• Nenhum resultado encontrado

4 SER HANSENIANO É ENCARNAR NO CORPO O ESTIGMA DA

4.1 O impacto do diagnóstico da hanseníase: a desestruturação do

4.1.2 Repercussões familiares: o confronto entre o amor pela pessoa e o

No item anterior foi demonstrado que um momento-chave da trajetória de vida do doente é aquele em que recebe o diagnóstico de hanseníase, durante a consulta que marca o início da PQT.

Conversando com usuários e implementadores do PEL sobre a revelação do diagnóstico da hanseníase no meio familiar, escutei depoimentos afirmando que só foi possível aos doentes partilhar esta notícia com quem lhes fosse íntimo e que julgassem capaz de saber deste fato sem rejeitá-los.

As falas seguintes demonstram a persistência do estigma da hanseníase, impondo por vezes aos doentes o silêncio como estratégia de permanência na zona de integração familiar. Para Claro (1995, p. 94), “as reações de estigmatização costumam ser menos intensas quanto mais próxima é a relação entre os indivíduos, por exemplo, entre familiares.” Esta autora lembra ainda a contribuição de Goffman, que chamou de “desacreditável” o indivíduo “[...] que tem um estigma que não é conhecido nem imediatamente perceptível”, em contraste com o “desacreditado” que tem um estigma “[...] visível ou conhecido pelos demais.” (GOFFMAN apud CLARO, 1995, p. 91). Neste sentido, “uma estratégia amplamente empregada pelo sujeito desacreditável é manusear os riscos, dividindo o mundo em um grande grupo ao qual ele não diz nada e um pequeno grupo ao qual ele diz tudo e sobre o qual, então, ele se apóia.” (GOFFMAN apud CLARO, 1995, p. 94).

Claro estabeleceu ainda uma relação entre a utilização desta estratégia e o auto-estigma apresentado pelos doentes, que definiu como “[...] uma reação psicológica de intensa depreciação que até certo ponto independe das atitudes das outras pessoas, porque se fundamenta no modo como o próprio indivíduo se vê.” (CLARO, 1995, p. 86). As falas dos doentes que entrevistei confirmaram tal constatação desta autora, além de fazerem menção à preocupação de transmitir a doença para as pessoas próximas.

Eu tive o cuidado de chamar os meus filhos e netos adultos para uma reunião. (Aurélio, doente MB).

A minha família totalmente não sabe que eu estou com essa doença. (José Maria, doente MB).

Os parentes não sabem não. [...] A única pessoa que sabe é minha mãe, meus irmãos e meu esposo. (Luisa, doente MB).

Eu tenho que respeitar as limitações. Se um paciente diz pra mim: ‘Acho que não vou contar para o esposo’. Então eu não vou insistir para que ela faça isso. Eu oriento o seguinte:’Se você achar que isso vai interferir no seu relacionamento, atrapalhar, então você não comenta. Agora é importante que ele tome conhecimento pra que ele venha aqui na unidade pra gente fazer o exame. (Maísa, enfermeira).

Eu canso de perguntar: ‘Teu marido é compreensivo?’. ‘É’. ‘Então chame e conte’. Agora, se não for; se for uma pessoa arrogante, prepotente... Porque já teve um caso lá no hospital que teve a largação. Em cima da hora, quando ela chegou e disse: ‘Olha, eu estou com esse problema...’. Ela teve marido até àquela hora, e filha, porque ele foi e levou a menina. (Firmina, auxiliar de enfermagem).

Eu estou muito preocupada com minha filha. [...] Quem garante que não passe? (Renata, doente MB).

O problema maior está no preconceito, mas existem tantas doenças piores que essa... [...] Eu fico preocupada com alguém da minha família também acontecer como aconteceu comigo, pegar assim. (Ester, doente PB).

Primeiro trouxe vergonha. Vergonha foi a primeira coisa que veio em minha cabeça... (Marcos, doente PB).

A situação do doente que ingressou na rota da desfiliação foi percebida por uma implementadora que notou o isolamento dos usuários dentro da esfera familiar, associando-o à velhice. Assim, a hanseníase adicionada às limitações da idade avançada pode constituir-se num fator de ruptura do equilíbrio do núcleo familiar.

Um paciente, principalmente idoso, não pode andar sem um acompanhante. [...] Aqui acontece muito: eles vêm pegar o remédio só. Eles vêm consultar só. Então eu acho que se você não está acompanhando o seu paciente, você está discriminando ele!. (Regina, auxiliar de enfermagem).

Outro aspecto digno de nota nos depoimentos foi a instabilidade trazida pelo diagnóstico da hanseníase aos relacionamentos afetivos dos doentes, com repercussões na intimidade sexual:

Não é mais do jeito que era, porque antigamente ele me procurava muito mais. [...] Eu não sei nem explicar de que lado foi, mas que eu acho diferente eu acho. Só que eu não comento nada com ele. (Luisa, doente MB).

Perguntei pra minha namorada se ela queria realmente continuar comigo por eu estar com isso. [...] Tive medo de transmitir. Tive medo dela estar comigo forçado. (Marcos, doente PB).

Num primeiro momento, quando eu ainda achava que podia transmitir eu fugi um pouco. (Aurélio, doente MB).

Tem muito paciente que reclama disso. Às vezes até na relação a dois. Tem medo de tocar, já tem medo de ter uma relação, porque acha que vai pegar a doença, principalmente se o companheiro veio, fez todos os exames e está tudo bem com ele. (Fernanda, assistente social).

Discorrendo sobre as repercussões da hanseníase na vida sexual, Oliveira e Romanelli (1998, p. 56) observaram que “a doença, para mulheres, não é vista como empecilho pelos seus companheiros para o relacionamento sexual, mas age como barreira para receberem outras manifestações de afeto, como beijos e carícias.” Em seu estudo feito em Ribeirão Preto, São Paulo, as mulheres “[...] se mostraram mais preconceituosas que os homens, com atitudes de auto- estigmatização, desencadeando sérios problemas no cotidiano, inclusive a discórdia e o abandono de si mesmas ou do outro.”

A despeito das falas acima citadas, os implementadores entrevistados notaram ser mais freqüente a permanência do doente na zona de integração familiar, mesmo após a revelação do diagnóstico, mesmo que isto implique no enfrentamento de dificuldades. Em seu estudo feito em Campinas, São Paulo, Queiroz e Puntel (1997, p. 102) qualificaram como moderado o estigma intrafamiliar na hanseníase, uma vez que a maioria dos seus informantes “nunca notou preconceito entre os membros da família.”

No mesmo sentido se manifestou a população entrevistada por Claro, que constatou que “a reação dos familiares e pessoas próximas diante da revelação do diagnóstico [...] geralmente era de apoio, carinho, mesmo quando era mencionado o termo lepra” e que “praticamente não foram relatadas atitudes de afastamento” (1995, p. 95). Os relatos dos implementadores entrevistados se coadunam com estas observações:

Não vou dizer que não existe mais aquele isolamento pela família. Mas hoje você encontra muito mais pessoas que abertamente falam sobre a hanseníase. (Gloria, enfermeira).

Com esse conhecimento através de campanhas, já houve uma melhora nesse sentido. Que anteriormente, quando você tinha alguma pessoa com hanseníase na família, a situação era isolar esse paciente. E hoje você já observa que não. (Roberto, médico)

Hoje eles já acolhem seu doente em casa. [...] Hoje melhorou muito. (Vera, enfermeira).

Há um confronto entre o amor pela pessoa e o medo da doença. (Fábio, psicólogo).

Queiroz e Puntel relataram três possíveis reações do indivíduo ou sua família ao diagnóstico da hanseníase: “[...] como uma catástrofe terrível, com indiferença ou com alívio.” Estes autores relacionaram estas discrepâncias ao “nível de educação e renda a que pertence o doente.” Assim:

As famílias de classe média entrevistadas perceberam o diagnóstico como algo muito negativo, embora a maioria dos tipos de hanseníase nestes estratos sociais representem formas menos graves. Entre as famílias de classe baixa, a proporção daqueles que receberam o diagnóstico com indiferença ou mesmo com alívio foi consideravelmente maior, ainda que os tipos de hanseníase nestas camadas tendam a representar formas mais graves.(QUEIROZ; PUNTEL1997, p. 105).

Ainda segundo estes autores, “para as famílias de nível educacional e renda mais altos” o diagnóstico de hanseníase “representa [...] uma ameaça direta à imagem pública e ao sentimento de identidade que elas desejam projetar para o mundo social e para si mesmas.” Para as famílias de níveis de educação e renda mais baixos, que fazem “menor investimento na imagem pública”, este diagnóstico “[...] tende a se revelar como um problema maior apenas enquanto ameaça à capacidade de trabalho.” (QUEIROZ; PUNTEL, 1997, p. 105).

Cumpre relembrar que o reconhecimento da doença pelos homens “[...] significou uma ameaça ao papel de provedor da sobrevivência familiar.” Já para as mulheres, o “[...] não-cumprimento de suas funções dentro da família” mostraria a ‘incapacidade’ de sua administração doméstica e do cuidado com os filhos, motivo para serem abandonadas pelos maridos ou companheiros. (OLIVEIRA; ROMANELLI, 1998, p. 55). Estes autores (1998, p. 57) observaram ainda que as mulheres “[...] vivem num clima de incerteza quanto à transmissão da doença para os filhos, e mesmo assim preferem ocultar destes a doença.”

Romero-Salazar e outros (1995, p. 538),. em estudo realizado na Venezuela, chamaram a atenção para a associação entre as declarações da maioria dos doentes que se declaram próximos e amparados por suas famílias com a “quase total inexistência de deformidades” nesta população. Não descartaram, porém, a construção desta percepção dos doentes a partir de “situações reais não discriminatórias” no âmbito familiar.

Todas as características acima citadas demonstram que o acompanhamento do portador de hanseníase requer da equipe de saúde o “[...] reconhecimento da necessidade de uma maior sensibilidade diante do sofrimento do paciente.” (CAPRARA; FRANCO, 1999, p. 648). E, acrescentaria, do sofrimento de suas famílias, necessitadas de esclarecimentos que facilitem o acolhimento dos doentes sem a convivência prolongada com temores derivados do estigma da doença e sem correspondência com seu potencial de contágio e suas manifestações clínicas.

Para conseguir fazer isto, as equipes de saúde precisam conhecer tanto os “prejuízos reais” acarretados pelos efeitos biológicos da hanseníase em homens e mulheres como os prejuízos decorrentes de concepções “resultantes do seu meio socioeconômico e cultural”. E isto inclui a identificação das repercussões desta doença nas famílias, espaço onde o membro ameaçado pela hanseníase precisa “[...] encontrar suporte para enfrentar o sofrimento.” (OLIVEIRA; ROMANELLI, 1998, p. 56-57).