• Nenhum resultado encontrado

2 COISA JULGADA E AÇÃO RESCISÓRIA: DELIMITAÇÃO LEGAL DO INSTITUTO E

2.1 Coisa julgada: visão geral e delimitação legal

2.1.5 Apontamentos sobre a desconstituição da coisa julgada e a sua relativização

Tal qual todos os demais princípios de nosso ordenamento jurídico, sejam eles constitucionais ou legais, a segurança jurídica também possui exceções à sua aplicação. E assim o é com a coisa julgada, corolária do citado princípio, a qual, em determinados casos, também poderá sofrer a sua desconstituição para dar lugar a outro valor tido como juridicamente mais relevante em certa situação.

A coisa julgada, mesmo sendo um instituto decorrente de um princípio constitucional fundamental ao Estado de Direito, tem sua formação e seus limites objetivos, subjetivos e temporal determinados pelo legislador derivado. E, não por menos, também pode o legislador dispor sobre as hipóteses em que a coisa julgada poderá ser desconstituída por

força do vilipêndio de algum valor em sua formação. Conforme lição de José Afonso da Silva:

A proteção constitucional da coisa julgada não impede, contudo, que a lei preordene regras para a sua rescisão mediante atividade jurisdicional. Dizendo que a lei não prejudicará a coisa julgada, quer-se tutelar esta contra atuação direta do legislador, contra ataque direto da lei. A lei não pode desfazer (rescindir ou anular ou tornar ineficaz) a coisa julgada. Mas pode prever licitamente, como o fez o art. 485 do Código de Processo Civil [de 1973, com correspondente no artigo 966 do CPC/2015], sua rescindibilidade por meio de ação rescisória.84

O meio próprio para desconstituir a coisa julgada, nos moldes do ordenamento e da tradição jurídica brasileira, é a ação rescisória, que, conforme analisar-se-á no tópico seguinte, “é uma ação autônoma de impugnação de decisão de mérito transitada em julgado, que se pode basear em problemas formais ou de injustiça da decisão (hipóteses previstas no art. 966, CPC)”85. As hipóteses de cabimento da ação rescisória estão taxativamente elencadas no artigo 966 do CPC/2015, o qual prevê máculas nas quais incorreu a decisão de mérito e que mereceram, segundo a vontade do legislador, excepcionar a regra geral de intangibilidade da coisa julgada.

Ante a restrição deste rol, parte da doutrina – em maior grau – e da jurisprudência começou a aceitar a chamada relativização (ou flexibilização) da coisa julgada, criando casos que, apesar de não previstos em lei, permitiriam a desconsideração da coisa julgada. Nestes casos, não haveria necessidade de propositura de ação rescisória, pois, supostamente, não teria sido formada a coisa julgada. Dois são os casos jurisprudenciais mais emblemáticos sobre o tema.

O primeiro deles refere-se às ações de investigação de paternidade nas quais não foi possível a realização de exame de DNA. Nestes casos, o Supremo Tribunal Federal86 entende que não haveria formação da coisa julgada na demanda ajuizada, pois caso contrário

84 SILVA, José Afonso da. op. cit. p. 436-437.

85 DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso ... p. 556.

86 “RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL.

REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE DECLARADA EXTINTA, COM FUNDAMENTO EM COISA JULGADA, EM RAZÃO DA EXISTÊNCIA DE ANTERIOR DEMANDA EM QUE NÃO FOI POSSÍVEL A REALIZAÇÃO DE EXAME DE DNA [...] 2.

Deve ser relativizada a coisa julgada estabelecida em ações de investigação de paternidade em que não foi possível determinar-se a efetiva existência de vínculo genético a unir as partes, em decorrência da não realização do exame de DNA, meio de prova que pode fornecer segurança quase absoluta quanto à existência de tal vínculo. 3. Não devem ser impostos óbices de natureza processual ao exercício do direito

fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser, de forma a tornar-se igualmente efetivo o direito à igualdade entre os filhos, inclusive de qualificações, bem assim o princípio da paternidade responsável [...].” (BRASIL, STF, RE 363889, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 02/06/2011, grifou-se)

verificar-se-ia uma afronta ao direito fundamental à busca da identidade, obstada por um entrave processual. Fredie Didier Jr. faz uma análise técnica sobre a temática:

O STF admitiu a renovação de demanda de investigação de paternidade, que havia sido anteriormente rejeitada por ausência de provas. Consagrou, então um caso de relativização atípica da coisa julgada. Mesmo sem dizer isto expressamente, o STF considerou como secundum eventum probationis a coisa julgada na investigação de paternidade (RE n. 363.889, rel. Min. Dias Toffoli, j. em 02.06.2011).87

O outro caso refere-se à hipótese na qual certa sentença tenha se baseado em lei posteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Como se vê, é situação na qual uma decisão – de inconstitucionalidade – do Supremo Tribunal Federal retroage para atingir uma decisão transitada em julgado (cuja formação da coisa julgada estaria, em tese, prejudicada). Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça88 possibilita a propositura de querela nullitatis a fim de se declarar a nulidade de sentença que se tenha baseado em lei inconstitucional, mesmo quando esta declaração sobrevenha àquela89. Sem que se renegue aos demais valores constitucionais uma categoria de primazia ante o ordenamento jurídico, sob a óptica exclusivamente processual é condenável a negação da formação da coisa julgada em hipóteses criadas ao bel-prazer do Poder Judiciário, em afronta, inclusive, à tripartição de poderes.

87 DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso ... p. 520.

88 PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC.

QUERELA NULLITATIS INSANABILIS. DESCABIMENTO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. RECURSO IMPROVIDO. [...] 2. O cabimento da querela nullitatis insanabilis é indiscutivelmente reconhecido em caso de defeito ou ausência de citação, se o processo correu à revelia (v.g., CPC, arts. 475-L, I, e 741, I). Todavia, a moderna doutrina e jurisprudência, considerando a possibilidade de relativização da coisa julgada quando o decisum transitado em julgado estiver eivado de vício insanável, capaz de torná-lo juridicamente inexistente, tem ampliado o rol de cabimento da querela nullitatis insanabilis. Assim, em

hipóteses excepcionais vem sendo reconhecida a viabilidade de ajuizamento dessa ação, para além da tradicional ausência ou defeito de citação, por exemplo: (i) quando é proferida sentença de mérito a despeito de faltar condições da ação; (ii) a sentença de mérito é proferida em desconformidade com a coisa julgada anterior; (iii) a decisão está embasada em lei posteriormente declarada inconstitucional pelo eg. Supremo Tribunal Federal. [...]. (BRASIL, STJ, REsp 1252902/SP, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma,

julgado em 04/10/2011, DJe 24/10/2011, grifou-se)

89 É de se destacar que do recentíssimo acórdão que julgou o Recurso Extraordinário n° 730.462/SP (cuja

publicação sequer ocorreu) extrai-se o entendimento do Supremo Tribunal Federal pela inadequação da querela

nullitatis ao caso, admitindo-se, por outro lado, a ação rescisória. Disse na sessão de julgamento o relator do

recurso, Ministro Teori Zavascki: “A decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de preceito normativo não produz automática reforma de decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente. Para que tal ocorra, será necessária a interposição de recurso próprio ou ação rescisória, nos termos do artigo 485 do Código de Processo Civil [de 1973], observado o prazo decadencial”. E: “A eficácia executiva é superveniente e não para atos anteriores, que só podem ser desfeitos em processo próprio [...] Por isso, o efeito vinculante é pró-futuro, ou seja, começa a operar da decisão do Supremo em diante, não atingindo atos anteriores.” (Cf. MIGALHAS. Decisão do STF sobre constitucionalidade de norma não reforma

automaticamente decisões anteriores. Disponível em:

<http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI221194,81042-

Não por menos, parte considerável da doutrina, como Nelson Nery Junior90 e Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Arenhart91, é relutante ao admitir que existiriam casos em que não estaria perfectibilizada a coisa julgada por vilipêndio de algum critério criado pela jurisprudência. Nesta toada, a ação rescisória é o instrumento hábil típico para a rescisão das decisões de mérito, e a qual se passa a estudar a fim de verificar a sua aplicação ao estudo que se propõe.