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CAPÍTULO II DEMOCRACIA REAL E DEMOCRACIA IDEAL: UM DEBATE

2.3. DERROTA DO PODER OLIGÁRQUICO

A terceira promessa não cumprida da democracia refere-se à derrota do poder oligárquico, que, ao contrário do idealizado, perdura tanto nos regimes democráticos quanto nos autocráticos. Na acepção mais comum de democracia, esta pode ser compreendida como “uma das várias formas de governo, em particular aquelas em que o poder não está nas mãos de um só ou de poucos, mas de todos, ou melhor, da maior parte, como tal se contrapondo às formas autocráticas, como a monarquia e a oligarquia” (BOBBIO, 2005, p. 7). Ocorre que a democracia real não eliminou as oligarquias do poder, mas, ao contrário, por vezes nos parece que esta oligarquia apenas mudou de nome, e continua no poder sob a denominação de classe política. Assim, embora seja frequente entre os defensores da democracia a crítica às oligarquias, muitas vezes estas últimas prosseguem ditando as regras do poder político e o Estado se mantém apenas sob a fachada dos princípios democráticos. Acrescente-se ainda que, sendo a liberdade (enquanto autonomia51) o princípio inspirador do pensamento democrático, a democracia representativa “é já por si mesma uma renúncia ao princípio da liberdade como autonomia” e não conseguiu eliminar a “tradicional distinção entre governados e governantes sobre a qual se fundou todo o pensamento político” (BOBBIO, 2009a, p. 38).

Assim, considerando a democracia representativa, é preciso refletir que, também nesta, é incontestável a presença das elites no poder que (conforme a lição de Gaetano Mosca, Pareto e Michels), além de não serem capazes de extinguir as oligarquias, tendem ainda a promover o surgimento de pequenas oligarquias52. O defeito da democracia representativa se comparada à democracia direta consiste justamente nesta “tendência à formação destas pequenas oligarquias que são os comitês dirigentes dos partidos”. Mas, corrigir esta anomalia seria possível de um modo: “pela existência de uma pluralidade de oligarquias em concorrência entre si” (BOBBIO, 2009a, p. 73). Tosi (2011) afirma que a democracia representativa tende a formar esta classe política, sendo o elemento elite um fenômeno

51 Para definir autonomia, Bobbio segue a definição de Rousseau, entendendo autonomia como

liberdade, isto é, como capacidade de dar leis a si mesmo.

52Aos teóricos das elites, Bobbio (2002b) dedicou um importante estudo na obra Ensaios sobre a

Ciência Política na Itália. Ressalte-se que, segundo os escritores da teoria das elites, “a soberania popular é um ideal-limite e jamais correspondeu ou poderá corresponder a uma realidade de fato, porque em qualquer regime político, qualquer que seja a “fórmula política” sob a qual os governantes e seus ideólogos o representem, é sempre uma minoria de pessoas” (BOBBIO, 1998, p.325).

inevitável nas complexas sociedades modernas, de forma que a existência desta classe política (citada tanto pelos elitistas quanto por Max Weber) coloca em dúvida, inclusive, a já mencionada retórica dos interesses gerais.

Segundo Gaetano Mosca, que Bobbio (2002b, p. 234) definiu como um “conservador obstinado e incorrigível”, o poder político essencialmente recai sob uma minoria de pessoas a que chama de classe política, que na expressão de Wright Mills é a chamada “elite do poder”. Deste modo, o referencial para distinção das formas de governo deixou de ser o número de governantes, posto que considerando esta perspectiva o poder está sempre nas mãos de uma minoria, todos os governos seriam oligárquicos. O critério passa a ser, então, a diferença quanto à formação (classes abertas ou fechadas) e quanto à organização (autocrática ou democrática) desta classe política53 (BOBBIO, 1987, p. 110).

Por teoria das Elites ou elitista [...] se entende a teoria segundo a qual, em toda a sociedade, existe, sempre e apenas, uma minoria que, por várias formas, é detentora do poder, em contraposição a uma maioria que dele está privada [...] pode ser redefinida como a teoria segundo a qual, em cada sociedade, o poder político pertence sempre a um restrito círculo de pessoas: o poder de tomar e de impor decisões válidas para todos os membros do grupo, mesmo que tenha de recorrer à força, em última instância (BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G., 1998, p. 384).

É interessante ressaltar que esta teoria das elites vai ganhar ainda mais força na ciência

política a partir do momento que foi acolhida e difundida por um personagem do campo das ciências sociais que já era internacionalmente conhecido chamado Vilfredo Pareto. Em Systèmes socialistes, ele afirmava que os homens são desiguais em todo o campo de sua atividade, ocupando vários níveis distintos na sociedade, sejam estes superiores ou inferiores. A estes que ocupam os níveis superiores (da riqueza e do poder) chamou de “elites”, constituindo, assim, a elite política ou a aristocracia. Bobbio (1998, p. 386) afirma que Pareto foi atraído principalmente pela reflexão sobre a grandeza e, ao mesmo, tempo sobre a decadência da aristocracia, ou seja, “pelo fato de que as aristocracias não duram e a história é

53 O critério de diferenciação de um regime para o outro é, segundo Bobbio (1998, p. 391), o modo

como “as elites surgem, desenvolvem-se e decaem, na base da forma diferente como se organizam e na base da forma diferente com que exercem o poder; [...] O elemento oposto à Elite, ou à não-Elite, é a massa, a qual constitui o conjunto das pessoas que não têm poder, ou pelo menos não têm um poder politicamente relevante, são numericamente a maioria, não são organizadas, ou são organizadas por aqueles que participam do poder da classe dominante e estão portanto a serviço da classe dominante”.

um teatro de contínua luta entre uma aristocracia e outra”. A teoria do equilíbrio social é fundada no “Tratatto di sociologia generale” (1916)

em grande parte, sobre o modo como se combinam, se integram e se intercambiam as diversas classes de Elite, cujas principais são as políticas (estas têm dois pólos: os políticos que usam a força (leões) e os que usam a astúcia (raposas); as econômicas (com os pólos nos especuladores e nos banqueiros) e as intelectuais (onde se contrapõem continuamente os homens de fé e os homens de ciência) (BOBBIO, 1998, p. 386).

No mesmo período em que Pareto escrevia sobre estas questões (1902-1916), Roberto Michels publicava La sociologia del partito político nella democrazia moderna na qual evidenciava que, tanto no âmbito das grandes organizações como nos partidos de massa, poderia ser observado o mesmo fenômeno percebido por Gaetano Mosca na sociedade, qual seja, o poder estava concentrado nas mãos de um grupo restrito de pessoas. Mas neste ponto aparece uma das diferenças essenciais e marcantes entre as propostas de Mosca, Pareto e de Michels: a este grupo que concentra o poder Michelis chama de “oligarquia”, enquanto Pareto, que era um conservador, utiliza o termo “aristocracia”. Deste modo, o termo oligarquia tinha propositadamente “uma conotação negativa de valor” e revelava que para Michels, um autor proveniente das filas do movimento socialista, “o fenômeno tinha um caráter degenerativo, ainda que inevitável” (BOBBIO, 1998, p. 386).

Tão inevitável que o induziu a formular precisamente a famosa (ou mal- afamada) “lei férrea da oligarquia”, cuja enunciação mais conhecida é a seguinte: “A organização é a mãe do predomínio dos eleitos sobre os eleitores, dos mandatários sobre os mandantes, dos delegados sobre os delegantes. Quem diz organização diz oligarquia” (BOBBIO, 1998, p. 386). (sem grifos no original).

Para refletir sobre esta questão, dentre os teóricos elitistas, Bobbio recorre a Schumpeter e a sua revisão do pensamento democrático. Para Schumpeter (1984, p. 313), a democracia na doutrina clássica é um “arranjo institucional para se chegar a decisões políticas que realiza o bem comum fazendo o próprio povo decidir as questões através da eleição de indivíduos que devem reunir-se para realizar a vontade desse povo”. Por conseguinte, quando parte de uma definição procedimental da democracia, Bobbio afirma que Schumpeter não apenas impulsionou esta interpretação, como estava correto quando sustentou que um governo democrático não é aquele marcado pela ausência de elites, mas pela presença de muitas elites em condições reais de concorrer entre si disputando o consenso popular. Assim, segundo

Bobbio (1987, p. 110) Schumpeter distingue os governos democráticos dos autocráticos por um critério bastante peculiar: os primeiros são caracterizados pela possibilidade de concorrência entre as elites e os segundos pelo “monopólio do governo por parte de uma única elite”. Bobbio aceita a teoria de Schumpeter e, deste modo, contribui para respaldar as teorias elitistas da democracia, o que não lhe impede, no seu ecletismo típico, de propor, como veremos no próximo capítulo, de defender a expansão da democracia participativa.