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2 O DESAFIO DA CONVERSÃO DO OLHAR: a construção da tese na

2.1 Aportes necessários e insuficientes: a fecundidade da articulação

Tanto a hanseníase como a política pública de saúde dirigida ao seu enfrentamento representam fenômenos de múltiplos significados, com especificidades relativas aos diversos grupos de sujeitos envolvidos.

Na minha caminhada na busca do compreender as repercussões individuais e coletivas desta doença, o principal ponto de apoio durante o mestrado foi a epidemiologia descritiva. A utilização de suas ferramentas de análise permitiu- me, na dissertação de mestrado, discernir aspectos relativos ao perfil epidemiológico desta doença em São Luís do Maranhão. E, também, possibilitou-me descrever aspectos das ações de controle da hanseníase nesta cidade.

Parte de um véu de obscuridade fora removido com o auxílio da epidemiologia descritiva. Havia muito mais, porém, a ser descoberto. Precisaria ainda de outros pontos de apoio, indispensáveis à realização do que me propusera: compreender as múltiplas dimensões da hanseníase e da política pública de seu enfrentamento, enfocando as pessoas envolvidas neste processo saúde-doença. Nas ciências sociais encontrei estes pontos de apoio. Suas ferramentas de análise permitiram-me seguir caminho, agora, com o desafio da articulação de dois campos de saberes: o saber epidemiológico das ciências da saúde e saberes sócio-político- culturais no campo das ciências sociais.

Pereira (1995, p. 3) definiu epidemiologia como o “[...] ramo das ciências da saúde que estuda, na população, a ocorrência, a distribuição e os fatores determinantes dos eventos relacionados com a saúde.” Esta definição transcende o conceito médico de etiologia, dando espaço à identificação de fatores sociais envolvidos na interação agente etiológico/hospedeiro. O estudo de fatores não- biológicos neste processo – epidemiologia social – tem duas vertentes principais. Uma enfatiza o papel de fatores comportamentais e a outra se concentra na participação dos processos sócio-econômico-políticos na origem dos danos à saúde (PEREIRA, 1995, p. 45).

Tarefa bem mais complexa seria tentar definir Ciências Sociais, até porque sob esta categoria está agrupado um conjunto de ciências – Sociologia,

Antropologia, Ciência Política, entre outras – enquanto a epidemiologia tem dimensões mais restritas, consubstanciadas na sua definição como um ramo das ciências da saúde. Uma contribuição que julgo esclarecedora quanto à necessidade do aporte das ciências sociais na compreensão do fenômeno de estudo que abordo neste trabalho foi dada por Elisa Reis. Para esta autora, “mesmo refletindo sobre o passado ou especulando sobre o futuro, o que a ciência social tem para oferecer de relevante é uma atribuição de sentido ao presente.” (REIS, 1999, p. 7).

Numa ampliação de olhares específicos – o do pesquisador da saúde e o do pesquisador das ciências sociais – percebe-se um potencial analítico de articulação de saberes, iluminando fenômenos da saúde no contexto das relações sociais e das dimensões existenciais da vida. Stallones (apud DiGiacomo, 1996, p. 2-3) afirmou existir um “território de beleza especial na interseção das ciências biomédicas e sociais”, sugerindo que epidemiologia e antropologia seriam aliados naturais. É preciso ter claro que esta aliança de saberes não se faz num tecido linear, e sim num espaço prenhe de tensões.

Minayo e outros pesquisadores (2003, p. 98), na obra Possibilidades e dificuldades nas relações entre ciências sociais e epidemiologia referem-se à “[...] dificuldade dos epidemiologistas em se apropriarem corretamente das categorias e conceitos das ciências sociais” e “ao distanciamento destes últimos dos referenciais da saúde.” Mesmo reconhecendo tais dificuldades, reputaram férteis as tentativas de articulação entre esses campos de conhecimento “para conseguir um resultado transdisciplinar”. Recomendaram a “interação dialógica [...] e não por justaposição ou subordinação de um desses campos” como “avanço inegável para a compreensão dos problemas de saúde.” (MINAYO et al., 2003, p.104).

O Congresso da AIL, em 1973, apresentou como recomendação a busca de articulação dos aportes das ciências sociais ao campo sanitário. Naquela ocasião, foi apontada a necessidade de “[...] estudos de antropologia social e psicologia como base para melhor compreensão dos pontos de vista dos pacientes, visando desenvolver melhor educação em saúde.” (ROTBERG, 1975b, p. 62).

As crenças de portadores de hanseníase quanto à origem desta doença foram estudadas por Neylan e outros (1988). Um de seus achados foi que poucos pacientes adotaram o conceito de infecção bacteriana para explicar sua doença. De fato, os atingidos pela hanseníase atribuem a sua doença a fatores que remetem desde o campo genético a dimensões espiritualistas. Assim, identificam como

fatores originantes da doença ou, na linguagem médica, fatores etiológicos: hereditariedade; transmissão sexual; alimentos perigosos; pecado; karma e distúrbios do sangue. Para estes autores, esta informação pode ser útil para “aumentar a adesão do paciente ao tratamento”, fornecendo aos profissionais de saúde “[...] estratégias interpretativas de comunicação com seus pacientes.” (NEYLAN et al.,1988, p. 231).

Volinn (1989, p. 1157), ao comparar a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS/SIDA) e a hanseníase, demonstrou que “definições podem determinar conseqüências sociais de prejuízo e incapacitação.” Afirmou que a terminologia de doenças adotada por agências governamentais “é um importante fator para predizer impacto social”. Ao longo de minha experiência profissional, cada vez que preciso comunicar a um doente que ele é portador de “hanseníase”, percebo o peso que traz consigo esta palavra – mesmo sendo menos chocante que o termo “lepra”. Tenho observado o impacto despertado pela revelação do diagnóstico, resumido numa palavra evocativa de mutilação, rejeição e solidão. E, com a consciência do peso do diagnóstico, consubstanciado numa palavra eivada de estigma, assumo como ponto de partida do tratamento um processo de esclarecimento, buscando desconstruir, lenta e persistentemente, o peso da palavra hanseníase na vida de quem a experimenta.

Para Jansen, a medicina ocidental, através da educação em saúde, funcionou como um “[...] fermento secularizante na África, destronando o curandeiro tradicional, e substituindo a bruxaria pelo registro da história médica do paciente.” (1997, p. 1). Cumpre ressaltar que tal processo de secularização, ainda que intenso, convive com a permanência de enfoques diferentes e previamente existentes sobre o processo saúde-doença, vinculados a padrões culturais e, sobretudo, a crenças religiosas.

As noções de etiologia da hanseníase foram relatadas por pacientes de Campinas-São Paulo, a Queiroz e Carrasco (1995, p. 481). Aqueles hansenianos reconheceram a importância do contágio pelo bacilo. No entanto, também atribuíram o surgimento da doença “[...] quase sempre a um processo de desequilíbrio no relacionamento com a vida, mais especificamente com o trabalho ou com o meio social e familiar.” Estas percepções dos doentes remetem ao conceito de saúde adotado pela OMS: “[...] um completo estado de bem-estar físico, mental e social, e não meramente ausência de doença.” (PEREIRA, 1995, p. 30). É esta uma

perspectiva que encarna uma visão holística do processo saúde/doença, abrindo espaço para a reflexão sobre o papel de variáveis não-biológicas – como as apontadas pelos doentes de Campinas – na origem dos processos patológicos.

De fato, considerar contribuições antropológicas na prática da educação em saúde poderia evitar muita incompreensão entre a linguagem médica tributária do pensamento ocidental e a linguagem cotidiana das culturas não filiadas a esta linha de pensamento. Queiroz e Carrasco (1995, p. 479) lembraram ser redundante afirmar a importância “[...] de um conhecimento mais profundo da experiência subjetiva da aflição e doença” para a “otimização dos serviços de saúde” que atendem o portador da hanseníase.

Opala e Boillot (1996, p. 3) constataram que a população da etnia limba de Serra Leoa costuma buscar tratamento em estágios relativamente avançados da doença. Verificou-se que, apesar de terem abandonado seus tratamentos tradicionais em resposta a um programa de controle eficaz, os limba retiveram sua visão de mundo tradicional, inclusive sua definição de doença. Para eles, uma pessoa só está doente se estiver com muita dor ou incapacidade.

Estes dois autores notaram incompreensão dos profissionais de saúde quanto às crenças e práticas dos limba, dificultando sua comunicação com os pacientes. Para superar isto, sugeriram identificar conceitos da visão de mundo limba que pudessem ser adaptados para estes profissionais transmitirem sua mensagem. Enfatizaram a visão de mundo como “[...] uma chave para entender atitudes e comportamentos dos pacientes em países em desenvolvimento.” Recomendaram trabalhar em projetos de pesquisa de curta duração com um antropólogo dotado de profundo conhecimento da cultura, mesmo que não especialista em antropologia médica. Justificaram isto pela possível demora de anos para um investigador entender a visão de mundo de uma cultura específica (OPALA; BOILLOT, 1996, p.3).

No estudo etnográfico de Caprara sobre conceituações leigas de várias doenças infecciosas (inclusive hanseníase) na cultura afro-brasileira na Bahia, estas doenças foram descritas como “doenças que pegam”, no sentido de “grudar em uma pessoa”. Este autor identificou no pensamento analógico desta cultura um importante modelo de interpretação, no qual as feridas de Omolu – importante divindade do candomblé ligada às doenças infecciosas e cutâneas – estão ligadas às lesões cutâneas de doentes. Recomendou abordagem etnográfica no estudo de

doenças infecciosas e a delimitação de medidas de prevenção a partir de interpretações da comunidade. Analisou a expectativa de mudança do “[...] comportamento de uma população quanto à prevenção de doenças e higiene quando coexistem diferentes padrões de pensamento.” (CAPRARA,1998, p. 998- 999).

A temática dos fatores que influenciam o acesso aos cuidados de saúde e o seguimento do tratamento da hanseníase foi estudada no Níger por Jaffre e Moumouni. Além do estigma da doença, estes autores perceberam que o mais importante destes fatores relacionou-se à diferença entre a etiologia e descrição clínica científica e a descrição popular. Daí recomendarem a necessidade de inquéritos antropológicos acerca das diferentes representações da doença. Sugeriram ainda examinar a possibilidade de participação de antigos pacientes em grupos de saúde pública (1994, p. 283).

Todas as referências ora citadas demonstram a importância da articulação do saber clínico-sanitário com os saberes relativos às dimensões socioculturais da existência. À luz desta constatação, é digna de nota a subestimação do caráter mais subjetivo da hanseníase no Plano de Eliminação. A abordagem desta temática no PEL está restrita a enfoques pontuais, indicando mesmo uma negligência com esta dimensão sociocultural e existencial. A ênfase é na droga, reduzindo o tratamento da hanseníase ao aspecto farmacológico da entrega dos remédios aos doentes. A questão do estigma da hanseníase e o seu peso na trajetória de vida do doente e, conseqüentemente, na sua forma de encarar a doença e o tratamento não é, de fato, considerado um aspecto a ser trabalhado de forma sistemática pelos implementadores.

A minha experiência profissional ao longo de duas décadas e o meu exercício de pesquisador sedimentam a minha convicção de que não há outro caminho que permita trabalhar as múltiplas dimensões do estigma e seus rebatimentos na política de saúde a não ser através da articulação das ciências da saúde com as ciências sociais.

Weiss e Ramakrishna (2001, p. 3) alegaram várias razões pelas quais o estigma seria “[...] uma importante consideração para a política de saúde e prática clínica.” Ele “aumentaria o fardo da doença de muitas maneiras e poderia atrasar a busca por ajuda apropriada”, além de prejudicar o “tratamento de problemas de saúde curáveis”. Citou a hanseníase paucibacilar, em estágio precoce, como

exemplo disto. Deste modo, ser informado do diagnóstico seria “provavelmente mais perturbador” para o doente que “a mancha despigmentada ou anestésica” por ele apresentada.

Pode-se considerar ainda incipiente a parceria das ciências sociais com a epidemiologia tanto no campo da produção escrita como no das atividades de campo relativas à hanseníase, com prejuízo na qualidade de tais atividades. As diferentes alternativas de superar os entraves desta interação têm resultado em percepções esclarecedoras de vários aspectos desta endemia de múltiplas e complexas dimensões.

À luz do exposto, a proposta desta tese inscreveu-se nesta busca multidisciplinar. Pretendi avaliar a política de controle da hanseníase no Brasil a partir da interação destas duas áreas do conhecimento. Analisei dados epidemiológicos relativos à doença e suas atividades de controle. Sob a inspiração das ciências sociais, ampliei o horizonte analítico com a investigação acerca das concepções de diversos sujeitos envolvidos no enfrentamento da hanseníase. Em verdade, desenvolvi um esforço de articulação destas duas dimensões, na perspectiva de contribuir para melhor desempenho da política pública em questão, no sentido de um trabalho que contemplasse as múltiplas dimensões que circunscrevem a hanseníase como fenômeno médico-social.

Por fim, preciso afirmar que, ao longo do meu esforço de articulação destes saberes, quanto mais percebi avançar na compreensão de diversos aspectos da hanseníase, mais se fortaleceu em mim a percepção de estar ainda arranhando a superfície de um fenômeno de grande complexidade. Tal percepção reforça a certeza de que estou começando a trilhar um caminho a exigir-me novos estudos, fortalecendo a convicção de que o conhecimento é, antes de tudo, processual e essencialmente coletivo. Cada pesquisador contribui com suas descobertas e, sobretudo, com suas questões que abrem vias de estudo e investigação.