• Nenhum resultado encontrado

2 DESENHO

2.10 TENHO ABUNDÂNCIA DE [NÃO] SER FELIZ POR ISSO

A invisibilidade da Vila São Pedro, no meio da cidade, assim como a das suas crianças, contrasta com os ideais políticos ligados à noção de infância. Tal abandono, hoje em dia, soa como um anacronismo, uma realidade em grande desacordo com a construção sócio-histórica que coloca a infância como prioridade nas ações do Estado brasileiro.

A construção da noção de infância como um grupo carente ou demandante de cuidados extrafamiliares começou no Brasil com práticas educativas da igreja católica e somente depois passou a integrar as políticas do Estado brasileiro. Até a metade do século XIX todas as iniciativas de assistência em relação à infância tiveram caráter religioso; visto que se tem desde os jesuítas um modo de governar por meio das crianças com a catequização. Somente houve algumas iniciativas do Estado brasileiro nesse sentido a partir de 1850. No entanto, foi apenas no século XX e nas grandes capitais brasileiras, motivadas pelo movimento médico higienista e pelos problemas da urbanização, que as crianças apresentaram alguma relevância (ARANTES, 1995).

Durante a República Velha (1889 a 1930), a assistência à infância majoritariamente caritativa recebeu críticas de médicos, juristas e educadores, por fomentar ainda mais a miséria e a improdutividade dos pobres. Buscando uma maior racionalidade dessa assistência, desta vez por intervenção do Estado, a dita filantropia esclarecida, impõe um modelo asilar fundamentado na disciplina e nos preceitos médico-higienistas, cujo fracasso foi chamado de “caridade oficial”, por Ataulpho de Paiva em 1903 (apud RIZZINI, 1995). No entanto, este modelo asilar permaneceu intacto até final da década de 80, mudando de nome e de siglas, e os internatos, reformatórios e institutos justificaram-se para a correção dos desqualificados, dos desvalidos, isto é, dos indesejáveis à ordem e ao progresso do país (RIZZINI, 1995).

A racionalidade desta “filantropia esclarecida” parece ir ao encontro da genealogia empreitada por Michel Foucault (2008) sobre o Nascimento da Biopolítica. Seria mais por uma questão de utilidade e gestão dos perigos que a assistência às “crianças desvalidas” torna-se um interesse do governo. Muito distante da questão de garantia de direitos, o que levou o Estado a investir no cuidado da infância foi uma racionalidade liberal interessada em gerir o capital humano em termos de saúde, educação, profissionalismo etc. A arte de governar o mínimo possível para manter a concorrência no mercado faz com que o Estado invista nos cidadãos improdutivos e indisciplinados, por meio de políticas assistencialistas, como foi o caso dos internatos e reformatórios (FOUCAULT, 2008).

Acompanhando a história brasileira no século XX, percebemos a relação do Estado com seus cidadãos sofrer grandes mudanças. Em poucos momentos dessa história houve condições para se desenvolver uma democracia com real garantia de direitos. O Estado brasileiro sofreu três alterações estruturais com significativa transformação institucional, a saber: o Estado Novo, caracterizado pelo autoritarismo populista de Getúlio Vargas (1930 a 1945); a ditadura militar e o retrocesso dos precários direitos políticos e civis, (1964 a 1985), e o período de redemocratização, a partir do ano de 1985 (PEREZ; PASSONE, 2010).

institucional dos mecanismos de garantia e proteção sociais. Ainda que seja um avanço insuficiente e com um caráter populista na constituição de direitos sociais no Brasil, tem-se a institucionalização da previdência social e da assistência; a construção de uma rede de ensino básico e científico; a política de atenção à saúde; e a política habitacional (PEREZ; PASSONE, 2010).

Com a consolidação da Constituição de 1988, há o reconhecimento dos direitos constitutivos de cidadania para todos os brasileiros. Os direitos da criança e do adolescente ganham então um novo status legal, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990). Desde então, a criança passa a ter direitos civis de cidadão brasileiro. A elaboração de novas políticas e a articulação de vários segmentos sociais e governamentais se justificam na promoção e na proteção desses direitos. Foi criado também um sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente que compreende conselhos, promotorias, varas da infância, defensorias, núcleos de assistência e atendimento específicos, entre outros.

No entanto, a experiência de implementação do ECA sofre com a concepção arcaica de infância e juventude presente no imaginário social da população brasileira. Por um lado, repudiam-se práticas assistencialistas, estigmatizadoras e segregadoras que sustentaram por muitas décadas a divisão entre ‘crianças’ e ‘menores’. Por outro, tenta-se redefinir os grupos sobre os quais as políticas devem incidir, mas esses grupos continuam sendo os mais vulneráveis aos efeitos da pobreza e da exclusão social e os que representam algum tipo de ameaça à sociedade. Há aí uma certa incompatibilidade com as propostas de garantia de direitos e as políticas de segurança pública, por exemplo. Também se privilegiou, por muito tempo, a situação das crianças que sobrevivem nas ruas, todavia sem o mesmo empenho na prevenção desse quadro com políticas sociais que evitassem sua migração para a rua (RIZZINI; BARKER; CASSANIGA, 1999).

Outra força no setor assistencial de crianças e adolescentes que surge de forma organizada e possível, com a Constituição Federal de 1988, é o Terceiro setor (ONG’s, OSC's, Fundações filantrópicas), gerando uma nova relação entre Estado, sociedade e empresas. A Lei, ao afirmar que a tarefa pública é dever do Estado e da sociedade, ampliou a participação da sociedade na execução de políticas sociais. O Estado brasileiro redefine assim seu papel como fomentador, mas não necessariamente como executor das políticas sociais, buscando, com isso, diminuir seu tamanho, ampliar e fortalecer o empreendedorismo das organizações da sociedade civil e das organizações não governamentais (OLIVEIRA, 2005).