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2 DESENHO

2.13 QUERIA QUE A MINHA VOZ TIVESSE UM FORMATO DE CANTO,

DA INVENCIONÁTICA

Na Vila São Pedro, as crianças habitam as ruas cotidianamente e sabem em quais turnos encontrarão a Casa dos Cata-Ventos aberta, com pessoas dispostas para brincar e conversar. A Casa dos Cata-Ventos surge ali como experimentação e com uma declarada inspiração no trabalho da Casa da Árvore no Rio de Janeiro (LIMA, 2010) e na estrutura Dolto, de Paris. Ela propõe um espaço de escuta por meio do brincar e do conversar, para crianças de até onze anos, apostando que o brincar é por si só terapêutico, pela sua potência de produzir efeitos estruturantes e organizadores (GAGEIRO; TAVARES; ALMEIDA; TOROSSIAN, 2015). Diversificando sua atuação, este projeto acolheu outro, de contação de histórias, uma vez por semana. Posteriormente, instituíram-se uma oficina de capoeira, atividades voltadas ao letramento e outra para seus egressos adolescentes.

O projeto surgiu por iniciativa da psicanalista e professora universitária Ana Maria Gageiro, que logo encontrou apoio de colegas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Instituto da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Instituto APPOA). Este grupo, implicado com o compromisso da universidade pública e com as populações menos favorecidas de nosso país, buscou inicialmente um espaço para funcionar como um campo de pesquisa e intervenção, inspirado nas experiências da Maison Verte e da Casa da Árvore (PEDROSO, 2013).

modelo tornou-se referência na abordagem das questões da primeira infância, principalmente das crianças que, a partir do início da vida escolar, eram encaminhadas ao psicanalista com problemas já estruturados. A Maison Verte foi, então, criada como um espaço de lazer e de palavra para receber crianças de até três anos, com o objetivo de auxiliá-las, e a seus pais, no processo de integração social e de separação do ambiente familiar, maternal, inserindo palavras quando há dificuldades em produzir sentido. Dolto buscava, na Maison Verte, a prevenção da violência e outros problemas relacionais futuros, com a introdução de uma palavra justa, que carregasse de sentido a angústia vivida pelas crianças. O espaço é visto como um lugar de convívio, de prazer, de brincar e falar, onde não há necessidade de se relatarem sintomas, nem de se promover uma reeducação. A fala que circula não é definitiva nem aprisionante; é simplesmente a expressão do esforço de cada um em se fazer entender por um outro (MILMAN, 2005).

Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. (MANOEL DE BARROS).

Em 2001, na cidade do Rio de Janeiro, surge a Casa da Árvore, como um projeto da Sub- Reitoria de Extensão e Cultura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O primeiro espaço para experimentar a estrutura Dolto foi o Centro Comunitário Lídia dos Santos, no Morro dos Macacos. Desde então, a Casa da Árvore mudou de endereço várias vezes, chegando a administrar quatro casas em bairros diferentes da cidade. Hoje, ainda com o vínculo acadêmico, conta com o status de Organização Não-Governamental e busca sua sustentabilidade econômica com patrocínios de empresas privadas (LIMA, 2010).

A preocupação com a adaptação desse modelo francês à realidade das comunidades de baixa renda da cidade do Rio de Janeiro acompanha o projeto desde a fundação da primeira Casa. Algumas modificações se impuseram de saída, pois as crianças chegavam desacompanhadas e, em sua maioria, tinham mais de seis anos. A proposta de um acolhimento integral resultou na criação de um dispositivo voltado para o atendimento de crianças de zero a doze anos, em que os maiores de seis anos estão isentos da obrigatoriedade da companhia de um responsável, e os menores, sobre os quais ainda recai essa exigência, podem recorrer à figura do irmão mais velho como a tutela necessária a sua frequência. À teoria da “palavra verdadeira” de Dolto somou-se o ‘brincar’ de Donald Winnicott, pela experiência criativa compartilhada em um ambiente seguro e confiável. Instituía-se, assim, um modelo inovador de atendimento coletivo à infância, cuja proposta pode ser definida em termos bem simples: proporcionar um lugar para as crianças conversarem e brincarem (LIMA, 2010).

O atendimento na Casa da Árvore se efetiva por meio de turnos diários de três horas de duração com a presença de três psicólogos (estagiários e profissionais). Cada dia da semana fica sob o encargo de uma microequipe diferente e cada criança pode frequentar os plantões de sua preferência, conforme sua disponibilidade e seus interesses. O horário de entrada e saída fica a critério de cada criança, bem como o número de vezes que ela retorna durante a semana. Apenas o que se exige é que, enquanto permanecer na Casa, cada criança tenha o seu nome e idade anotados em um quadro negro (LIMA, 2010).

Em Porto Alegre, a escolha da Vila São Pedro mostrou-se pertinente para a equipe da Casa dos Cata-Ventos pela possibilidade de utilização de um espaço de uma ONG vinculada à Associação Médica do Rio Grande do Sul e pela boa aceitação das lideranças da Associação de Moradores da Vila São Pedro. Com o apoio dessas lideranças foi-se divulgando o trabalho junto a algumas famílias que tinham crianças pequenas, indo de casa em casa. Iniciou-se como curso de extensão universitária, com oito turnos semanais, oscilando entre dias sem público e dias com muitas crianças (PEDROSO, 2013).

A partir do início de 2012, houve a aproximação de outro projeto de extensão, coordenado pela professora Sandra Torossian, de contação de histórias em comunidades muito pobres. Também nesta época, a Casa dos Cata-Ventos foi inscrita como campo da Residência Multiprofissional Integrada em Saúde Mental Coletiva da UFRGS, o que possibilitou um caráter multiprofissional à equipe (PEDROSO, 2013).

Conseguindo finalmente evitar a inconveniência da proximidade com o alto fluxo de veículos da Avenida Ipiranga, a Casa dos Cata-Ventos mudou novamente de endereço, indo se instalar no meio do território da Vila, onde se mantém até hoje. A partir de então, há um convívio mais intenso com as vicissitudes da comunidade, a atuação do tráfico, a truculência da polícia militar, a agressividade no trato com o outro, a fragilidade das condições socioeconômicas das famílias etc. E, nessa convivência, a Casa conquistou a confiança dos moradores e a equipe não necessitou mais do acompanhamento de um membro da Associação de Moradores para se movimentar pelas ruelas labirínticas da Vila (PEDROSO, 2013).