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1.2 Resolução de problemas

1.2.6 Aplicação de restrições na composição musical

“Você pode me perguntar onde obtenho minhas idéias (para um tema). Não posso responder a isso com certeza: elas vêm sem ser chamadas” (trecho de carta escrita por Mozart, citado em Sloboda, 1985, p.115).

Não existem muitas evidências demonstrando que os compositores anteriores ao período clássico estivessem muito interessados em escrever sobre os processos mentais envolvidos na composição de suas obras. Isso parece ter mudado a partir deste período, quando os documentos deixados por compositores como Mozart já demonstram tal preocupação (Garcia, 2001). Entretanto, até o século XIX, os escritos que foram deixados por compositores são quase sempre permeados pelo mito do gênio e, apesar de praticamente não existirem referências a casos musicais concretos nesses textos, eles contribuíram para influenciar uma visão romântica da criatividade, constantemente associada à grande capacidade de mentes “geniais”. No século XX, este fenômeno se inverte e, ao invés de falarem sobre a concepção de idéias ou a inspiração, os compositores começam a dar maior valor para a função da técnica na composição (Garcia, 2001):

Não tenho uso para uma liberdade teórica. Dêem-me algo de finito, definido - matéria que pode prestar-se à minha operação apenas na medida em que é proporcional às minhas possibilidades. E essa matéria se apresenta a meu exame acompanhada de suas limitações. Devo, de minha parte, impor minhas próprias regras ... Minha liberdade, portanto, consiste em mover-me dentro da estreita moldura que estabeleci para mim mesmo em cada um de meus empreendimentos.

Irei ainda mais longe: minha liberdade será tanto maior e mais significativa quanto mais estritamente eu estabelecer meu campo de atuação, e mais me cercar de obstáculos. Tudo o que diminui a restrição diminui a força. Quanto mais restrições

nos impusermos, mais libertamos nossa personalidade dos grilhões que aprisionam o espírito (Stravinsky, 1996, p.64).

Esta citação demonstra como a delimitação do espaço de trabalho era importante para Stravinsky e indica como ele podia aplicar regras e limitar seus movimentos dentro da

“estreita moldura” que ele criava para si. É interessante notar que ao mesmo tempo em que os compositores experts têm dificuldades para relatar certos detalhes relativos aos seus processos composicionais, eles também não negam a importância que o esforço e a aplicação de técnicas de composição exercem na produção musical (Sloboda, 1985). Ainda que essas técnicas não tenham sido muito citadas em alguns relatos de compositores mais antigos como Mozart – que viveu em uma época em que não era tão comum que se escrevesse sobre sua própria produção – não significa, porém, que não fossem utilizadas.

É claro que não se trata aqui de desvalorizar a importância de processos como, por exemplo, o insight, entretanto, conforme a pesquisa sobre o tema avança, nota-se que a expertise exerce um papel muito mais importante do que costumávamos considerar, na produção criativa de qualquer domínio.

Como vimos no item sobre a análise de protocolo (página 20) o primeiro estudo que foi feito analisando a composição musical como forma de RP foi conduzido por Reitman (1965) que qualificou e classificou as restrições utilizadas por um compositor conforme exemplificado na Tabela 3:

TABELA 3

Quadro das qualidades das restrições.

QUALIDADE DA

RESTRIÇÃO DEFINIÇÃO EXEMPLO

Constante Qualquer termo que se refira a um objeto invariável dentro de um sistema de informação (como um protocolo verbal)

No protocolo de Reitman o termo “tema” aparece 8 vezes. Pode aparecer indicando um contra-sujeito rejeitado por ser “uma repetição do tema”, mas faz referência ao “tema” (o sujeito da fuga composta no protocolo) em seu sentido invariável.

Variável Termo que pode exprimir uma série

de valores diferentes. O compositor de Reitman utiliza o termo “interesse”

associando-o a vários materiais que ele gera. Até onde o ”interesse” de objetos musicais lhe diz respeito, pode ser uma variável, com diversos valores.

Aberta Restrição cuja definição inclui um ou mais valores que não são muito bem especificados quando o problema é formulado. Elas podem ser exteriores ou interiores e podem ser aplicadas através de toda a seqüência de transformações de problemas que ocorre durante a solução como um todo, podendo se manter não especificadas até a solução do problema original.

Quando alguém decide escrever uma fuga, apesar dessa restrição externa ajudar a limitar a forma da peça, inúmeros parâmetros permanecem abertos.

Esses parâmetros precisam ser delimitados – ou restringidos – através de outras restrições abertas como

“uma idéia rítmica”, “algo mais pianístico”, e a qualidade

“aberta” destas restrições permite que o compositor tome novos caminhos sem ter que violar suas

restrições e ter que estabelecer outras (não que ele não possa fazer isso se julgar necessário), mas ajustando os parâmetros das restrições que estão abertas.

Estrutural São restrições que possuem qualidades que não são postas componente de onde surgiram.

Por exemplo, o compositor pode ter por objetivo desenvolver um sub-componente (como uma relação

“melódico-intervalar” nova que surge no encadeamento de alguns acordes) e fazer referência somente às próprias características – melódico-intervalares – daquele sub-componente em si. Ou seja, ele está assumindo esta nova restrição fora do contexto de onde ela surgiu.

Meta-restrição São restrições que se apropriam de outras classes de restrições como seu domínio.

Numa fuga, quando o compositor tem de lidar com repetições de notas ou intervalos indesejados de acordo com alguma regra, as notas e intervalos que formam estabelecidos antes – no material temático – têm preferência e os próximos eventos é que são alterados.

Analógica Restrições especificadas a partir de um objeto e sua relação com ele.

Podem assumir o nível de metáfora e podem estar baseadas na externas (“como tal ópera...”); metáforas (“como a brisa que cega...”)

Nota: Tabela feita pelo autor a partir da interpretação da qualidade das restrições como classificadas por Reitman (1965). É importante notar que a classificação proposta por Reitman é um pouco complexa e difícil de ser interpretada porque este modelo foi descrito com o objetivo de verificar a viabilidade de desenvolvimento de um programa de computador que simulasse os processos mentais envolvidos na composição musical.

Entretanto, a maior parte dos exemplos musicais foi retirada deste livro.

Vinte anos mais tarde, Sloboda (1985), reduziu, coerentemente, o tipo de restrições que são empregadas na composição musical a um número de três e Pearce & Wiggins (2002) finalmente, as sumarizaram da seguinte maneira:

1) restrições estilísticas, especificadas vagamente pelo tipo ou gênero de composição;

2) restrições internas, geradas pelo material que foi composto, seguindo algum princípio geral de consistência ou balanço;

3) restrições externas, relacionados a limitações físicas para execução, como a extensão de um instrumento ou sua exeqüibilidade, além de princípios ordinários de harmonia e estrutura.

Esta redução pode ter sido elaborada a partir da constatação de que as restrições propostas por Reitman (1965) não são mutuamente exclusivas, mas, pelo contrário, podem ser incluídas em mais de uma categoria. O próprio Reitman, por exemplo, chama a atenção para o fato de que o tipo de restrição – ou sua qualidade – tem uma variedade de características associada a ela. Assim, restrições do tipo constante e variável também podem ser abertas, pois envolvem vários parâmetros deixados abertos de acordo com a vontade do compositor. Dessa forma, uma grande contribuição dada pelo autor do célebre

“The musical mind”, foi justamente chamar a atenção para a importância que o conhecimento tem na aplicação destas restrições. É interessante notar como cada um dos 3 tipos de restrições sumarizadas acima se refere a elementos constituintes ou formadores do discurso musical.

Outro fator importante que a análise de Reitman (1965) traz, diz respeito à maneira como os problemas se transformam na prática da composição musical. Por exemplo, quando o compositor especifica que irá escrever uma fuga, essa restrição “aberta” vai trazer uma série de implicações estruturais e os próximos problemas vão, em muitos casos, ser transformações deste problema original, de modo que o anterior incida (restrinja) sobre o próximo. Esses problemas de transformação também estão ligados a um outro fenômeno que pode advém das transformações que um problema pode sofrer: a proliferação de problemas. Por conta do acúmulo de restrições que podem estar agindo sobre um problema simultaneamente em determinado momento da composição, o compositor pode se ver obrigado a ter que dar conta de várias demandas como a harmonização e a condução de vozes de um trecho, assim como sua ligação com o tema anterior ou a exeqüibilidade deste trecho.

É interessante notar que por conta desse processo de transformação e proliferação de problemas o compositor do estudo de Reitman (1965) faz muita referência a estruturas musicais internas como o “tema”, “contra-sujeito” e a procedimentos de transposição e inversão, entre outros (como vimos na Tabela 3). Talvez por isso, Sloboda (1985) julgue que as restrições internas sejam mais importantes no processo criativo, do que as externas.

“Parece que o compositor busca descobrir propriedades inicialmente, não notadas, no material já composto, para ajudá-lo a gerar novas idéias para continuar” (p.124). Entretanto a maior parte dos relatos feitos por compositores, como Mozart (página 13), indica que a forma é um dos fatores mais importantes na construção musical.

Assim, se olharmos novamente para a Tabela 3 e compararmos a qualidade destas restrições entre si, confirmaremos que, de fato, todas fazem referência a algum objeto musical interno ou externo ao espaço de solução do compositor. Mas veremos, também, que essas referências – analogias – são uma constante neste processo. Assim, ao fazer referência ao “tema”, ao “interesse”, a “algo mais pianístico”, a um subcomponente, ou mesmo ao rejeitar ou repetir uma classe de características elementares já expostas em sua fuga, o compositor estudado por Reitman (1965) estava também fazendo analogias a estes elementos.

Isto, claro, não diminui a importância da expertise no processo; pelo contrário, demonstra-a. Além disso, pode demonstrar também a capacidade ou uma estratégia para resolver problemas. A capacidade para fazer analogias não é exclusividade do expert e nem está restrita a um universo estrutural. Analogias podem assumir o nível de metáforas e podem estar baseadas tanto na experiência específica, como na experiência universal do compositor (veja a Tabela 3). Segundo Weisberg (2006) a analogia cumpre um papel importante na resolução de PME.

Variabilidade restritiva

A partir do momento em que alguns compositores começaram a escrever sobre suas técnicas de composição, ficou mais fácil perceber a função da aplicação de restrições na elaboração de novos estilos musicais como, por exemplo, o minimalismo e em métodos de composição como o dodecafonismo (Lansky & Perle, 2001; Potter, 2001). Quando se modificam as regras ou restrições a partir das quais se constrói um estilo ou método de composição, surgem novas possibilidades de combinação e direcionamento e o compositor pode vir a encontrar novos caminhos ou soluções criativas dentro desse novo modelo. O uso de restrições como forma de modificar um paradigma e gerar novas possibilidades de combinação e, portanto, de originalidade dentro do estilo ou técnica de um determinado artista, é chamado por Stokes (2001) de variabilidade restritiva.

Um bom exemplo de como um compositor pode, através da criação de algumas diretrizes, gerar tal variabilidade é visto na técnica utilizada na música Piano Phase de Steve Reich. Denominada por ele de processo musical, a variabilidade é definida por um material básico, que segue algumas regras: o material consiste em cinco alturas diferentes, distribuídas em um padrão de doze notas (Figura 1.2.6.1). As novas combinações sonoras que surgem devido à constante mudança de ritmo das vozes (mudança de fase) geram tal variabilidade.

Piano Phase

For two pianos or two marimbas

Steve Reich: Piano Phase, compassos 1-3.

É claro que, muitas vezes, o emprego indiscriminado de regras e procedimentos já existentes pode, de fato, levar o compositor a dar uma resposta “certa” ou “esperada” e evitar a produção de soluções originais, promovendo o lugar-comum. Entretanto, como vimos no exemplo de Reich, as restrições podem ser utilizadas também para gerar variabilidade. Isto significa que o uso de restrições na concepção e no desenvolvimento de uma obra de arte, ao contrário do que possa parecer, pode, também, promover ou levar o compositor a ter soluções criativas e inéditas.

As regras são:

Os dois executantes tocam o padrão continuamente. Um executante começa e o outro entra em uníssono no compasso seguinte (compassos 1-2).

O primeiro executante mantém um ritmo constante. O segundo, aumenta seu ritmo gradualmente, até que ele esteja uma nota a frente do primeiro (compasso 3).

Depois de tocarem sincronia por um instante, o segundo executante começa, novamente, a aumentar seu ritmo, e o processo de mudança de fase (phase shifting) começa novamente (compassos 3-4).

Figura 1.2.6.1.Piano Phase. Adaptado de Christensen (2004) p.99

Sendo assim, a capacidade criativa de um compositor, como forma de RP, também pode ser avaliada por sua habilidade em se mover dentro de um espaço restritivo, de gerar novas regras em seu domínio e de solucionar problemas de maneira coerente e inesperada (Pearce & Wiggins, 2002). Nesse sentido, não apenas a forma e a coerência interna de uma composição seriam determinadas conscientemente, mas também os processos criativos como um todo.