• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 MANOEL DE BARROS: O MENINO DO MATO E SUAS

3.7 Pelada de barranco

Nada havia de mais prestante em nós senão a infância. O mundo começava ali. Nosso campo encostava na beira do rio. Um menino Guató chegava de canoa e embicava no barranco. Teria remado desde cedo para vir ocupar a posição de golquíper no Porto de Dona Emília Futebol Clube. Nosso valoroso time. As cercas laterais do campo eram de cansanção. Espinheiro fechado pra ninguém botar defeito. Guató já trazia do barranco duas pedras para servir de balizas. Os craques desciam da cidade como formigas. José de Camos, nosso beque de espera também tinha a

incumbência de soprar as bexigas. Porque a nossa bola era de bexiga, que às vezes caíam no rio e as piranhas devoravam. E se caísse no cansanção os espinhos furavam. Nosso campinho por miúdo só permitia time de sete: O goleiro, um beque de espera,

um beque de avanço e três na linha. Chambalé nosso técnico impunha regras: só pode mijar no rio e não pode jogar de botina. Sebastião era centroavante.

Chutava no rumo certo. Sabia as variações da bexiga no vento e botava no grau certo. Quando alguém enfiava as unhas na pedra abria uma vaga. Metade de nossos craques eram filhos de lavandeiras e outra metade de pescadores.

Na aba do campo a namorada

do Sebastião torcia: quebra esse saba, destina eles pras piranhas. Mas Chambalé não deixava destinar. Quem destina é Deusi – falava. No fim do jogo alguns iam bater bronha, outros iam no mato jogar o mantimento e outros iam pelotar passarinho. Guató pegava a canoa e remava até a aldeia a mil metros dali. A cidade onde a gente morava foi feita em cima de um pedra branca enorme. E o rio Paraguai, lá embaixo, corria com suas piranhas e os seus camalotes.

(BARROS, 2018, p. 52).

Na prosa poética ―Pelada de barranco‖, Manoel de Barros valoriza a infância. Para o autor, ―O mundo começa ali.‖ (BARROS, 2018, p. 52) Da mesma maneira, Adorno (1995) o faz. Para ele, ―[...] todo caráter, inclusive daqueles que mais tarde praticam crimes, forma-se na primeira infância, a educação que tem por objetivo evitar a repetição precisa se concentrar na primeira infância.‖ (ADORNO, 1986, p. 121). Assim, para que a barbárie que surgiu em alguns momentos da história mundial, em especial na época do holocausto, não se repita, é que a educação se concentre desde a primeira infância. Brincadeiras que envolvam respeito, solidariedade, autoconhecimento são essenciais para o processo de constituição das pessoas.

A prosa poética ―Pelada de barranco‖ demostra influência da cultura inglesa (futebol), proximidade com o amigo indígena, que compartilhava com eles momentos brincantes e sugere brincadeiras com bexigas.

Sobre seu amigo Sebastião, Manoel de Barros (2018, p.52) diz que ―ele sabia as variações da bexiga no vento e botava no grau certo‖, e é isso que as crianças fazem ao brincar: experiências, construções, representações, cálculos, e assim produzem conhecimento e culturas. Mesmo que o futebol carregasse algumas regras específicas, outras ainda eram inventadas. O clima daquele futebol era de amizade, respeito e acolhimento, por meio de uma brincadeira coletiva e intercultural.

Nas poesias de Manoel de Barros percebemos traços regionais, valorizando a voz do menino/homem do campo. Na prosa poética ficam evidentes muitos traços regionais: campo de futebol pequeno, perto do rio Paraguai, jogadores filhos de lavadeiras e pescadores, um jogador indígena que chegou ao campinho de canoa. No entanto, há a presença de um jogo criado na Inglaterra e jogado no mundo todo. O futebol aparece nesta prosa com tom regionalizado. Assim, há certa comunicação entre o universal e o regional. O futebol universal contribuiu na brincadeira dos meninos do Pantanal com algumas de suas regras e maneiras de jogar, e os meninos do Pantanal trouxeram novas cores e sabores para o futebol universal, transformando-o em pelada de barranco, jogada com bexigas.

Como aponta Lavoura (2018):

O desenvolvimento do gênero humano (a universalidade do homem) se dá ao longo da história social por intermédio de complexas mediações existentes entre os indivíduos singulares, mediações estas proporcionadas pelas relações sociais particulares que tais indivíduos estabelecem no processo de produção, reprodução e transformação da cultura humana. (LAVOURA, 2018, p. 13).

Em hipótese alguma o universal é mais importante que o regional. Essa relação entre o universal e o regional é dialógica, uma não pode desconsiderar a outra, porque tanto um quanto o outro são categorias que caminham juntas. Essa ideia passa muito longe de ser reducionista, muito pelo contrário, reducionista é a abordagem que desconsidera os processos históricos e encara apenas as diferenças como identidade de um povo.

Manoel de Barros registra, assim, suas vivências particulares/coletivas, revisita suas memórias e proseia sobre futebol. De uma maneira encantadora, o poeta nos conduz a uma viagem por essa brincadeira. Mesmo quem não gosta de futebol fica encantado com tamanha riqueza cultural. Por meio de seus escritos, ele aproxima e humaniza as pessoas, nos ajudando a enxergar com ângulos diferentes as belezas que compõem o mundo natural e as pequenas ações infantis.

A simplicidade da linguagem que Manoel de Barros utiliza, junto com sua riqueza, chama a atenção em seus escritos. Ele não objetivava instrumentalizar a poesia, mas a linguagem poética seria uma possibilidade de ir além da linguagem convencional, ultrapassando seus limites e aflorando a sensibilidade, a criticidade e as experiências estéticas verdadeiras de seus interlocutores.

Em diversas regiões do Brasil o futebol se faz presente, seja no campinho encostado na beira do rio, no gramado, na terra, na rua tranquila, no quintal ou na pracinha. Cada grupo com suas culturas, maneiras, linguagem e costumes. Por isso, o futebol transforma-se em festa, comunhão e alegria. Futebol de rua é jogado por todos aqueles que se permitem jogá-lo desde que haja parceria e respeito, e é neste sentido que Manoel de Barros escreve sua poesia, fazendo-nos pensar sobre o tema, questionando alguns elementos que estão postos, revisitando nossas memórias e fruindo uma experiência estética sensível.

3.7.1 Possibilidades de brincadeiras na escola a partir da prosa poética ―Pelada de Barranco‖

Pensar em jogo envolvendo o futebol, logo me vem à mente as crianças na escola formando dois times com a intenção de chutarem a bola nas traves para fazerem gols, o time que fizer mais gols ganha a partida. O futebol também pode ocorrer em cima de uma lona com sabão, desde que haja segurança para as crianças. Seria adequado colocar a lona em cima de um gramado, pois ele amortece as quedas. A pelada que os meninos da poesia brincavam era realizada com bexiga, me fazendo imaginar jogos e danças com bexigas na escola, talvez com música e dança livre, ou envolvendo regras mais claras, por exemplo, amarrando as

bexigas em barbantes nos pés das crianças, e, assim, cada criança tenta pisar na bexiga de outra criança.

Quando se fala em futebol, o primeiro objeto lúdico que povoa nossa mente é a bola. Penso em trazer esse brinquedo com frequência para a sala de aula, pois apresenta inúmeras possibilidades brincantes, como, por exemplo, batata quente, quando a turma estará em roda e uma criança estará no centro com os olhos vendados. As crianças irão dizer: batata quente, quente, quente, quente... e passar uma bola de mãos em mãos, até que a criança que está ao centro diga ―Queimou‖, neste caso, a criança que está com a bola na mão é ―queimada‖ e aguarda fora da roda. Também penso na brincadeira ―Bola ao cesto‖: um cesto ou uma caixa será o alvo das crianças; em uma dada distância, fixada pelo professor, a criança tentará lançar a bola dentro do cesto ou caixa. O boliche também envolve a utilização de bola e pode ser fabricado em sala com seis garrafas pet e bola com folhas de revistas e fita adesiva, ou meias. As garrafas são os pinos, e as crianças lançam a bola na tentativa de derrubá-los. As garrafas poderão ser identificadas com números, cores ou figuras de animais, assim, as crianças poderão nomear as garrafas que conseguiram derrubar.

Ao finalizar a prosa poética, Manoel de Barros (2018, p. 52) diz: ―E o rio Paraguai, lá embaixo, corria com suas piranhas e os seus camalotes.‖ Imagino o professor desenhando no chão duas linhas paralelas, as crianças dispostas atrás das linhas, e uma delas ficando no meio dessas linhas, esta criança será uma piranha. Quando o professor diz: ―Quem é amigo da piranha?‖, as crianças deverão trocar de linha e quem for pego no espaço da piranha, se tornará piranha também.

Na prosa poética ―Pelada de barranco‖ há uma valorização da infância, da brincadeira coletiva, em especial relacionada ao futebol. Mas a prosa poética ―Manoel por Manoel‖, que apresentaremos a seguir, mostra um menino que nem sempre estava rodeado por amigos, aparecendo um olhar melancólico para sua solidão na infância.