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1. O JOGO PRELIMINAR

1.3 Apito inicial

Traçamos como objetivo principal deste estudo compreender o processo de formação de grupos a partir da descrição e análise dos acontecimentos de equipes profissionais de futebol e seus modos de atuação sob a ótica dos pequenos grupos que se organizam nos clubes investigados. Considerando as características do futebol profissional, tal objetivo nos levou a: investigar os critérios existentes no processo de contratação e venda de jogadores; detectar os objetivos e perfil das categorias de base, com ênfase no processo de transição do atleta formado à equipe profissional; verificar e discutir o tratamento e postura dos dirigentes esportivos e comissão técnica em relação aos atletas das categorias de base que não conseguiram ser promovidos ao profissional; refletir sobre o processo de ambientação de atletas recém-contratados ou promovidos das categorias de base no grupo profissional; indagar sobre as ligações e configurações relacionais que se estabelecem entre jogadores e membros da comissão técnica; e interpretar o significado e consequências psíquicas e comportamentais dos processos de mudança, sobretudo dos treinadores. Ciente da diversidade de orientações/compreensões existentes referentes ao campo da Psicologia Social, vale reafirmarmos que esta pesquisa foi realizada tendo como principal referencial teórico a psicologia social postulada por Pichon-Rivière (1982; 2000, 2005)27. Foi se apropriando de conceitos da psicologia social de Kurt Lewin e George Mead e da psicanálise, sobretudo Melanie Klein (SCARCELLI, 1998) e Freud, que Pichon-Rivière formulou sua teoria.

A Psicologia Social formulada por Pichon-Rivière, “muitas vezes adjetivada de histórica, concreta ou operativa” (SCARCELLI, 2016, p.33) tem como objeto de estudo “o desenvolvimento e a transformação de uma relação dialética, que se dá entre estrutura social e fantasias inconscientes28 do sujeito” (PICHON-RIVIÈRE, 2005, p.238); indaga sobre os processos de constituição da subjetividade a partir da macro-estrutura social. E o lugar privilegiado para investigar esses fenômenos são os grupos, que para efeitos de sua teoria foi denominado de grupo operativo,

teórico a psicologia social, ainda que somente em uma delas (justamente a dissertação de mestrado de autoria do mesmo autor deste estudo) sob a orientação/viés proposta nesta tese.

27 Entendemos, tal como Scarcelli (2016), que ao tomarmos as obras de Pichon-Rivière como base teórica para

elaboração de nossas ideias, estamos amadurecendo e reconstruindo sua teoria, como parte do processo criativo, configurando não mais necessariamente seus enunciados, mas sua ressignificação a partir de nossas experiências singulares.

28 Segundo Pichon-Rivière (2005, p.76), a fantasia inconsciente pode ser conceituada como o “projeto ou a estratégia

entendido, de acordo com Scarcelli (2016, p.85) em “instrumento para obter uma práxis”, cuja finalidade está em proporcionar uma mudança.

O termo operativo refere-se ao pressuposto da existência de uma tarefa que diz respeito à elaboração de um esquema conceitual comum, condição básica para o estabelecimento da comunicação. Por ser considerado o conceito de inconsciente, na teoria em questão, estão implicados dois âmbitos: explícito e implícito. A tarefa explícita “diz respeito ao objetivo que articula o grupo, é fundamentalmente compreendida e comunicada no nível consciente e pode ser entendida como prescritiva” (SCARCELLI, 2016, p.89). A tarefa implícita de um grupo está voltada para a elaboração de ansiedades relacionadas aos medos básicos emergentes nas situações de mudança (por exemplo, a chegada de um novo jogador no time, a troca de treinador e comissão técnica etc.). Tais ansiedades, coexistentes e cooperantes, configuram uma atitude de resistência à mudança que se manifesta pelo estereótipo, enquanto reprodução cristalizada de situações e de papéis vividos pelos membros do grupo (adaptação passiva) (PICHON-RIVIÈRE, 2005).

O rompimento da estereotipia permite a mobilidade de papéis no grupo, momento de aprendizagem (adaptação ativa) que, na teoria pichoniana (PICHON-RIVIÈRE, 2005), é sempre aprendizagem de papéis em situação. Nesse sentido, a noção do papel torna-se relevante à medida que busca expressar a mútua determinação entre relações sociais concretas e constituição da subjetividade. Entende-se que papéis em interação (expressos, por exemplo, na figura do bode expiatório, líder etc.) são expressões das relações concretas, apreendidos de um modo especial pelo sujeito e traduzido em atitudes, de maneira peculiar de se vincular ao mundo. Estas atitudes poderão trazer novas qualidades às relações sociais estabelecidas.

Nessa perspectiva, quando consideramos na condição de investigador as duas dimensões (explicito/implícito) dos fenômenos presentes nos processos de interação em um clube de futebol profissional, procuramos indicar o acontecer implícito e este, segundo Pichon-Rivière (2005), manifesta-se dentro do campo de observação pelo surgimento de uma qualidade nova nesse campo, o emergente, que se expressa por meio de um conjunto de fantasias inconscientes explicitadas através do processo de atribuição e assunção de papéis.

Partilhamos neste estudo do conceito de grupo defendido por Pichon-Rivière (2005), Ana Quiroga (1989) e Bleger (1980). Para Pichon-Rivière (2005, p.163) um grupo pode ser entendido como um “conjunto de pessoas ligadas entre si por constantes de tempo e espaço, e articuladas por

sua mútua representação interna, que se propõe, de forma explícita ou implícita, uma tarefa que constitui sua finalidade”. Ana Pampliega de Quiroga, parceira afetiva e de trabalho de Pichon, compreende o grupo como “um sistema de relações cujo sentido é empreender ações destinadas a satisfazer as necessidades de seus integrantes” (QUIROGA, 1989, p.24). José Bleger, contemporâneo e seguidor das obras de Pichon-Rivière, define o grupo como "um conjunto de indivíduos que interagem entre si compartilhando certas normas numa tarefa" (BLEGER, 1980, p.101). Ao entender o grupo como unidade básica de interação, Pichon-Rivière (2005, p.242) o transforma “em unidade básica de trabalho e investigação”. Ou, como acrescentado por Scarcelli (2016, p.86), “unidade organizada a partir dos conjuntos sociais, que pode ter característica de situação espontânea ou de interação regulada quando, por exemplo, são utilizadas técnicas para potencializar essa interação”.

Desse modo, a abordagem pichoniana se faz pertinente para nossos estudos na medida em que não fragmenta a realidade que pretendemos investigar, permitindo, assim, “visualizar o interjogo entre causas internas e condições externas na produção de um fenômeno" (QUIROGA, 1986, p.40), contemplando a totalidade das determinações que operam na gênese e desenvolvimento dos processos internos e fantasias inconscientes. Tal enfoque, ao possibilitar uma compreensão mais totalizadora para as diversas determinações que operam o sujeito enquanto unidade biopsicossocial, abandona uma perspectiva estritamente intrasujeital para centrar sua análise na dialética entre os sujeitos, sobretudo a partir do interjogo entre mundo interno e mundo externo. Dedicamos um capítulo desta tese para tratar pormenorizadamente destes conceitos a fim de ampliar o conhecimento e compreensão da teoria postulada por Pichon-Rivière, principal referência para este estudo.

Diante da relevância que o futebol tem assumido na sociedade contemporânea, alguns(mas) autores(as) têm buscado uma aproximação das atividades físico-esportivas com os pressupostos da Psicologia Social. Rubio (2003b) afirma que, ao revelar em sua organização os valores inerentes a uma determinada sociedade, “toda manifestação esportiva é socialmente estruturada”. Corroboramos as afirmações da autora quanto à necessidade de entendermos o fenômeno esportivo – neste caso específico o futebol – em toda a sua complexidade, visando, portanto, a compreensão das relações entre atletas, comissão técnica, dirigentes, mídias, torcedores(as), patrocinadores e demais investidores, tratando a Psicologia para além do rendimento.

Portanto, esta pesquisa se justifica, primeiramente, pela relevância do debate acerca do processo de construção e formação de grupos de futebol profissional. Afinal, trata-se de um processo complexo que já envolve muitos esforços em tornar-se mais rentável aos clubes - e atleticamente

favorável às equipes -, mas que ainda muito pouco se preocupa com a valorização do atleta e membros da comissão técnica enquanto sujeitos de necessidades, angústias, ansiedades etc. Além disso, este estudo justifica-se por possibilitar a reflexão e questionamento do papel assumido pelos jogadores e membros da comissão técnica na concretude de suas relações em sua cotidianidade profissional.

Ainda assim, buscamos abordar um tema pouco explorado pela literatura científica nacional e internacional, trazendo contribuição para a inserção e desenvolvimento da Psicologia Social no trato com o fenômeno esportivo. A quantidade de estudos que partem do referencial teórico aqui proposto, sobretudo Pichon-Rivière, para compreender o fenômeno esportivo é escassa, principalmente se comparada à diversidade de análises e interpretações possíveis de serem realizadas no âmbito da Psicologia. Buscamos, portanto, analisar o futebol e o processo de construção das equipes a partir de um referencial teórico pouco explorado neste contexto, almejando, dessa forma, contribuir para o desenvolvimento e inserção da Psicologia Social postulada por Pichon-Rivière em sua relação com esta prática social.

Vale reforçar, como já enunciado, que esta pesquisa buscou dar continuidade à dissertação de mestrado (CASTELLANI, 2010) publicada em 2010, na qual é analisado o processo de liderança e coesão grupal no futebol profissional. Pretende-se assim ampliar e qualificar nossa contribuição para o desenvolvimento de estudos sobre o tema e que o conhecimento produzido nesse trabalho possibilite a emergência de novas questões mobilizadoras acerca do processo de formação de grupo no que se refere ao futebol. Tais questões podem ser fontes importantes para a elaboração de aspectos referentes à infraestrutura inconsciente das ideologias que se põem em jogo no grupo e que determinam o surgimento de diferentes montantes de ambiguidades e de confrontos entre subgrupos manifestados como contradição. Estratégias podem ser traçadas como fruto dessa elaboração no

âmbito de e com grupos específicos. São estratégias singulares, no caso desta pesquisa, referentes a

três clubes de futebol profissional, mas que se considerada sua dimensão institucional (que diz respeito aos grandes grupos, ou seja, sua estrutura, origem, composição, história, economia, política, ideologia etc.), poderão ser inspiradoras para refletirmos sobre a instituição futebol para além de equipes específicas. Ainda assim, conforme nos salienta Pichon-Rivière (2005, p. 69),

[...] a análise sistemática de situações grupais nos tem possibilitado registrar um conjunto de processos relacionados entre si, que nos permitem, por sua reiteração, considerá-los como fenômenos universais de todo grupo, em sua estrutura e dinâmica (PICHON-RIVIÈRE, 2005, p.69).

Grande parte dos conceitos abordados no decorrer deste estudo são inerentes e indissociados de qualquer processo grupal e, dessa forma, cabe ressaltarmos que a divisão dos capítulos e abordagem realizada, se tratam de estratégias meramente didáticas que atendem a finalidade de buscarmos facilitar para os leitores desta tese o percurso adotado no processo de elaboração de nossas ideias e construção do texto. Portanto, o organizamos de modo que o segundo capítulo (Esquema Conceitual) reflita nosso principal embasamento/sustentação teórico, ou seja, nele explicitamos as contribuições de Pichon-Rivière relacionadas aos processos grupais a partir das suas principais obras, assim como algumas de suas próprias matrizes epistemológicas. Ainda assim, buscamos também apresentar as leituras/interpretações realizadas por alguns de seus principais seguidores/discípulos, José Bleger, Ana Quiroga, Vicente Lema, dentre outros, que dedicaram parte da sua vida profissional/acadêmica ao estudo, conhecimento e disseminação da Psicologia Social pichoniana.

Em virtude da escassa e limitada compreensão e apropriação do conhecimento acerca da Psicologia Social postulada por Pichon-Rivière no campo da Psicologia do Esporte, mas, principalmente da Educação Física, a fim de favorecer o entendimento daqueles que possuem pouca ou nenhuma familiaridade com essa teoria, vimos a necessidade de apresentar mais detalhadamente alguns de seus conceitos principais, os quais norteiam nossas análises relacionadas ao processo de formação de grupo no futebol profissional.

Em seguida, no terceiro capítulo (Enquadre Metodológico) tratamos do recorte metodológico adotado para este estudo com base, sobretudo, em José Bleger, Kurt Lewin e Pichon-Rivière. Delineamos nossa perspectiva metodológica, os caminhos percorridos e os principais conceitos teóricos que nortearam nossa ida ao campo de pesquisa. Já no quarto capítulo (Os clubes do futebol profissional em ação) trouxemos para análise nossos resultados e reflexões preliminares obtidos a partir de nossa ida aos três clubes investigados, privilegiando o entendimento dos grupos em sua tripla direção, psicossocial, sociodinâmica e institucional, tal como defendido por Pichon-Rivière, José Bleger e Ianni Scarcelli. Dedicamos este capítulo ainda à explicitação e análise da rotina profissional de atletas, comissão técnica e dirigentes, bem como o regime de concentração esportiva em sua relação com os processos grupais.

Já no quinto capítulo (Reflexões sobre a constituição de grupos no futebol profissional) contemplamos nossa averiguação e entendimento acerca dos métodos costumeiramente utilizados para construção de um grupo profissional de futebol a partir da análise dos critérios existentes na

compra e venda dos direitos federativos dos atletas e comissão técnica, bem como nossa apreciação da tarefa/operação que se trava no interior dos grupos investigados, incluindo em nossa reflexão o procedimento de transição dos atletas formados nas categorias de base à equipe profissional, assim como o tratamento dos dirigentes esportivos e comissão técnica frente àqueles que não obtêm sucesso em profissionalizar-se.

No sexto capítulo (Operações travadas no interior dos grupos) trouxemos para reflexão nossas interpretações e considerações acerca do processo de adjudicação e assunção de papéis no acontecer grupal, bem como na constituição de vínculos; das circunstâncias de configuração, ou não, de aprendizagem, leitura crítica da realidade e possibilidades de modificações criativas no âmbito do futebol profissional a partir do conceito de adaptação ativa e passiva de Pichon-Rivière; e, por fim, na compreensão das ansiedades básicas (medo da perda e medo do ataque) emergentes em todo processo de mudança, sobretudo àquele relacionado às trocas de comissão técnica e transferência de jogadores.

No sétimo, e último, capítulo nos dedicamos a tecer alguns comentários e reflexões finais sobre nosso estudo. Retomamos nossos objetivos iniciais, sintetizamos nossas conclusões, apontamos dificuldades e limitações e abrimos novos caminhos e possibilidades para pesquisas futuras.

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