• Nenhum resultado encontrado

Apontamentos finais: A continuidade da autoria, a ruptura da propriedade Nosso estudo sobre as licenças de uso livres indica que elas participam de uma

RECURSOS DA DENÚNCIA DE PLÁGIO NA UFMG

1.5. Apontamentos finais: A continuidade da autoria, a ruptura da propriedade Nosso estudo sobre as licenças de uso livres indica que elas participam de uma

dinâmica bastante ambígua. Enquanto o copyright estabelece uma série de restrições ao compartilhamento e uso de obras licenciadas a partir da proteção dos direitos autorais, morais e patrimoniais; as licenças livres evidenciam os problemas que os direitos patrimoniais podem causar no âmbito macro da economia do conhecimento.

Partindo da proposta de flexibilizar a lei de direitos autorais sem, contudo, se comprometer com a sua completa ruptura, as licenças livres se apoiam em sua condição política como forma de escrever histórias e compor mundos. De toda forma, os discursos sustentados pelas licenças livres funcionam como práticas de

189

questionamento autoral na contemporaneidade, pois partem de uma noção de propriedade intelectual que aciona mecanismos de posse, controle e distribuição.

O deslocamento da fixidez da propriedade, nesse caso, acontece a partir da ideia de circulação de conhecimento. O que aprendemos é que, todavia, não se trata de qualquer tipo de circulação: as licenças livres não são trocas desinteressadas e portanto não funcionam como dádivas. Nas licenças livres, existe uma relação que pensa a propriedade sob outra perspectiva e, mesmo que não tencione a questão autoral, faz com que pensemos na noção de indivíduo de uma outra forma: um indivíduo múltiplo.

Devemos a esse indivíduo múltiplo, que Alfred Gell chamou de “pluralidade singular e a singularidade no plural” (2018:215), a proposta de decompor um tipo de agência autoral. Ora, se vemos nas licenças livres a representação de uma autoria que cede a posse de sua obra para que ela circule – e ainda, escolhe de quê maneira essa obra deva circular – chegamos a indicação de que as licenças híbridas inauguram algo novo e que deve ser levado em conta. Ao pensarmos no direito patrimonial (lembrando a discussão do capítulo anterior), vemos que as licenças livres propõe uma outra forma de propriedade: aquela que é compartilhada.

Se o compartilhamento é uma cláusula obrigatória, como vimos nas licenças copyleft, copyfarleft, licença de arte livre e alguns licenciamentos creative commons, a escolha pela utilização por essas licenças faz jus à escolha de uma política(?) em rede, ou melhor, de um efeito viral onde aquele que licenciou no presente poderá ser o licenciante do futuro. Também vimos outras licenças livres, como o open source, a licença do mozzila e algumas creative commons que, em diversos embates sobre critérios de distribuição e finalidades de uso, se converteram em linhas de fuga para um tipo de atuação (mais ou menos) política.

As licenças de uso livres expressam que não existe uma história única sobre os direitos autorais, frequentemente traduzidos – apressadamente – como copyright. Os dispositivos que emergiram a partir do movimento do software livre, e mais a frente, com a popularização da internet, fez com que inúmeros questionamentos surgissem em favor da distribuição de softwares, códigos, livros, obras, pessoas.

Ainda, se essa discussão parece muito distante daquilo que convencionalmente entendemos por “humano”, basta lembrar que alargar o conceito de humano é também a proposta desse trabalho.

190 Intermédio 3

A Pirate Bay da Ciência é uma mulher

“Lutamos contra a desigualdade de conhecimento no mundo todo. O conhecimento científico deveria estar disponível para todos, independentemente de sua renda, classe social ou localização geográfica. Advogamos pelo cancelamento da propriedade intelectual, ou das leis de copyright, para propósitos científicos e educacionais” Manifesto Sci-hub

Alexandra Elbakyan é uma jovem programadora e neurocientista do Cazaquistão, fundadora do site Sci-Hub, responsável por possibilitar o acesso livre a milhares de publicações científicas. Tal como Aaron Swartz, ela acredita que o compartilhamento de publicações científicas é um serviço público, e, portanto, deve ser democrático. Elbakyan, também conhecida como a “Robin Hood da ciência”, foi processada pela Reed-Elsevier, uma editora acadêmica (que ganha com os recolhimentos de direitos autorais das publicações de pesquisadores110). Em 2015,

um juiz de Nova York ordenou que o domínio Sci-Hub fosse fechado, por infringir a lei de direitos autorais.

Em 2017, o processo chegou ao fim e Elbakyan foi condenada a indenizar a Elsevier em 15 milhões de dólares111, mas não compareceu ao julgamento (Martin,

2017). O Sci-Hub, que opera na Rússia, continua funcionado, e quando um de seus sites é fechado, logo aparecem outros domínios do Sci-Hub pela rede. Tal como os rizomas, o Sci-Hub parece se multiplicar pela internet descentralizada e traduzir, com bastante mérito, a insatisfação com os modelos de publicação científica vigente. Segundo Martin:

110 Segundo reportagem do Daily BEAST (KUMLER, Emily. “Is this Science Hacker a Heroine or a

Vilan?, 2018), “Here’s why: Science research is huge business in America. We might think of research as public information, but it remains one of the most guarded, expensive, valuable products the United States produces. Taxpayers fund the National Institute of Health, which dishes out $32 billion a year in grants. Eighty percent of that funding goes to more 2,500 universities, medical schools and research institutions. Private colleges with massive endowments and public universities alike get the majority of their research funding from the federal government. Harvard, for example, receives 75 percent of its funding from the federal government.” Disponível em: https://www.thedailybeast.com/is-this-science- hacker-a-heroine-or-a-villain. Acesso em 30/06/2019

111 MARTIN, Bruno. “A Robin Hood da ciência contra o império editorial”. El país, 2017. Disponível em:

191 “ Mesmo fechando todos os domínios do Sci-Hub, seria difícil para as editoras bloquearem completamente o acesso à página. O portal pirata conta com uma direção alternativa na internet profunda Tor, formada por um grupo de servidores que criptografam o tráfego para ocultar sua origem (2017: sem página )”

Porém, a contribuição de Elbakyan não acontece sem controvérsias. O mundo editorial científico pondera que as publicações de ciência e tecnologia devem ser protegidas por direitos autorais, ao mesmo tempo que necessitam de investimentos para manter suas bibliotecas de informações. Segundo a Wikipédia112, em 2017 uma

vespa parasitoide foi descoberta por pesquisadores russos e mexicanos e recebeu o nome de idiogramma elbakyanae, em “homenagem” a Elbakyan. Em resposta, ela disse que o fato era uma extrema injustiça (Page, Benedicte, 2017), uma vez que: “If you analyse the situation with scientific publications, the real parasites are scientific publishers, and Sci-Hub, on the contrary, fights for equal access to scientific information.”113

Ao mesmo tempo, a contribuição de Elbakyan corrobora com a mesma visão política dos movimentos open acess, que acreditam que todos os artigos e pesquisas acadêmicas financiadas com recursos públicos devem ser de acesso livre, sem qualquer barreira de proteção e com licenças de uso livre. Segundo o repórter José Orenstein (2017), por exemplo, vários cientistas passaram a fazer um boicote contra a Elsevier, sendo que, na Alemanha “60 instituições de pesquisas já cortaram suas assinaturas de publicações do grupo em 2016”114

112 Wikipédia, Verbete Elbakyan. Disponível em:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Alexandra_Elbakyan#cite_note-15. Acesso em 30/05/2019.

113 “Se você analisar a situação das publicações científicas, os verdadeiros parasitas são as editoras

científicas, e o Sci-Hub, ao contrário, luta pelo acesso igualitário à informação científica” [Tradução minha de reportagem de Benedict Page], disponível em: PAGE, Benedicte. “Elbakyan pulls Sci-hub from Russia”, The BookSeller, 2017. Site: https://www.thebookseller.com/news/elbakyan-pulls-sci-hub- russia-631281. Acesso em: 30/05/2019.

114 ORENSTEIN, José. “Como está a briga do Sci-hub, o Robin Hood da ciência, com as grandes

editoras”. Nexo, 2017. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/06/26/Como-está- a-briga-do-Sci-Hub-o-‘Robin-Hood-da-ciência’-com-as-grandes-editoras. Acesso em 30/05/2019.

192

Figura 30 - - Alexandra Elbakyan em conferência em Harvard. Foto de: Apneet Jolly. Disponibilizado por Creative Commons

O que Alexandra Elbakyan nos diz sobre ciência e mulheres? Em primeiro lugar, Elbakyan nos mostra que os mundos das ciências e das instituições científicas, majoritariamente ocupadas por homens, não pode (mais) inviabilizar a presença das mulheres nesses espaços. Se até o século XX as mulheres eram relegadas do sistema educacional – creditado apenas à presença masculina, salvo raras exceções, hoje ocupamos um espaço que não foi conquistado sem luta. Escrever a história do percurso que Alexandra Elbakyan tem percorrido é também não (nos) deixar esquecer de Virgínia Bicudo, Beatriz Nascimento, Leila de Almeida Gonzáles e tantas outras mulheres que abriram acesso à escola superior e desenvolveram pesquisas importantes sobre gênero, estudos raciais e desigualdades sociais.

Em segundo lugar, Elbakyan nos mostra que as ciências precisam [mais do que nunca] discutir sobre propriedade intelectual e autorias, principalmente as autorias marcadas pela presença do direito autoral. E não só. Pensar sobre o compartilhamento de artigos científicos é também pensar sobre um outro tipo de propriedade intelectual, que também versa sobre ciências, autorias, acessos e, sobretudo, sobre propriedade: são as patentes.

193

194

PESSOA

“Coisa humana” (Paula Andrea Louaiza, 6 anos)

195 Incursão 4. Propriedade industrial, cartografia de patentes: a agência do medicamento

Preâmbulo

“Os períodos de enfermidade são ocasiões de dependência e controle social. Eles proporcionam uma oportunidade de rever relacionamentos sociais e conceitos da pessoa no mundo”.

Whyte & Van der Geest

No final de 2016 recebi o diagnóstico de ser portadora de esclerose múltipla, uma doença autoimune, neurológica e sem cura. A partir desse momento, percebi que a doença é apenas uma parte pequena do agenciamento que é tornar-se doente. São inúmeras relações que compõem o mundo daqueles que recebem tal diagnóstico, que é o mundo de tantxs outrxs: a relação com os médicos, a relação com o Governo, a relação com a indústria farmacêutica, a relação com os outros doentes, a relação com os medicamentos.

Em particular, a relação com os medicamentos me chamou atenção, não só pelo paradoxo que ela envolve, visto que, junto com os medicamentos, outros objetos são fabricados para que ele seja, de fato, mais do que uma substância química: a agência medicamento envolve segredos, placebos e, principalmente, as patentes. Geralmente, a linguagem convencional usada pelos profissionais de saúde separa o medicamento das outras coisas: existe a ênfase na tecnologia e o descompasso nas relações.

Porém, a necessidade de se falar sobre medicamentos e suas patentes, discutindo sua relação com a autoria, não veio apenas como consequência de uma pesquisa antropológica sobre propriedade intelectual. Certamente, esse é um dos pontos que esse capítulo tem por objetivo. Ao ser diagnosticada com esclerose múltipla [enquanto estudante de doutorado], refiz uma série de percursos e fazeres sobre aceitação e visibilidade. Dessa forma, a opção de escrever sobre a doença também parte de uma crítica política aos modelos de medicalização existentes e que

196

são sentidos diariamente por pessoas com deficiência115, além de perceber que o

diagnóstico de uma doença grave não é, sobretudo, um aresto infeliz do destino. A primeira vez que escutei que seria dependente de um remédio de alto custo, responsável pela diminuição dos surtos da doença, foi numa tarde de novembro de 2016. No consultório médico de uma das especialistas em esclerose múltipla no Brasil, ela disse que me indicaria o uso de um medicamento de primeira linha e que eu deveria me adaptar às reações adversas que certamente o medicamento acionaria em meu corpo. Depois que ela me contou essa breve história sobre o efeito do remédio, me perguntou se eu gostaria de ter mais filhos – pois a medicação é incompatível. Sem saber o que responder, disse: “Eu gostaria de saber com sinceridade qual será minha qualidade de vida, se vou conseguir cuidar de meus filhos já nascidos”. Ela respondeu: “os medicamentos estão muito modernos. Você conseguirá ver seus filhos se formarem”. Eu perguntei: “Mas em quais condições? ”. Ela respondeu: “Não posso te dizer”.

O que me chamou atenção, após repetir essa história insistentemente em minha memória, era o ponto central do medicamento. O uso do medicamento era a solução ou a derrocada no tratamento. Se eu queria ter mais filhos, precisava suspender a medicação, ou correria o risco de ter uma gestação com má formação fetal. Mas, quando pensei nisso com horror, a médica me tranquilizou, dizendo que haviam medicamentos compatíveis com a gravidez, mas eram medicamentos de segunda ou terceira linha, mais difíceis de serem liberados pelo SUS. Ela me disse, logo depois: “É que eles são mais caros. É um protocolo que devemos seguir, visto que são mais caros para o governo”.

Recordo aqui que, apesar da breve exposição sobre o dia em que me foi prescrito a medicação para o controle da esclerose múltipla, o diagnóstico definitivo me foi apresentado a partir de um longo processo, desenrolado em mais ou menos dez anos de sugestões (médicas) terapêuticas falhas ou incertas. Nesse tempo,

115 Paul Rabinow, citando um relatório do governo francês, pondera que a deficiência é qualquer

condição que produza um problema ou um desvio em relação àquilo considerado normal, sendo o normal “definido como a média das capacidades e chances da maioria dos indivíduos de uma sociedade.” RABINOW, Paul. Artificialidade e ilustração: da sociobiologia à biossociabilidade. Novos Estudos Cebrap, n. 31, outubro, 1991. Na esclerose múltipla, a questão da deficiência segue sendo controversa, mesmo que as limitações e as lesões causadas por esse tipo de doença desmielinizante do sistema nervoso central ultrapassem os limites legais definidos pelo âmbito jurídico relacionados a PCD (pessoas com deficiência). Sobre o assunto, ver COSTA, K. S. ; CONRADO, M.P . Corpo Jovem (d)Eficiente?. 2017. Apresentação de Trabalho no Seminário Internacional Fazendo Gênero, Florianópolis, 2017.

197

muitos outros remédios foram indicados para doenças inexistentes em meu corpo, como, por exemplo: labirintite, enxaqueca, estresse, hérnia de disco, exaustão, e assim por diante. Para cada sintoma, um fármaco distinto – com reações iatrogênicas116 diversas.

De toda forma, logo ficou claro que o medicamento é um artefato poderoso. Eu já não sabia mais o que mais me sensibilizava, se era o diagnóstico da doença ou o remédio. Enquanto pesquisadora e entusiasta declarada da open science, eu pensava se os inventores dos interferons, remédios indicados para controle da doença, imaginariam que uma caixa desse medicamento custaria mais de dez mil reais. O processo de preparação de um tipo de interferon, por exemplo, tem em seu pedido de depósito quatro inventores. Curiosamente, uma versão do interferon, o interferon- beta, foi patenteado por uma equipe de nove pesquisadores do ICB (Instituto de Ciências Biológicas) da UFMG em 2000. Esse medicamento, por exemplo, foi patenteado a partir de uma pesquisa realizada em uma instituição pública federal, com financiamentos públicos. Por que então uma caixa desse medicamento ainda custa tão caro?

Pensando no medicamento enquanto artefato, compreendemos que “eles são manifestações físicas da virtuosidade técnica e da criatividade de seu criador” (Strathern, 2015:208). Porém, em uma realidade onde os direitos de propriedade intelectual repousam em um mundo industrial, tanto a criatividade quanto a inventividade do(s) pesquisador(es) são centrifugadas em um longo e complicado processo que, ao final, dão origem ao medicamento patenteado. Os inventores, geralmente seres sem nome117, separados de seus inventos, assistem pacificamente

seus arranjos moleculares se transformarem em patentes, para então serem nomeados comercialmente por alguma das grandes indústrias farmacêuticas existentes.

116 A iatrogênese é uma doença ou reação desencadeada pelos efeitos adversos prescritos em um

tratamento terapêutico. Para Ivan Illich (1975), “em sentido estrito, uma doença iatrogênica é a que não existiria se o tratamento aplicado não fosse o que as regras da profissão recomendam, (...) em sentido mais amplo, a doença iatrogênica engloba todas as condições clínicas das quais os medicamentos, os médicos e os hospitais são os agentes patogênicos. (1975.23/24).

117 Defendo que os inventores e criadores de fármacos patenteados são “deslocados” enquanto autores

por uma série de fatores, que vão desde o patrocínio dos laboratórios de fármacos nas pesquisas e que requerem as patentes enquanto pertencentes a uma empresa farmacêutica, até pelo incentivo de capital e estrutura que tais inventores têm a partir da verba privada – situação inversamente proporcional nos centros de pesquisa públicos. Isso, no entanto, não significa a inexistência de uma autoria. Ela é, de outra forma, transformada. Veremos essa discussão adiante.

198

O medicamento também ultrapassa seu valor farmacológico (Leite, Vasconcellos 2003). Isso significa que ele vai além de sua produção, divulgação e consumo. O medicamento, quando bem utilizado, é o ponto chave de um tratamento eficaz. Mas o medicamento, tal como me era colocado, era uma caixa-preta encerrada pelos vencedores da história. Se no medicamento repousa o encanto, certamente não é apenas por seu poder de cura: talvez, seja muito mais porque as pessoas acreditam ou crêem118 em seu poder de cura, através de incontáveis discursos que centralizam

o medicamento enquanto purificam (ou isolam) suas demais dimensões.

Muitos estudos foram publicados com o intuito de refletir sobre o uso do medicamento enquanto molécula (Pignarre, 1999), enquanto artefato (Akrich 1995, 1996, Sanabria, 2009) e enquanto programa farmacopornográfico119 (Preciado, 2018),

repensando as substâncias farmacêuticas enquanto transformações em objetos e sua materialidade a partir de seu consumo. Para Preciado, por exemplo, uma doença surge como o resultado de um modelo médico e farmacêutico que, além do suporte institucional e técnico, consegue explica-la racionalmente e aplica-la de forma racional. Segundo o autor:

“Os milhares de soropositivos que morrem a cada dia na África são corpos precários cuja sobrevivência ainda não foi capitalizada como consumidora/produtora pela indústria farmacêutica ocidental (...) As indústrias farmacêuticas emergentes da Índia, do Brasil ou da Tailândia lutam ferozmente pelo direito de distribuir suas terapias antirretrovirais. Da mesma forma, ainda esperam pela comercialização de uma vacina contra a malária, em parte porque os países que precisam da vacina não podem pagar por ela.” (2018, pag.55)

Porém, a intenção aqui é explorar as possibilidades que o medicamento agencia a partir da [minha] experiência particular de indicação e uso de um certo tipo de remédio, que, em algum momento, passou a ser mais do que um objeto

118 A crença aqui é compreendida tal como Latour sugeriu em discussão sobre conhecimento e religião,

como “ essa mistura necessária de confiança e desconfiança com que temos necessidade de considerar todas as coisas que não podemos ver diretamente” (2004: 371). A crença, nesse sentido, não é um quase-conhecimento, mas uma forma outra de ver as coisas do mundo.

119 Para Paul Preciado, o regime farmacopornográfico é o surgimento de um regime pós-industrial, que

se refere “aos processos do governo biomolecular (fármaco -) e semiótico-técnico (- pornô) da subjetividade sexual”(2008:pag.36). Além disso, o autor insiste que a era farmacopornográfica inventa um novo sujeito.

199

farmacêutico: passou a ser um mediador nas relações com outros pacientes, com os profissionais de saúde e com o Estado. Nesse capítulo, discutiremos as relações que são envolvidas na agência-medicamento, ou seja, nas relações que ela envolve, seja no seu dispositivo sócio-técnico, seja no seu pertencimento a uma classe muito específica de propriedade: a patente.

Por que um estudo de patentes como experiência de autoria?120 Até agora,

vimos a autoria enquanto plágio acadêmico, enquanto plágio criativo e enquanto licença de uso livre. Quando a autoria é discutida no âmbito industrial, quando ela se torna uma invenção que requer propriedade, ela se dissocia da propriedade intelectual e participa de outro tipo de propriedade: a propriedade industrial. A propriedade industrial trabalha com a mesma noção de autoria ocidental que vimos, porém a ela se acrescentam outros tipos de agenciamentos: o inventor, o pedido de patente da invenção, a burocracia, a proteção ao produto inventado, a concessão pelo Estado.

Curiosamente, os medicamentos e suas patentes perpetuam, como mostraremos, um outro tipo de autoria, diferente da que convencionamos enquanto indivíduo/autora/criador. Isso significa que a maioria dos autores (inventores e criadores) de fármacos são, na verdade, nomes de laboratórios. Ou são segredos industriais. Ou concessões do Estado. Dificilmente humaniza-se a relação que o medicamento aciona: se o paciente não se adaptou ao medicamento, o problema é do paciente. Ele se torna, assim, mais um número de teste.

Cabe esclarecer os vocábulos escolhidos para se referir tanto à substância patenteada, como ao usuário dessa substância. O critério utilizado para a referência dos “usuários” como “pacientes” [ou mesmo “usuários”] parte da nomenclatura que os próprios pacientes acionam ao falar deles mesmos. E não só. “Pacientes” e “usuários”