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3 RECORTES

3.4 A APOSTA NO BRINCAR E NO GESTO MÍNIMO

Na Casa dos Cata-Ventos, há uma afirmação de que com o brincar nasce a possibilidade de um mundo em comum. Diz-se que com isso não se busca nada de útil, afirma-se “uma política da inutilidade”, visto que este fazer poderia ser capturado pelas lógicas econômicas de produção capitalística (PEDROSO; SOUZA, 2014). E, como foi dito anteriormente nesta dissertação, este projeto aposta que o brincar é, por si só, terapêutico, pela sua potência de produzir efeitos estruturantes e organizadores. Donde, a aposta como crença no mundo se faz necessária quando agimos nele. E, compreendendo a crença como uma “disposição para agir”, esta se apresenta como disposição para agir no porvir e no devir do mundo (PELBART, 2016). A equipe manifesta sua aposta na potência terapêutica do brincar, mas a potência, enquanto tal, pode estar também em outras relações e também nos próprios Seres ou entes que compõem o plano de forças da Casa dos Cata-Ventos. A aposta no elemento terapêutico do brincar implica numa aposta na intervenção, portanto, e ainda, em uma crença como disposição para agir na potência dos encontros.

A aposta no brincar não é uma aposta na criança em si, nem na criança como sujeito acabado. Filosoficamente, a partir da Filosofia da Diferença (SCHÖPKE, 2004), há sempre uma multiplicidade em cada Ser que é irredutível a uma única expressão, forma ou estado. As possibilidades do Ser extrapolam, transbordam, excedem o próprio Ser pelo que ele Poderia Ser. É a partir dos encontros com os outros Seres e entes que se dão os devires, os fluxos de territorialização e instauração de modos de existência. Uma criança, como qualquer outro Ser, não está nunca acabada, determinada, estabelecida. Essa aposta é no virtual, no campo de possibilidades e nas suas condições. A aposta é uma crença no futuro, que algo possa acontecer, que possa diferir, que possa fazer diferença.

A crença pode ser entendida em dois sentidos distintos: primeiro, a crença fundada no hábito, como a crença na mecânica de um relógio, ou na resistência de uma cadeira. São crenças estabelecidas, que permitem prever sem a exigência de verificações. Acreditamos na precisão do relógio e que cadeiras irão suportar nosso peso por hábito. Outras, são as crenças como disposição para agir, pois estas se baseiam em uma confiança no futuro. E sendo que o futuro não está dado, não está determinado a priori, confia-se assim na indeterminação e na incerteza (PELBART, 2016).

Retomando, a aposta pode ser compreendida enquanto crença no futuro e baseia-se numa confiança. Ou ainda, uma disposição para agir confiando na indeterminação e na incerteza de um futuro. Fica claro aqui que não se trata apenas de uma disposição para brincar que leva a equipe da Casa dos Cata-Ventos a confiar no futuro. Há toda uma disposição para abraçar as crianças quando entramos na Vila. Às vezes, no meio de um caos dentro do espaço da Casa, os movimentos micropolíticos da equipe para dar contorno e intervir de um modo não-violento explicitam uma aposta no futuro. O modo como a equipe trabalha, no seu fazer coletivo e político, pode dar a entender que a aposta não é nela mesma, mas no que ela pode fazer no mundo, a aposta é em outros mundos possíveis, em multiplicar os possíveis, os quais extrapolam, e muito, o real duro e habitual. Há inúmeros gestos de cumplicidade, de amorosidade, de encantamento, de respeito; gestos que, por mínimos que sejam, trazem consigo essa aposta micropolítica enquanto confiança no futuro.

De outra perspectiva, a infância, geralmente, costuma ser colocada em um lugar de “promessa de futuro”. Ela tende a carregar este fardo, inclusive sob a chancela do Estado, que vê nas crianças seus futuros cidadãos e a possibilidade de prevenir muitos problemas atuais da sociedade. Muitas são as intervenções políticas e econômicas que incidem sobre as crianças, como a educação, a assistência social, a saúde, a justiça etc. (PEDROSO, 2014).

Sim, muitas são as expectativas depositadas nas crianças em geral, mas para algumas os ideais, utopias e sonhos não estão tão palpáveis assim e o futuro assusta pela sua incerteza. É o caso daquelas que frequentam a Casa dos Cata-Ventos, onde a indeterminação e a incerteza do futuro parecem substancializar-se numa impossibilidade do próprio futuro para elas. Por isso, é preciso ter a cautela de que o trabalho experimentado com elas não contenha uma utopia projetista, ideais polidos e acabados, que constranjam o presente e o futuro delas à mera correspondência das projeções estrangeiras. Há uma atenção e uma sensibilidade da equipe em manter abertas as infinitas possibilidades do devir, que a indeterminação e imprevisibilidade do futuro sejam premissas e diretrizes ético-políticas das intervenções cataventeiras (PEDROSO, 2013).

Como nas experimentações de Deligny (2015) com os autistas, trata-se de traçar um plano comum e possível, manchado de gestos, desvios, temporalidades. A ausência de finalidade, esse trabalho inútil, prescinde de objetivos terapêuticos, pedagógicos, ocupacionais, políticos. Importa mais o que resta, esses gestos mínimos, agir para Nada, agir pelo resto do Tudo, sendo este totalização, truculência, violência. Para Deligny, o agir “é o gesto desinteressado, o movimento não-representacional, sem intencionalidade, que consiste em tecer, pintar, no limite, até mesmo escrever, num mundo em que o balanço da pedra e o ruído da água não são menos relevantes do

que o murmúrio dos homens” (PELBART, 2016, p. 299).

Portanto, os experimentos micropolíticos da Casa dos Cata-Ventos tendem a afirmar essa crença numa disposição para agir em prol de um futuro grávido de possíveis, mas não o que é nele dado como possível. Neste mundo contemporâneo, onde tudo parece possível, paradoxalmente, prevalece uma vontade de Nada, ou um Nada de vontade, e o futuro parece impossível. Diagnostica-se, com Peter Pel Pelbart (2016), esta indisposição para agir como niilismo: como uma sequela da interpretação moderna e moralista do mundo. E se torna um perigo ao fazer desacreditar nas instaurações da multiplicidade e do desejo enquanto fluxos ainda não codificados, enquanto virtualidade, forças do Caos, novidade, devir, vida em expansão. É preciso esgotar as possibilidades totalizantes para que o impossível se torne possível. Conquanto, é preciso estar atento ao que escapa às capturas da utilidade, do preferível, e afirmar esse olhar, os gestos mínimos, aquilo que resta dos sonhos e das totalizações. Não se trata de acreditar num além- mundo possível, mas que outros mundos são possíveis, outros futuros. Ter disposição para agir e para brincar despretensiosamente.