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5.7 Relações teórico-práticas no caso do restauro do Grande Hotel

5.7.2 Aplicação das recomendações internacionais

Como já mencionado, as cartas patrimoniais são códigos de posturas internacionais, que orientam a conduta daqueles que intervêm nos bens patrimoniais. Há que se considerar que foram documentos produzidos em determinada época e se apresentam de forma concisa. Não se tratam de instrumentos legais, apenas indicativos, mas isso não as fazem menos importantes para a preservação e a manutenção da memória que nos representa.

No caso do Grande Hotel, várias cartas patrimoniais tangenciam a questão dos restauros empreendidos no edifício. Cabe destacar algumas passagens que se destacam, que deveriam ser observadas tanto na concepção, quanto na execução dos projetos de restauração.

A noção de patrimônio e a indicação de responsabilidade de proteção dos valores arquitetônico data da primeira metade do século XX. Ficou estabelecida já

naquela época, na carta de Atenas de 31, a relevância da questão da tutela dos bens patrimoniais, na atribuição de responsabilidade aos Estados da proteção dos bens, bem como a necessidade de que as nações estabeleçam regras legais com vistas à preservação dos monumentos. O Grande Hotel de Pelotas recebeu, em tese, esse cuidado, haja vista ter sido patrimonializado por sua relevância histórica e estética, com base numa lei municipal que regulamenta o instituto do tombamento.

A Recomendação de Paris faz-se relevante neste estudo, por estabelecer limites às intervenções em áreas de interesse patrimonial protegidas por lei, como é o caso de Pelotas e seu centro histórico, bem como do Grande Hotel que deste é parte. Além do tombamento, o Grande Hotel é parte da ZPPC nº 1, outro parâmetro legal de proteção a ser respeitado e que está colocado na Recomendação de Paris, a qual prevê a “proteção legal por zonas” e algumas prescrições gerais de caráter estético.

Há que se considerar neste estudo também, que os princípios da Carta de Veneza de 1964, ainda são considerados fundamentais e válidos para o restauro de edificações. No que se refere aos aspectos simbólicos e memoriais, sendo os monumentos portadores de uma mensagem espiritual do passado, como afirma o preâmbulo da Carta, questiona-se a intervenção do Grande Hotel na medida em que seu interior foi descaracterizado, restando do aspecto original do edifício pouco mais que sua fachada e parte da configuração do ambiente térreo. Assim, entende-se que essa orientação foi apenas em parte atendida.

Outro aspecto dessa Carta, também atendido parcialmente, refere-se à orientação relativa à função dos monumentos, se considerarmos que o restauro do Grande Hotel priorizou sua utilidade, sem preservar a integridade da configuração de seus espaços internos. Se levarmos mais a fundo, poderíamos questionar até mesmo a autenticidade do bem resultante da intervenção, na medida em que a Carta entende este conceito como o “respeito pela configuração da obra”. Assim, verificando a alteração dos espaços internos, os quais retiraram as paredes de estuque e as substituíram por gesso acartonado (modificando substancialmente sua configuração espacial e sua materialidade), verifica-se uma descaracterização do edifício e de sua configuração estética. Essa alteração da configuração estética e consequente descaracterização, se verifica também no reposicionamento do teto zenital, na medida em que a relação espacial interna do grande hall ficou totalmente alterada pela modificação do pé direito desse ambiente.

Quanto à Carta do Restauro, que data de 1972, é importante destacar sua orientação com relação ao respeito fundamental às peculiaridades de conformação e construtivas dos edifícios. As intervenções nos ambientes das unidades habitacionais do Grande Hotel alteraram excessivamente as características do edifício.

A Carta orienta para a adoção de obras de manutenção e a adoção de medidas preventivas para evitar intervenções de maior amplitude. Naturalmente, considerando o precário estado de conservação do prédio, quando de sua intervenção, faziam-se necessárias intervenções expressivas. Contudo, poderiam ser evitadas as renovações que foram aplicadas, cujo fim não foi objetivar um perfil de intervenção conservativa compatível com suas características histórico-artísticas, mas sim, atender uma classificação de atributos extrínsecos ao bem patrimonial.

Nessa perspectiva, especificamente quanto à extensão das intervenções, a Carta aconselha a limitar ao mínimo as interferências, aspecto que foi atendido no que se refere às formas externas e às características de configuração da fachada. Contudo, a organização estrutural e a sequência dos espaços internos sofreu alterações importantes, logo, desrespeitando e não salvaguardando a autenticidade dos elementos construtivos, princípio que deveria sempre guiar e condicionar a escolha das operações, segundo essa orientação internacional.

Se considerarmos as orientações da Carta de Burra apresentada em 1980, a intervenção empreendida no Grande Hotel foi de “adaptação”, ou seja, o agenciamento do bem a uma nova destinação, ainda que sua “significação cultural122” - aspecto que deve ser preservado para que a intervenção receba o status de “adaptação” - tenha resultado comprometida, na medida em que os valores estéticos e históricos sofreram alterações devido às consideráveis modificações estruturais e espaciais.

Como já referido, na análise do restauro do Grande Hotel, a carta faz-se importante, devido justamente ao conceito de “significação cultural”. Para a conservação total ou parcial dos bens, tal compreensão deveria nortear as ações de salvaguarda, para que as destinações se revertessem compatíveis com o bem. Desse modo, ou seriam reversíveis, ou não modificariam substancialmente o bem, ou ainda, se modificassem, teriam trazido o menor impacto possível sobre as partes

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A significação cultural, conforme consta na Carta de Burra, designa o valor estético, histórico, científico ou social de um bem para as gerações passadas, presentes ou futuras.

da substância que apresentavam uma significação cultural, das quais destacamos a estrutura interna das unidades habitacionais e o ambiente de confraternização configurado pelo grande hall coberto de ferro e vidro.

Por outro lado, datada do mesmo ano em que o prédio foi tombado pelo município, a Carta de Petrópolis torna-se relevante no estudo do Grande Hotel, por considerar essencial a predominância do valor social da propriedade urbana sobre a sua condição de mercadoria nos processos de preservação e revitalização de centros históricos. A carta orienta que, para tanto, devem ser estabelecidos instrumentos legais para a proteção dos bens.

Porém, embora o edifício possua a prerrogativa legal do instrumento do tombo, percebe-se no caso em análise que a preocupação com a função do edifício e a possibilidade de torná-lo economicamente autossustentável se sobrepôs à preocupação com a preservação de suas características, bem como dos seus valores estéticos e históricos, na medida em que a justificativa para suas alterações seja recorrentemente a de adaptar o edifício às normas de classificação hoteleiras vigentes à época.

Há que se analisar também as intervenções aplicadas nas obras de restauro do Grande Hotel, do ponto de vista das orientações da Carta de Brasília de 1995. Segundo a indicação dessa carta, que prioriza a manutenção da autenticidade intrínseca do bem, não são aconselháveis a mera cenografia em edifícios e conjuntos de valor cultural.

Por estar localizado no centro histórico de Pelotas e por ser patrimonializado pelo poder público municipal, o edifício é parte compositiva de um conjunto histórico, atributo que lhe confere status de monumento e também reforça seu valor cultural.

Porém, ainda que o prédio tenha sofrido inúmeras mutilações nas suas características internas, quando das demolições das paredes de estuque que dividiam as unidades habitacionais originais e, embora o espaço do hall de convivência tenha se reduzido a um mero ambiente de circulação por conta da elevação do teto zenital, não se pode considerar o restauro do Grande Hotel como simples fachadismo.

À exceção do pé direito do grande hall, que resultou em mudança muito significativa, a configuração da estrutura original do andar térreo foi mantida o que, em tese, mitiga uma possível leitura mais rigorosa do resultado das intervenções.

Além das Cartas Patrimoniais, devemos considerar na avaliação deste estudo de caso outras orientações, como as indicações do Comitê de Conservação do ICOM e o Código de Ética Brasileiro do Conservador-Restaurador. Como já citado, o ICOM-CC, define Restauração como as ações executadas diretamente no patrimônio cultural tangível, cujo objetivo seja facilitar sua apreciação, compreensão e uso. No caso do Grande Hotel, percebe-se que a intervenção agrediu o principal fundamento desse conceito o qual recomenda o respeito ao material original como princípio fundamental.

Tal conceito articula-se aos princípios do Código de Ética do Conservador- Restaurador, no que se refere às orientações das Relações deste com os Bens Culturais, especialmente no ponto que destaca a necessidade de ação interdisciplinar, para levar a cabo as intervenções sob sua responsabilidade. No caso em análise, o segundo projeto de restauração foi encomendado a uma empresa de arquitetura e engenharia, já com a definição de que deveria atender determinado regramento relacionado à exploração pretendida para o bem, ou seja, a matriz de classificação hoteleira. Em tese, este foi o critério balizador da intervenção, diferentemente do princípio da discussão interdisciplinar indicado no Código de Ética.

Esse regramento, resultado de extenso debate entre profissionais e entidades representativas, reforça também os princípios teóricos da restauração, proclamando tanto a retratabilidade, quanto a mínima intervenção, bem como a compatibilidade de materiais, elementos já abordados no presente estudo.

O Código também procura estabelecer interface com o pensamento atual e com as orientações internacionais da área do patrimônio, prevendo, além disso, o extenso registro fotográfico e documental antes, durante e depois das intervenções. Neste ponto específico, não há como avaliar, no caso do Grande Hotel, se essa documentação foi produzida com o cuidado e a proporção que orienta o código de ética, uma vez que o segundo projeto de restauro teve apenas uma de suas fases concluída. Assim, tais registros podem ter sido realizados e estarem arquivados para futura compilação, após o término da segunda etapa de intervenção.

Em síntese, pode-se argumentar com base no que foi exposto, que os projetos de restauro do Grande Hotel apresentaram incongruências significativas, do ponto de vista daquilo que estabelecem as diretrizes internacionais. Assim, no que se refere às suas características de ordem orientativa, especialmente na primeira

fase do segundo projeto, tanto as Cartas Patrimoniais quanto o Código de Ética do Conservado-Restaurador indicam ter sido elementos precariamente explorados e discutidos para a construção do planejamento da restauração, em que o edifício tombado pelo poder executivo municipal foi objeto.

Ainda que as Cartas Patrimoniais e as demais orientações internacionais não sejam receituários rígidos de simples aplicação, “são documentos que se colocam como base deontológica para as várias profissões envolvidas na preservação” (KÜHL: 2010, p.289). Assim, fruto de discussão e reflexo sintético de um extenso sistema teórico, tais documentos estão à disposição e devem ser utilizados na prática, especialmente na conformação das leis de preservação, ainda que exijam análise crítica e reinterpretação profunda dentro das diferentes realidades culturais.