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Apreciados quatro patamares do “linguageiro” – o signo, a metáfora, a

No documento Filmes (Ir)refletidos (páginas 95-98)

A CRISTALIZAÇÃO DA REALIDADE NUM FILME DELEUZIANO (ELEPHANT: GUS VAN SANT, 2003)

5.  Apreciados quatro patamares do “linguageiro” – o signo, a metáfora, a

interpretação, a artisticidade – e apurada a sua aptidão mínima a lidar com o continuum, graças à propriedade diferencial e indirecta, movente

46. Comparem-se as duas passagens seguintes sobre a função intersticial (onde um continuum virtual de significação se restabelece, independentemente de se, à superfície, encontramos o discretum linguístico ou o movimento/tempo ininterrupto da imagem), análoga nas letras e nas imagens: “Os falsos-raccords são a relação não-localizável ela mesma: os personagens já não os saltam mais, eles engolfam-se aí. Para onde foi Gertrud? Para os falsos-raccords…. Certo, eles estiveram sempre ali, no cinema, como movimentos aberrantes. […] Mas foi preciso ser-se moderno para reler todo o cinema como já feito de movimentos aberrantes e de falsos-raccords.” (C2 59). O caso de Gertrud (Dreyer, 1964) é singular (não tão singular que não dobrado de um segundo exemplo do mesmo enigma espiritual,

Mikaël [1924]): um dos exemplos de cinema transcendental (Schrader) que mais se pode aproximar do

seu pico bressoniano, idêntica pergunta atormenta o espectador de Bresson – mas onde é que está a Graça, no horror sem limites de L’argent?! – e o dos dois dreyers – mas onde é que Gertrud, ou o pintor Zoret de Mikaël, “conheceram” ou “viram” alguma vez “um [o…] grande amor”?! A resposta é como em

Elephant: no afundamento abissal e engolfado nos interstícios, na intervalaridade, no fundo virtual da

imagem, na “re-narração” das caminhadas, e já não hifenizada pela conexão orgânica, nem saltada. No caso de Zoret, o interstício era pintar, maneira de um “ver” que fosse um amar transcendental (expressão que, curiosamente, haveria de recorrer na cultura do mundo ficcional dos Na’vi, em Avatar, de James Cameron (2009): “eu vejo-te”); no de Gertrud, era recordar. E, do mesmo modo que o cinema moderno nos ensina a ver os seus prenúncios no anterior (Vampyr, de Dreyer (1932), é o nec plus ultra de uma montagem selvática totalmente destruída por faux-raccords deliberadíssimos), talvez nos ensine a ver os seus prenúncios nos interstícios da literatura romântica francesa, se às “entre-linhas” chamarmos o circuito virtualizante do cristal literário.

Leiamos, em contraponto, Merleau-Ponty a respeito do mesmo: “Enfim, precisamos considerar a palavra antes de ser pronunciada, o fundo de silêncio que não cessa de a envolver, sem o qual ela não diria nada […] um sentido lateral ou oblíquo, que se dissemina entre as palavras. […] Um romance exprime de maneira tácita como um quadro. Pode-se contar o assunto do romance como o do quadro. Mas, o que conta, não é tanto que Julien Sorel, sabendo que era traído por Mme de Rênal, vá a Versalhes e tente matá-la – é, após a notícia, este silêncio, esta viagem de sonho, esta certeza sem pensamentos, esta resolução eterna. Ora, tudo isso não está dito em parte alguma. […] A vontade de morte, essa, não se encontra em parte alguma nas palavras, mas está entre as palavras, nos côncavos de espaço, de tempo, de significações que elas delimitam, como o movimento no cinema está entre as imagens imóveis que se seguem”. (MERLEAU-PONTY, Maurice, “Le langage indirect et les voix de silence”, in

Signes, Paris, Gallimard, 1960, ps. 49-104 [p. 58 e ps. 95-6]). Literatura, cinema, pintura, não vêem –

fazem ver. A fórmula, com variações, passeia-se entre paul Klee, Ponty, e nós. E é Ponty quem paga da mesma moeda a Deleuze a desconsideração, por este, da linguagem como descontínua-articulada: ela é, antes, o articulatório que forma cristal – chamemos-lhe “signo”, a esse cristal, feito de significante e de significado, e reparemos que, na sua “Sexta lição sobre o som e o sentido”, Roman Jakobson, sob o título de “simbolismo fonético”, trata da permuta especular que significante e significado executam no seio do signo que eles constituem, em termos eminentemente aproximáveis aos dos circuitos de virtual e actual no cristal-tempo bergsoniano-deleuziano – o articulatório que forma cristal, dizíamos, com o tácito inarticulado virtual e contínuo de um mundo de significação contido virtualmente em apenas meia página de grafismos repetitivos e insossos, tal como o pico de presente actual, no cone, comunica contemporaneamente com a passeidade como tal de todo o passado maior que o mundo. Merleau-Ponty propõe o paralelismo cinema / literatura às avessas: não seria tanto a literatura a deslizar do descontínuo ao contínuo, tentanto apanhar o movimento da imagem, mas o cinema a fazer isso mesmo que a literatura executa desde sempre. É uma peça importante de corroboração independente no nosso argumentário a favor de uma paridade semiótica fundamental que ultrapassa a divisão, um tanto maniqueia e retórica porventura, entre articulação e prossessualismo, seja em linguística seja em ontologia. E, quem ainda não resolveu a charada fundadora do cinematográfico, na disputa a vários termos entre Bergson e Deleuze acerca da ilusão de movimento, foi este último. Questão que aqui teremos que deixar, na sua gigantomaquia, entregue a si própria.

(na metá-fora), da poética da significação, resta considerar o trabalho da linguagem sobre a linguagem – a literatura, a “função poética” – para aquilatar da sua adequação ao mester de “reagir à imagem” que lhe assigna Deleuze. Do literário, tratará este ponto. Da imperatividade cons- titutiva daquela reacção discursiva às vozes do silêncio artísticas (no caso, à mudez da imagem em movimento, mas abrangido como problema geral da Estética e da própria Modernidade em toda a sua latitude), tratará o sexto e último ponto.

O autor é aqui Roland Barthes, e a sua insistência numa nova propriedade que advém das do desvio, da translacção movente e do indirecto: o recurso modal e ontológico da interrogatividade para além da pergunta e da respos- ta (do catácter tético de afirmar e de negar), requintada até à capacidade órfica de indizível, e mesmo de indizibilização, como potência primária do dizer. Seja a série citacional:

A literatura torna-se então o signo […] desta opacidade histórica em que vivemos […]; admiravelmente servida por este sistema significante de- ceptivo que, a meu ver, constitui a literatura, o escritor pode então ao

mesmo tempo comprometer profundamente a sua obra no mundo […]

mas suspender esse compromisso precisamente aí onde as doutrinas, os partidos, os grupos e as culturas lhe inspirariam uma resposta. A in- terrogação da literatura é então, num só e mesmo movimento, ínfima […] e essencial […]: eis o mundo: haverá nele sentido? (Barthes: 1977, p. 223) “Esta disponibilidade não é uma virtude menor; ela é, bem pelo contrário, o próprio ser da literatura, levado ao seu paroxismo. Escrever, é abalar o sentido do mundo, dispor nele uma interrogação indirecta à qual o escritor, por uma última suspensão, se abstém de responder” (Barthes: 1963, p. 11). “Ouve-se muitas vezes dizer que a arte [no contexto, a literária: uma rela- ção muito específica com a linguagem e com a “língua do mundo”] tem por função exprimir o inexprimível: deverá dizer-se o contrário (sem qualquer intenção de paradoxo): toda a função da arte consiste em inexprimir o expri- mível […]” (Barthes: 1977, p. 20).

Voltando-se para a opacidade, a literatura (“hoje”) efectua a mesma viragem que a arte dos monócromos modernistas, do expressionismo abstracto, do tachismo, a mesma que a do cinema subitamente opaco de Godard (ou o do azul(-Klein?) de Jarman, ou o de João César Monteiro), ou que o de Stan Brakhage, a mesma que a de Kafka ou a de Fin de partie, ou que a de Anton Webern ou Stockhausen. Não é por ser linguisticamente articulatória de dis-

creta que a literatura, sistema que converte tal articulação em desarticulação

e se torna “deceptivo” (como “diferencial” era o significante saussureano), deixa menos de fazer o mesmo, enquanto “arte”, que qualquer outra: opaci- zar, inexprimir. Já frisáramos anteriormente a propriedade de oclusão como segredo nuclear da visão47, e da câmara e dos planos dos grandes mestres

do saber não mostrar (de Antonioni a Cassavettes, de Kiarostami a Haneke), e poderíamos reatar aqui o “revivalismo” heideggeriano do sentido grego arcaico da veritas latina como ἀ-λήθεια (na sua dupla negatividade)48, opos-

to a toda aquela tradição metafísica e tecno-científica, fundante do inteiro ciclo histórico proeminente da cultura ocidental, que é a do “ideal do verda- deiro”, de que também Deleuze trata em C2 – e que o filósofo da Floresta Negra não contratorpedeia com as potências do falso, mas com o carácter intrinsecamente obnublilante ou “in-essencial” da verdade como re-velação: o velamento inerente ao desvelamento.

Interrogação suspensa (cravada em pleno coração do mundo, fora na redo- ma livresca), redobramento do inexprimir, o linguageiro promete afinal, e apesar de tudo, uma afinidade electiva com os indizíveis do continuum ima- gético bergsoniano. A Estética e a teoria não vêm para esclarecer, para dizer o não-dizível, mas para fazer o mesmo que a obra: a trajectória deceptiva, elusiva, indirecta, inefável, que reside no cerne indesvendável do sentido: essa “pungência” pictural que sempre Bacon reenuncia, esse je-ne-sais-quoi que “resta como rasto” no seio obscuro, substratual, da imagem de Elephant, o irredutível do próprio título. Nem que fosse por isso, atesta-se, no jogo tipi-

47. Recordemos: em Merleau-Ponty, não se trata de uma simples “anomalia” do sistema perceptivo natural, mas de um traço estrutural da condição ontofenomenológica de ser-no-mundo: o quiasma visão/cegueira não reside no aparelho de visão sobre o mundo, mas funda a condição existencial originária entre o mundo e a visão.

camente modernista do título em paralaxe desafiadora com a obra titulada, o acerto do linguageiro para se emprestar, na sua virtude de afecção contí-

nua, a todas as imagens do filme, e para “instalar o seu abalo de interrogação

indirecta sem resposta” no seio delas, assoladas por esse puctum cæcum dito pela palavra à imagem, injectado da palavra à imagem como significân- cia entre o continuum e o discretum, a par dessa outra imagem-matriz – o poste e as nuvens, anoitecendo –, que se difunde “universalmente porque primeira”, de si a todo o filme como uma processão neoplatónica, a imagem de Ozu, o Tempo em pessoa (o “Vazio”, a forma sem forma de tudo o que se forma e passa) a adverbiar e a modalizar-modular todo o visível do inteiro filme, assim originariamente obnubilado, “sob nuvem”.

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