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CAPÍTULO II DEMOCRACIA REAL E DEMOCRACIA IDEAL: UM DEBATE

2.8. APESAR DISTO

Quando intitula um dos capítulos finais de O futuro da democracia como “Apesar disto”, Bobbio demonstra o quanto aumentou o espaço dos regimes democráticos no século XX, bem como após a Segunda Grande Guerra a democracia não foi derrubada nos países em que foi restaurada, enquanto caíam em outros tantos países os governos autoritários. Ele afirma, ainda, que pelo menos até então, nenhuma guerra eclodiu entre Estados democráticos, embora possam ter declarado guerras, mas não o fizeram entre si. Embora não pretendamos refutar as afirmações do autor neste aspecto, pensamos ser importante pontuar sobre duas questões que entendemos provocarem reflexões interessantes. A primeira instiga-nos a pensar sobre quais tipos de democracia Bobbio se referia no seu ensaio, ou seja, se se tratava somente daquelas democracias efetivamente consolidadas, segundo a concepção que o mesmo tinha destas. Seguindo a literalidade do texto, ele se refere aos países europeus, e de fato tais democracias não foram derrubadas no período pós-guerra. Todavia, ponderando sobre a democracia no Brasil, por exemplo, e considerando que podemos afirmar que existia uma democracia antes do Golpe Militar de 1964, é incontestável que a democracia caiu diante do autoritarismo do regime militar em plena metade do século XX. Neste caso, a hipótese de Bobbio, portanto, cairia por terra e teria sido desmentida na experiência não somente brasileira, mas de vários países da América Latina. A ditadura militar brasileira vigorou por longos 21 anos (1964-1985), e mesmo após mais de duas décadas da redemocratização, ainda são visíveis os traços (e as figuras históricas) do período nas instituições do país.

A segunda questão a considerar é que, embora os países democráticos não tenham deflagrado guerras entre si, esses mesmos Estados, no período do pós-guerra, financiaram, foram coniventes e auxiliaram a implantação de regimes ditatoriais nos anteriormente mencionados regimes autoritários propagados na América Latina. Assim, considerando estes dois aspectos, não nos posicionamos tão esperançosos quanto Bobbio o foi em relação, especialmente, as perspectivas das ainda muito recentes democracias latinoamericanas, que se encontraram tantas vezes oscilantes diante do cenário das grandes (economicamente, sobretudo) potências “democráticas” mundiais. Habermas (2007, p. 201) traz considerações interessantes neste sentido, afirmando que o fato de ser um Estado democrático, não implica que ele terá, necessariamente, relações democráticas com outros Estados. Esta pode ser uma aspiração, mas não significa uma condição. Na verdade, o que as exigências histórico-estatais demonstram é que “Estados de constituição democrática não travam menos guerras que os

regimes autoritários [...] demonstram, porém, que esses Estados se comportam de maneira menos belicista nas relações entre si”.

Mas há a possibilidade de lançar um olhar relativamente otimista. Em outra abordagem que nos parece relevante tratar neste contexto, observamos que a temática dos direitos humanos ganha cada vez mais força a partir do século XX, emergindo como uma das feições mais evidentes da volta da discussão sobre um direito cosmopolita74. Destarte, os direitos que na contemporaneidade mais se aproximam da ideia de cidadão do mundo, são os direitos humanos, posto que estes são inerentes ao ser humano enquanto tal, não se restringindo ao fato do indivíduo pertença a este ou aquele Estado. A propósito, esta expansão dos direitos humanos ocorre de forma quase simultânea a crescente conotação positiva que se tem atribuído à democracia. Podemos, inclusive, apontar “direitos humanos” como uma expressão que possui um discurso tão forte na contemporaneidade que mesmo aqueles que efetivamente o descumprem, se ocupam de defender-se desta afirmação de descumprimento. Assim, embora Bobbio (2004) afirme, ao pensar sobre o futuro da humanidade, ser cada vez maior a proclamação de direitos, ao mesmo tempo em que é cada vez mais escassa a sua efetividade75, este aparente paradoxo (referente à crescente proclamação de novos direitos, verdadeira proliferação de legislações) não invalida a sua confiança na democracia. Na verdade, ele entende que esta – conservando as suas bases e apesar das que denominou de “promessas não cumpridas”– é um regime que tem se adaptado às mudanças naturais da sociedade, de forma que pelo menos até os dias atuais, parece estar cumprindo bem o seu papel.

Neste sentido, e inspirando-se em Kant, Bobbio afirma que o atual debate sobre os direitos do homem pode até mesmo ser interpretado como um sinal premonitório (signum prognosticum) do progresso moral da humanidade, embora advirta que “um sinal premonitório não é ainda uma prova. É apenas um motivo para que não permaneçamos espectadores passivos” (BOBBIO, 2004, p. 149). Trata-se do processo de democratização das

74 Segundo Melo (2010, p. 130), a ONU, ao equiparar hierarquicamente o Conselho de Direitos

Humanos aos demais Conselhos, sinalizou no sentido que os direitos humanos passaram a ser considerados a institucionalização do direito cosmopolita.

75 Deve-se ter em mente que “o mais forte argumento adotado pelos reacionários de todos os países

contra os direitos do homem, particularmente contra os direitos sociais, não é a sua falta de fundamento, mas a sua inexequibilidade”. Portanto, não há que se falar em proteção de direitos fundamentais sem recursos ou, ainda pior, sem exigibilidade (BOBBIO, 2004, p. 23). A obra do legislador não está completa, conforme alertou Benjamin Constant (1985), quando simplesmente torna os cidadãos tranquilos, devendo esta dar ao povo tanto o desejo quanto a faculdade de executar seus direitos, sua participação no exercício do poder.

relações internacionais, tema será tratado a partir de então como o projeto cosmopolita de Bobbio para a democracia do futuro.