraordinária, e as palavras que apenas informam não são objetos de admiração de Manoel de Barros. Palavras que informam são impessoais, objetivas e, talvez, até desumanas. Essa ideia se relaciona com o que defende Marcuse (1967), para ele:

A linguagem fechada não demonstra nem explica – comunica decisão, sentença, comando [...] A linguagem não apenas reflete esses controles, mas torna-se ela própria, um instrumento de controle até mesmo onde não transmite ordens, mas informação; onde não exige obediência, mas escolha; onde não existe submissão, mas liberdade. Essa linguagem controla reduzindo as formas linguísticas e dos símbolos de reflexão, abstração, desenvolvimento, contradição [...]. (MARCUSE, 1967, p. 107).

Manoel de Barros prefere palavras que compõem o silêncio, e neste caso, elas seriam mais humanizadas revestidas de elementos da natureza que carregam vida e sentido, fugindo assim, da linguagem autoritária de que fala Marcuse, de conceitos fechados, de palavras que só informam e não propiciam a reflexão, a investigação e, consequentemente, a liberdade. A prosa suscita algumas reflexões sobre as infâncias e seus tempos. Em meio a tantos compromissos, tendo pouco contato com a natureza, será que a criança tem a possibilidade de admirar as coisas simples do mundo? Talvez seria a hora de pararmos para pensar no tempo de fruição que as crianças precisam ter, um tempo que não é cronológico, um tempo para pensar, para criar, para fruir, para explorar, experimentar e, assim, humanizar-se. Construir sentidos a partir de suas experiências e interações é essencial no universo infantil.

O autor ainda diz: ―Meu quintal é maior do que o mundo‖! (BARROS, 2018, p. 25) Ora, que riqueza de expressão, cheia de significados e reflexões. O quintal de uma criança pode ser maior do que o mundo! Pode ser transformado em qualquer lugar do universo, com quaisquer pessoas, situações, cenários e figurinos. Basta que a criança preze as coisas desimportantes, e tenha espaço e tempo para tanto. No entanto, algumas crianças não têm a oportunidade de ter um quintal, então, é preciso pensar nas possibilidades de visita à praças, parques e áreas de ambiente natural. Contudo, mesmo essas crianças que possuem vivências em espaços mais limitados poderão transformar a cozinha de sua casa em acampamento de férias; a sala poderá vir a ser um aeroporto, e seu quarto uma sala de aula.

Essa prosa nos faz refletir sobre os sujeitos ―desimportantes‖, ou marginalizados, na sociedade contemporânea, e, também, levanta uma questão crucial na educação infantil, pois, muitas vezes, o adulto, na pressa de ensinar mais e de fazer mais, acelera o tempo da criança. O fato é que esse tempo não volta. Esse tempo é para ser vivenciado e não para que as crianças passem por ele como aviões ou mísseis, mas para viverem de barriga no chão, assim, como as palavras de Manoel de Barros, com as pedras, as tartarugas e os insetos. O poeta ainda ressalta: ―Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática.‖ (BARROS, 2018, p.25). Para ele, o mundo das invenções é mais valorizado do que o mundo tecnológico, pois criar faz com que as pessoas não se esqueçam da humanidade e do valor das palavras, objetos e pessoas.

A escola, instituição com papel social imprescindível, precisa valorizar esses mundos de invenções. Para Oliveira (2014, p. 33), ―Nos movimentos de uma educação emancipatória, livre das imposições do capital e da indústria cultural, estaria o verdadeiro sentido da escola, a formação humana.‖ Defendemos, assim, a brincadeira espontânea como eixo central na educação das crianças da Educação Infantil e do Ensino Fundamental I, uma vez que apresenta-se como possibilidade de fuga da indústria cultural, contribuindo, de forma significativa, para a formação humana.

3.5.1 Possibilidades de brincadeiras na escola a partir da prosa poética ―O apanhador de desperdícios‖

Brincar com as palavras é uma característica importante de Manoel de Barros. Então, seguindo essa perspectiva, a escola pode propor às crianças brincadeiras com parlendas, trava- línguas, poesias, quadrinhas, pensando, ainda, em outras brincadeiras que tratam as palavras como brinquedo. Por exemplo, a turma pode brincar de trocar as palavras: uma criança diz o nome de um objeto e outra criança diz outra palavra (inventada ou não) que serviria para denotar o mesmo objeto. Se uma criança disser ―sofá‖, o outro poderá dizer ―sentador‖. Outra brincadeira com as palavras pode ser o jogo do contrário. Ao ouvirem os comandos, as crianças deverão fazer diferente, por exemplo, se ouvirem ―todos parados‖ deverão se movimentar.

Esta perspectiva nos traz também a ideia de livros/brinquedo, livros de pano, livros com imagens e sons, fantoches, entre outros que carregam uma infinidade de possibilidades lúdicas. A escola pode assim, ser um espaço que contemple esses elementos lúdicos. A presença dos livros brinquedo é importante, talvez a construção desses livros pode ser

realizadas também com as crianças. Apreciar e ter a possibilidade de inventar faz parte do processo de construção da cultura lúdica infantil.

Em sua poesia, Manoel de Barros valoriza a invenção, o poeta preza mais a natureza do que a tecnologia, assim, brincar de faz de conta com elementos da natureza, em um ambiente de paisagem natural, para ele é mais importante. Esse quintal maior que o mundo abre um leque de possibilidades brincantes no quintal de casa e da escola. As crianças precisam explorar os lugares, os objetos, a natureza, e a partir dessa exploração, e de todo seu repertório lúdico, criar inúmeras novas formas de brincar.

Manoel de Barros ainda continua: ―Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.‖ (BARROS, 2018, p. 25). Isso motiva os educadores a valorizar as expressões artísticas das crianças, promovendo tempos e espaços para a criação, e uma das possibilidades é organizar um show de calouros, atividade em que cada criança terá a possibilidade de apresentar-se para o grupo, cantando uma música de sua escolha. Naturalmente, todos serão elogiados pela iniciativa e esforço para a apresentação.

Manoel de Barros, em sua poesia apanha desperdícios; tudo o que é desperdiçado pela sociedade, para o poeta é motivo de poesia. A vagareza, o tempo do ócio, o gosto pela invenção, para o autor, são mais valorizados do que a velocidade, a tecnologia e a repetição. Nos debruçaremos a seguir sobre essas importâncias que o poeta Manoel de Barros atribuía às coisas.