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2 O DESAFIO DA CONVERSÃO DO OLHAR: a construção da tese na

2.2 O objeto de estudo: uma construção em processo

O fenômeno de estudo trabalhado nesta tese é o PEL. No processo de delimitar o objeto de estudo, tentei seguir as recomendações de Bourdieu (1998, p. 31) , no sentido de pensar este fenômeno relacionalmente, uma vez que um dado fenômeno “nada é fora das suas relações com o todo.”

Nas suas reflexões metodológicas, Pierre Bourdieu apresenta uma série de indicações e pistas relativas à construção do objeto de estudo.1 Este sociólogo recomenda “pensar relacionalmente”, buscando a superação da tendência do pensar substancialista em termos dos fenômenos em si. Sustenta que o pensar relacional é um exercício a ser perseguido no processo de construção do objeto e que exige um esforço racional por ser “[...] mais fácil pensar em termos de realidades que podem, por assim dizer, ser vistas claramente, grupos, indivíduos, que pensar em termos de relações.” Alerta, então, para o fato de que “[...] uma das dificuldades da análise relacional está, na maior parte dos casos, em não ser possível apreender os espaços sociais de outra forma que não seja a de distribuições de propriedades entre indivíduos.” (BOURDIEU,1998, p. 28-29).

Bourdieu caracteriza este procedimento do pensar relacionalmente como essencial na ruptura com o pré-construído. Segundo seu ponto de vista, o fenômeno de estudo é pré-construído e o objeto de estudo é construído pelo pesquisador. E esclarece:

[...] a construção do objeto – pelo menos na minha experiência de investigador – não é uma coisa que se produza de uma assentada, [...] é um trabalho de grande fôlego, que se realiza pouco a pouco, por retoques sucessivos, por toda uma série de correções, de emendas, sugeridos pelo que se chama o ofício, quer dizer, este conjunto de princípios práticos que orientam as opções ao mesmo tempo minúsculas e decisivas (BOURDIEU, 1998, p. 26-27).

Bourdieu trabalha com a noção de campo, que “[...] funciona como um sinal que lembra o que há que fazer, a saber, verificar que o objeto em questão não está isolado de um conjunto de relações de que retira o essencial das suas propriedades.” (1998, p. 27). Sugeriu também um recurso “simples e cômodo” para a construção do objeto: elaborar um “quadro dos caracteres pertinentes de um conjunto de agentes ou de instituições” relacionados ao fenômeno de estudo (1998, p. 29). E explicitou o procedimento para a construção deste quadro:

[...] Inscreve-se cada uma das instituições em uma linha e abre-se uma coluna sempre que se descobre uma propriedade necessária para caracterizar uma delas, o que obriga a pôr a interrogação sobre a presença ou ausência dessa propriedade em todas as outras – isto, na fase puramente indutiva da operação; depois, fazem-se desaparecer as repetições e reúnem-se as colunas que registram características estrutural ou funcionalmente equivalentes, de maneira a reter todas as características – e essas somente – que permitem discriminar de modo mais ou menos

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Tais indicações e pistas estão consubstanciadas em suas obras de caráter epistemológico. Dentre elas, destaco o capítulo “Introdução a uma sociologia reflexiva”, de sua obra “O poder simbólico” (BOURDIEU,1998, p. 17-58), que constituiu a fonte, por excelência, da construção do percurso investigativo que me permitiu chegar ao texto que ora apresento.

rigoroso as diferentes instituições,as quais são, por isso mesmo, pertinentes. Este utensílio, muito simples, tem a faculdade de obrigar a pensar relacionalmente, tanto as unidades sociais em questão como as suas propriedades, podendo estas ser caracterizadas em termos de presença/ausência (sim/não) (BOURDIEU, 1998, p. 29).

Como um exercício necessário do pensar relacional, decidi trabalhar o instrumento proposto por Bourdieu. Comecei elaborando um primeiro quadro relativo ao PEL e seus agentes, delimitando-os em três categorias: formuladores, personificados pela OMS, OPAS e MS; implementadores, representados pelos componentes da equipe de saúde; usuários, configurados pela população portadora de hanseníase e atendida pelo PEL. A rigor, cada um desses grupos expressa segmentos heterogêneos em termos de concepções, de interesses, de valores em relação ao enfrentamento da hanseníase. Para cada categoria,explicitei características que lhe são inerentes. A disposição no quadro das características de cada agente do PEL permitiu-me distinguir, com clareza, a inserção peculiar de cada agente no Plano.2

Em verdade, este recurso revelou-se também impulsionador de uma reflexão mais aprofundada sobre as relações a serem identificadas e, posteriormente, priorizadas neste trabalho, que foram colocadas também na forma de um quadro (ANEXO A).3 O exercício do pensar relacional sobre o PEL e seus agentes permitiu-me ir delineando contornos do objeto de estudo em termos de investigar a inserção das três categorias de agentes deste Plano num duplo movimento: identificando concepções, interesses e valores de cada segmento e analisando-os em relação às suas convergências e divergências.

Na operacionalização deste caminho metodológico, trabalhei com a noção de “dúvida radical” de Bourdieu (1998, p. 34) para refletir sobre a categoria-chave definidora do PEL: eliminação. Esta categoria apresenta uma supostamente precisa definição numérica de eliminação da hanseníase como problema de saúde pública, a partir do patamar de prevalência (casos novos e antigos em tratamento no último dia de um ano determinado) inferior a um doente por 10.000 habitantes de uma comunidade. Durante este processo de reflexão surgiram questionamentos a

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Este quadro foi apresentado no projeto de qualificação desta tese para configurar o percurso de meu raciocínio problematizador. Entendo que cumpriu um papel importante na investigação a que me propus. Porém, em benefício da dinâmica expositiva, não julguei adequado transcrevê-lo no texto final deste trabalho.

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Por se tratar de uma resultante do processo de reflexão que desenvolvi, optei por manter este quadro como um dos ANEXOS desta tese.

impulsionar buscas e estudos, tais como: Por que foi escolhido este nível de prevalência? Que dados empíricos lhe deram apoio? Seria verdadeira a suposição de declínio irreversível em direção à extinção da doença numa coletividade uma vez atingido aquele número de casos? Não estariam sendo confundidas palavras como eliminação e erradicação? Por que foi escolhida a denominação eliminação e não outra, como, por exemplo, controle? Que significados circunscrevem esta noção de eliminação no contexto do PEL?

Na busca de esclarecimentos para estes questionamentos, descobri estar em curso uma polêmica quanto a esta questão da eliminação da hanseníase entre a OMS e um exército de ONGS, o que pode ameaçar a cooperação entre esses dois atores que, inegavelmente, é essencial ao combate desta doença. Para estudiosos da epidemiologia, a citada taxa de prevalência, ou seja, um doente para cada 10.000 habitantes, “foi escolhida arbitrariamente”, e “não há dados que lhe dêem suporte”, sendo “vergonhosa” a recusa da OMS em envolver-se na discussão sobre ela. A OMS admitiu ter sido arbitrária a escolha da meta de um caso para 10.000 habitantes, mas “negou ter afirmado” que a doença desapareceria, afirmando que “ninguém tem as ferramentas para erradicar esta doença” (ARIE, 2002, p. 1-2).

Esta polêmica entre OMS e ONGS acerca do conceito de eliminação tem aspectos complexos merecedores de atenção. Por exemplo: a OMS tem adotado a política de tratar a hanseníase como uma doença infecciosa semelhante às demais no sentido de atenuar o estigma que paira sobre a mesma. Alega, então, que esta abordagem é ameaçadora para ONGS que usam imagens negativas da doença em seu esforço de conseguir doações financeiras essenciais para sua sobrevivência. As ONGS alertam para o risco de desmobilização financeira de governos e dispersão de pessoal treinado no controle da hanseníase em decorrência da insistência da OMS numa noção arbitrária de eliminação. Uma vez que é possível perceber razões plausíveis nos dois lados, até que ponto este conflito não poderia favorecer, em vez de prejudicar, o controle da hanseníase?

A controvérsia acima referida revelou discordância entre o que se tornou a posição oficial dos formuladores e as posições de implementadores das ações de eliminação da hanseníase. Entre estes últimos estão profissionais ligados às ONGS e, no caso brasileiro, também ao Sistema Único de Saúde (SUS). Este fato de inserção institucional diferenciada permite presumir haver maior heterogeneidade

neste grupo que no dos formuladores. Como estaria sendo processada a proposta hegemônica da noção de eliminação da hanseníase neste nível?

A busca de respostas para estas questões exigiu um esforço de pesquisa bibliográfica e documental. Ao longo destes procedimentos de pesquisa, ficou claro que a controvérsia em torno do tema “eliminação da hanseníase” não só tem persistido, mas até mesmo se intensificado com o passar do tempo. Para a descrição dos detalhes deste embate de concepções, as principais fontes bibliográficas que utilizei foram publicações da OMS/OPAS/MS e artigos publicados em periódicos ligados às ONGS de combate à hanseníase.

Precisei confrontar as referências citadas e atualizar as informações, buscando ampliar o corte temporal de análise deste debate até o ponto mais próximo possível da elaboração da versão escrita final da tese. O esforço analítico dos relatórios, artigos científicos e portarias da OMS/OPAS/MS me permitiu compreender melhor o universo dos formuladores do PEL. As reflexões escritas por estudiosos de várias ONGS representaram um contraponto ao universo aparentemente estável descrito nos documentos oficiais. A rede mundial de computadores me possibilitou acesso à maior parte do material deste manancial de informações.

Para adentrar no universo dos implementadores, agentes que estão na relação direta com o portador de hanseníase, a imersão no trabalho de campo foi indispensável, pois somente através desta vivência conseguiria obter os dados que tencionava buscar. Cumpre ressaltar outra faceta da imersão no trabalho de campo: sua inestimável contribuição para meu amadurecimento como pesquisador. Desta forma pude alcançar um patamar de compreensão mais aprofundado quanto aos eixos e relações constituintes do meu objeto de estudo. As conversas com implementadores e usuários trouxeram informações reveladoras quanto à relação profissional/paciente no percurso do tratamento e revelaram detalhes sobre o processo de comunicação entre estes sujeitos, marcado por questionamentos tanto sobre a doença como sobre o tratamento. Abordaram ainda os momentos de piora inesperada durante o processo terapêutico. Investigar os olhares de outros implementadores contribuiu para ampliar minha visão sobre o dia-a-dia do embate profissional com a hanseníase. Minhas percepções consolidadas por anos de atendimento aos hansenianos foram confrontadas.

O terceiro grupo de agentes – os usuários – exigiu uma investigação de amplo espectro, uma vez que o tratamento da doença que os atinge é algo que assume sentidos e significados de diferentes ordens. Nesta perspectiva, foi fundamental investigar as configurações que o PEL – para eles encarnado no tratamento médico e social que recebem – assumia em suas trajetórias de vida. No exercício cotidiano do ofício de médico junto a portadores de hanseníase, tenho percebido a complexidade emocional-afetiva do tratamento da hanseníase para o doente, considerando as implicações socioculturais desta doença.

Mantendo fidelidade à perspectiva do pensar relacional de Bourdieu, coube-me refletir sobre as relações entre os três grupos de agentes, no sentido de perceber os diferentes teores que se mesclam na tessitura de tais relações em termos de concordância, de oposição, de concorrência, de aceitação, de acomodações provisórias de interesses, de conflitos. De fato, ao longo de sucessivas aproximações, busquei “[...] construir um sistema coerente de relações, que deve ser posto à prova como tal.” (BOURDIEU, 1998, p. 32).

Ainda antes de partir para o trabalho de campo, refletindo especificamente sobre as relações entre formuladores e usuários, percebi claramente a grande distância entre estes dois grupos. Não encontrei indício de negociação entre eles, pois, afinal, negociação costuma se efetivar entre segmentos que são reconhecidos como elementos intervenientes no processo, com legitimidade para decidir. Neste sentido, parece ainda predominar o poder do saber, levando a questionar a pertinência de discutir conteúdos técnicos com quem não entende deles. A rigor, as diretrizes dos formuladores devem ser obedecidas. Em caso contrário, as complicações decorrentes da interrupção do tratamento podem ser caracterizadas como punição a comportamentos desviantes. Parece que do usuário se espera submissão irrestrita às normas técnicas do tratamento. Para os formuladores, confinados nos seus gabinetes, o usuário distante parece ser mais um dado estatístico que uma pessoa. Espera-se que ele creia que o tratamento é para o seu bem, evidenciando-se uma percepção do usuário como infantil, incapaz. A prioridade dos formuladores é levar os remédios aos doentes, relegando a segundo plano a atenção às seqüelas da doença e do tratamento e, mais ainda, as dimensões afetiva e emocional que envolvem a doença como fator de marginalização social.

Para Demo (1995, p. 15), a pobreza política passa “[...] pela falta de participação.” À luz do ora exposto, a relação dos usuários com o PEL parece destinar àqueles a definição que este autor deu ao politicamente pobre: ”[...] a pessoa ou grupo que vive a condição de massa de manobra, de objeto de dominação e manipulação, [...] coibido em sua autodeterminação.” (DEMO, 1995, p.15).

Refletindo sobre as relações travadas entre formuladores e implementadores, percebi que aqueles tendem a impor diretrizes do programa sem negociação prévia com estes, baseados em recomendações de comitês de peritos. Exemplo disto foi a forma como se decidiu diminuir de dois para um ano o tratamento multibacilar a partir de uma diretriz da OMS/OPAS/MS, inclusive para pacientes com tratamento já em curso, ou seja, dos implementadores foi esperada adesão acrítica a uma mudança do tratamento já iniciado. Em tempo, está em curso uma proposta de reduzir o tempo de tratamento de todos os pacientes para seis meses... A questão básica foi discutir quais os referenciais para a definição deste tempo, que se reveste de um sentido muito especial para quem vivencia o tratamento, quer como paciente, quer como profissional.

Minha impressão inicial foi que para os agentes formuladores do PEL, os implementadores são principalmente repassadores de medicamentos. A supervisão de atividades pareceu assumir uma perspectiva mais ameaçadora que construtiva, sendo a obediência às normas preconizadas o parâmetro principal de avaliação de um bom serviço. Cobram-se resultados sem considerar as dificuldades decorrentes da sobrecarga de atividades dos profissionais de saúde que atuam diretamente com os usuários. Não parece haver um esforço sistemático de transmissão de conhecimentos sobre a hanseníase e sobre o PEL para os implementadores. Os implementadores parecem não ser vistos pelos formuladores como profissionais- parceiros. São importantes, mas detêm menos conhecimento e suas eventuais opiniões diferentes são pouco valorizadas. Suspeitei de que os formuladores demonstrassem pouca sensibilidade com os percalços do tratamento que os usuários levarão aos implementadores, como o escurecimento da pele provocado por um dos remédios, sinal desfigurante e potencialmente revelador do diagnóstico que o doente não deseje expor no seu meio social, temendo a rejeição estigmatizante.

Outra via de reflexão que se abriu foi quanto às relações internas de cada segmento de agentes envolvidos no PEL. No nível dos formuladores, já foi mencionada a aparência de homogeneidade. O MS parece viver uma situação de constrangimento, caso não tenha bons resultados a apresentar diante da OMS. Suspeitei de que este fato pudesse influenciar as avaliações de indicadores numéricos, realçando mais os avanços que as dificuldades das ações de controle. Em verdade, suspeitei do risco de serem relatados êxitos estatísticos sem base real sólida.

Entre os implementadores podem ocorrer dificuldades de relacionamento e de trabalho conjunto, levando a contradições nas informações passadas aos usuários. O autoritarismo de um dos componentes da equipe pode travar o trabalho em grupo, e uma liderança democrática pode potencializar o melhor desempenho de todos.

Entre os usuários são freqüentes contatos informais. Minha experiência no trabalho de campo me permitiu observar parte do que acontece nas salas de espera antes do atendimento. É fato que a não-utilização do potencial de liderança dos doentes leva a prejuízo das atividades de controle da hanseníase. O usuário qualificado sob os pontos de vista técnico e humano – por exemplo, um paciente já curado ou com tratamento em curso – teria grande empatia com os doentes.

De todas estas reflexões surgiu a hipótese de que as metas ousadas do PEL parecem ter como pressuposto um universo relacional sem conflitos. Isto transpareceu na insistência dos formuladores em mencionar a eficácia da PQT sem consideração devida aos efeitos desfavoráveis e riscos deste tratamento para os pacientes. Espera-se, como ideal, um tratamento sem acidentes de percurso, quer provocados pelos remédios, quer provocados pelos pacientes.

Todas estas questões me remeteram, sobretudo, aos diferentes olhares dos sujeitos envolvidos no PEL e a reiterar a necessidade de articulação das contribuições da epidemiologia e das ciências sociais para o esclarecimento de diversos aspectos deste fenômeno que escolhi estudar. E, ao longo do trabalho de campo, procurei submeter minhas suspeitas, constatações e questionamentos iniciais ao escrutínio dos sujeitos envolvidos no PEL.

2.3 A constituição de um método de investigação: a complementaridade entre