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CAPÍTULO II DEMOCRACIA REAL E DEMOCRACIA IDEAL: UM DEBATE

2.2. A REVANCHE DE INTERESSES

Resumindo a distinção entre a democracia dos antigos e a dos modernos em apenas uma frase seria: a primeira era direta, enquanto a segunda era representativa. As duas formas derivam do princípio da soberania popular, mas distinguem-se pelas modalidades e formas com que essa soberania é exercida (BOBBIO, 2005). Esta afirmação, apesar de óbvia, não é completa, mas apenas serve de ponto de partida para tratar da segunda promessa não cumprida da democracia, qual seja: a representação dos interesses.

A democracia moderna deveria ser comprometida com a representação política, aquela segundo a qual o representante persegue os anseios da nação ao invés dos interesses particulares dos representados, posto que a democracia representativa “também nasceu da convicção de que os representantes eleitos pelos cidadãos estariam em condições de avaliar quais seriam os interesses gerais melhor dos que os próprios cidadãos” que estariam fechados nos seus interesses particulares (BOBBIO, 2005, p. 34). Em outras palavras, os eleitos não devem ser representantes de grupos específicos de eleitores (um representante de interesses), mas dos interesses gerais do administrado (um representante político), estando esta separação dos interesses a serem defendidos pelos representantes e os interesses particulares dos representados expressamente prevista desde a constituição francesa de 1791. Portanto, a representação de interesses é exatamente o contrário da representação política, afinal na

primeira o representante está sujeito ao mandato50 vinculatório, imperativo. De todo modo, a proibição dos mandatos imperativos é uma regra presente na maioria das constituições de democracia representativa, bem como a defesa intransigente da representação política sempre encontrou convictos seguidores entre os partidários da democracia representativa “contra as tentativas de substituí-la ou de combiná-la com a representação dos interesses” (BOBBIO, 2009a, p. 37).

Esta promessa, a propósito, tem relação direta com a primeira, posto que numa sociedade em que os grupos gozam de relativa autonomia, disputando os interesses próprios contra outros grupos, não se pode evitar a representação de interesses. Assim, este princípio é continuamente transgredido em questões bem pragmáticas, como na frequente confusão feita pelos indivíduos quando defende interesses particulares como se gerais fossem, bem como na representação partidária como evidente quebra da regra da violação dos mandatos imperativos. Há ainda a agravante de tal proibição se tratar de mandamento que não tem qualquer sanção prevista (BOBBIO, 2009a).

Especificamente quanto a essa ausência de sanção destinada àqueles que quebram o princípio da representação política, no Brasil, por exemplo, a reprimenda vem num sentido oposto: caso um deputado da bancada ruralista vote contra os interesses do grupo político ou econômico que defendem, este poderá sofrer a imediata reprimenda dos seus “representados” ou do próprio partido a que esteja vinculado. Seria tratado como um traidor dos interesses do grupo que o elegeu para tal intento. Portanto, o que se vê nas democracias atuais é a típica representação dos interesses em contraponto a prometida representação política da “vontade geral” de Rousseau ou do “bem comum” de Aristóteles e Tomás de Aquino. Entretanto, é questão importante analisar o que vem a ser “bem comum” ou “interesse geral”. Estes são considerados, inclusive, como conceitos jurídicos indeterminados, por não se conseguir com precisão delimitar seu campo de ação.

O partido funciona, deveria funcionar, como coletor dos pedidos não setoriais e, colocando-se entre o eleitor e o deputado, deveria despersonalizar a relação. Sobretudo, na medida em que é o principal artífice da eleição de um determinado candidato, o partido condiciona o seu comportamento, através da disciplina do próprio partido, que é o substituto funcional do mandato imperativo. Pode-se dizer, e foi dito muitas vezes, que em um sistema de partidos organizados, onde quem outorga o mandato é o partido e não o simples eleitor, o mandato

50 Bobbio (2009a, p. 64) afirma que a representação por mandato é uma “estrada intermediária entre a

imperativo existe de fato, pelo menos nos limites em que é útil (BOBBIO, 1983, p. 70).

Mencionando um exemplo em que a representação dos interesses se sobressai sobre a representação política, Bobbio (2009a, p. 38) trata de uma relação que “vem instaurando na maior parte dos estados democráticos europeus entre os grandes grupos de interesses contrapostos (representantes respectivamente dos industriais e dos operários) e o parlamento”, qual seja: o chamado sistema social neocorporativo. Neste é estabelecida uma “relação triangular na qual o governo, idealmente representante dos interesses nacionais, intervém unicamente como mediador entre as partes sociais e, no máximo, como garante (geralmente impotente) do cumprimento do acordo.” Este sistema, considerado por alguns como uma transformação da democracia necessária para resolver os conflitos sociais, é compreendido como o contrário da representação política, sendo “uma expressão típica de representação dos interesses”.

Se por democracia moderna entende-se a democracia representativa, e se à democracia representativa é inerente à desvinculação do representante da nação com respeito ao singular indivíduo representado e aos seus interesses particulares, então a democracia moderna pressupõe a atomização da nação e a sua recomposição num nível mais elevado e ao mesmo tempo mais restrito que é o das assembleias parlamentares (BOBBIO, 2005, p. 36).

Bobbio (2009a) defende que a representação de interesses é uma forma de democracia alternativa, na qual grupos organizados servem de intermediários entre os indivíduos e a nação, e embora não prevista pela doutrina democrática, se expande naturalmente na sociedade capitalista. Para tanto, é interessante destacar o papel e a influência dos lobbies nos sistemas políticos contemporâneos, posto ser este um retrato perfeito da representação de interesses legitimada, efetiva e socialmente aceita mesmo nos Estados democráticos. Em circunstâncias como estas surge a indagação sobre até que ponto algumas destas promessas não cumpridas poderiam ter sido formuladas para as democracias reais. Quando mencionada a questão da “representação dos interesses”, nos indagamos sobre se em algum momento existiu a representação exclusivamente política, sem qualquer contaminação dos interesses de grupos ou indivíduos particularmente considerados.