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O terceiro feixe de passagens refere-se ao potencial crítico-político da bi-

No documento Filmes (Ir)refletidos (páginas 87-92)

A CRISTALIZAÇÃO DA REALIDADE NUM FILME DELEUZIANO (ELEPHANT: GUS VAN SANT, 2003)

3.  O terceiro feixe de passagens refere-se ao potencial crítico-político da bi-

furcação e dos “estratos de terra” / de tempo profundo.

A linguagem que quisera estar à altura da imagem teria, assim, que en- frentar o obstáculo de uma tripla desadequação: a imagem é contínua, a linguagem, descontínua; o discurso aspira ao verdadeiro e rege-se, como lo-

gos coerente, por ele, a imagem, potência do falso, torna indecidível qualquer

predicação, qualquer judicação, qualquer operação do dizer – mas teríamos que, já aqui, advertir que é precisamente em linguagem que Borges ou Robbe-Grillet (ou Kafka, ou Beckett) dão a medida dessa “figura impossível” ao próprio cinema; o discurso, diplomático, ensaia uma via média entre o anel e a bifurcação, a imagem é (impossivelmente) as duas ao mesmo tempo (aliás, ela é o tempo: e por isso as duas). A linguagem seria “a linguagem do ser”, parmenídea, eternalista, a imagem, a imagem do tempo: a palavra é uma imobilidade, a sintaxe, uma montagem de discreta.

Analítica, verdadeira e coerente, a linguagem é o oposto da imagem-tempo. Mas a imagem-tempo faz falar à linguagem a língua esquecida da subver- são, politiza-a no sentido ontológico do termo. Já citáramos (Nota 33) “e não são somente os circuitos que se bifurcam entre eles, é cada circuito que se bifurca consigo mesmo” (C2 68). É em torno de All About Eve (1950), a obra-prima de Mankiewicz, que Deleuze expende estas considerações: “bi- furcações perpétuas como outras tantas rupturas de causalidade […] como em Borges, não é o espaço, é o tempo que bifurca […] os estados que percor-

re[m] […] não entram numa progressão, mas constituem de cada vez uma derivação” (C2 68-9).

É certo que poderíamos cair na tentação de ler Elephant como justamente o contrário, um sorvedouro sobredeterminado que suga todos os destinos para um mesmo sifão fatal, mas então haveria discrepância com todo o ca- prichado tratamento temporal da lentidão, da profundidade virtualizante, da duração deambulatória não-accional – tanto mais que não há rasto de qualquer código da precipitação dramática ou da sensação codificada de ví- timas indefesas à mercê de uma armadilha insuspeitada. É outra nuance, a que aqui encontramos. A capacidade prospectiva do cristal leva-o a mergu- lhar o processo virtualizante em estratos obscuros da realidade: “a imagem actual torna-se virtual por sua própria conta, enviada alhures, invisível, opa- ca e tenebrosa, como um cristal que mal tivesse acabado de ser retirado da terra. O par actual–virtual prolonga-se então imediatamente em opaco–lím- pido, expressão da sua permuta” (C2 95). É essa segunda fase do cristal que presenciamos nas caminhadas, “realistas”-quotidianas, límpidas, triviais, mas dobradas de um Unheimliche que, num regime que fosse o de I-M, se- ria outrossim assinalado por uma imagem (ou parte de imagem) actual e explícita, à qual caberia manifestar que um destino funesto se prepara. Não há, porém, nuvem, no cristal, o seu obscurecimento não se articula: trans- parece. E esse refreamento de qualquer dualidade deve-se à nova valência do Intolerável, que aplana a diferença dramática que, num regime orgânico da imagem, deveria ser sublinhado como “contraste monstruoso” entre a “descuidada pacatez da bela existência” e “a violência brutal que espreitava já como tragédia”, toda a arte residindo na gradação desse “assomar”, do seu “já”, se ele dá sinal ou deve, pelo contrário, surpreender e sobressaltar, etc., para efeitos de edificação moral de estirpe ateniense: infundir o terror e a piedade, proporcionar à cidade a sua catarse.

Uma terceira fase do cristal como instrumento de indagação permite, entre- tanto, substituir o simples libelo político por um óculo cru de realidade para ver a realidade. A condição antecedente para tal, é que comecemos por nos situar inteiramente dentro do cristal, dentro da imagem, no seio do tempo:

É por referência ao presente de outra coisa que o passado e o futuro se dizem de uma coisa. Passamos então ao longo de acontecimentos dife- rentes, segundo um tempo explícito ou uma forma de sucessão que faz com que coisas diversas ocupem uma após outra o presente [para que de uma coisa – o comboio – possa ser dito o seu passado e o seu futu- ro, ele a chegar à estação e ele acabado de partir da estação, é preciso que no presente se encontre, não “o comboio parado aqui na estação”, mas uma sucessão de coisas diversas que ocupem “o presente”, a saber, comboio a entrar na gare à esquerda, comboio na gare, comboio a partir da gare à direita, etc., etc.]. Já não é de todo assim se nos instalarmos no interior de um só e mesmo acontecimento [o trânsito temporal do comboio], se nos afundarmos no acontecimento que se prepara, que chega e que se apaga [Elephant é esse afundamento no acontecimento Columbine tomado nos seus três “êxtases” temporais], se substituirmos à visão pragmática longitudinal uma visão puramente óptica, verti- cal, ou antes, em profundidade [não estamos neste presente ao longo do corredor ainda à espera do acontecimento no futuro, à medida que sempre-outra-coisa vai ocupando cada momento presente da ampulhe- ta, num delizamento horizontal: estamos já dentro do acontecimento, é de dentro da temporalidade dele, neste agustiniano “agora desse futu- ro”, que comparticipamos “em abismo” da temporalidade dele, não de uma temporalidade em que “ele” irá estar, sim, mas cujo presente vai sendo ocupado por sempre-outra-coisa, nem que fossem os segundos um-a-um de uma contagem decrescente]. (C2 131-2)

“Na bela fórmula de Santo Agostinho, há um presente do futuro, um presen-

te do presente, um presente do passado, todos implicados no acontecimento,

enrolados no acontecimento, e portanto simultâneos, inexplicáveis” (C2 132). Os deambulantes de Van Sant caminham de início a fim unicamen- te dentro do acontecimento, sejam Matt Damon e Casey Affleck em Gerry, sejam os liceais de Elephant, mas então esse acontecimento dentro do qual eles caminham é o acontecimento unitário que se perfaz enigmaticamente no reticulado de todos os seus circuitos internos sem excepção à escala do

todo fílmico, e não um evento marcado de que os restantes momentos tem- porais fossem os degraus: os degraus de um trajecto até ao acontecimento (e não do acontecimento). Dito de outro modo, o tema de Elephant não é Columbine, é Elephant, même. O que se passa em Elephant não é o evento fi- nal do massacre “e tudo o que o prepara”, é o acontecimento do Insuportável que dura, em surda acumulação e insistência, todo o filme, e de que o evento final é, temporalmente falando, um dos “êx-stases” (mas, deleuzianamente, “êx-stases” do próprio tempo, e não da memória psíquica protensiva ou re- tentiva do augustinismo). Estes “três presentes implicados” de um mesmo acontecimento, em cuja temporalidade directa nos encontramos (por opo- sição a um tempo do movimento em cuja calha vazia nos instalássemos à espera da “hora marcada”, como uma ferrovia onde passa o comboio, caso em que o tempo no qual esperamos e o acontecimento esperado diferem abstractamente um do outro), estes

três presentes implicados retomam-se sempre, desmentem-se, apagam- -se […] bifurcam e regressam. É uma imagem-tempo poderosa. Não se julgue que ela apaga toda e qualquer narração. Mas, o que é muito mais importante, ela dá à narração um novo valor, pois que a abstrai de toda a acção sucessiva, na medida em que substitui uma verdadeira imagem-tempo à imagem-movimento. Então a narração vai consistir em distribuir os diferentes presentes aos diferentes personagens. (C2 133) É certo que Deleuze se exprime a propósito de L’ Année Dernière…, em que essa redistribuição de presentes, cada um deles plausível em si mesmo, resulta numa combinatória “incompossível no seu todo, conservando e suscitando desse modo o inexplicável” (ibidem). Em Elephant e na sua distri-

buição por Nathan, John, Elias… – o inexplicado.43

43. Devemos a Roger Ebert uma das mais acutilantes apreciações do que está em causa em Elephant. Nele, a intuição certeira coincide com a teoria e dispensa-a, quando põe em destaque, no filme, o alcance crítico do “não-dizer” e a convocação, pela pungência redobrada do inabalável registo cool ou inexpressivo, da instância do político num filme serenamente destituído de qualquer implicação “política” (et pour cause). Uma narrativa, um documentário, explicam e resolvem, reduzem a realidade, a vida, o filme, a imagem a “uma história”. Salvam o espectador da cisão intolerável. A sua política adula a boa-consciência e destitui o político. Deixemos soar o idioma de origem:

“It offers no explanation for the tragedy, no insights into the psyches of the killers, no theories about teenagers or society or guns or psychopathic behavior. It simply looks at the day as it unfolds, and that is a brave and radical act; it refuses to supply reasons and assign cures, so that we can close the

Esse afundamento no acontecimento toma agora a feição da sua escavação por

camadas, à profundidade desapiedada dos corredores percorridos avera-se

uma profundidade estratificada que pertence à terra, não ao mundo – àqui- lo que é retentivo, não ao aberto. Incautos andarilhos numa das facetas do cristal, esta era já a outra, pela qual baixavam à surdez desse acontecimento de que não iriam separar-se mais, até ao fim: “a história é inseparável da terra […] e, se se quer apreender um acontecimento, não se deve mostrá- -lo, mas afundar-se nele, passar por todas as camadas geológicas que são a respectiva história interior. […] Apreender um acontecimento, é inseri-lo nas camadas mudas da terra” (C2 332). Uma vez mais, parecemos exceder inter- pretativamente o contexto: o programa de Straub é literal no que se refere à terra e à estratigrafia cezannesca da sua concreção, que em cinema ele her- da do pintor – o que parece demasiado remoto do americano Van Sant e da urbanidade do edifício escolar middle class. Mas se no fundo dos corredores horizontais de The Shining (Kubrick, 1980) jazia um cemitério do genocídio fundacional e um labirinto mítico mais arcaico ainda, o cone do tempo é, em qualquer dos seus avatares, sempre subctónico.

A questão que resta, na presente secção, será, por força, abordada tele- graficamente (numa sequência de observações numeradas): o que pode a linguagem, após banida da semiótica da imagem? Pouco mais, porventura, que essa pura forma da judicação que é, em Kant, o juízo reflexionante pró- prio do estético: um juízo que nada diz “de determinado”, precisamente, que nada predica, que esquiva na palavra (do) inefável – “belo” – toda e qualquer determinação de sentido. E, no entanto, é nele e só nele que o embrião de todo e qualquer sentido reside.

case and move on. Van Sant seems to believe there are no reasons for Columbine and no remedies to prevent senseless violence from happening again. […] I think its responsibility comes precisely in its refusal to provide a point. […] Van Sant’s ‘Elephant’ is a violent movie in the sense that many innocent people are shot dead. But it isn’t violent in the way it presents those deaths. There is no pumped- -up style, no lingering, no release, no climax. Just implacable, poker-faced, flat, uninflected death. Van Sant has made an anti-violence film by draining violence of energy, purpose, glamor, reward and social context. It just happens. […] Van Sant also avoids the film grammar that goes along with such cuts, and so his visual strategy doesn’t load the dice or try to tell us anything. It simply watches. […] Of course a movie about a tragedy that does not explain the tragedy – that provides no personal of social ‘reasons’ and offers no ‘solutions’ – is almost against the law in the American entertainment industry.” (sublinhados nossos) (EBERT, Roger, “Elephant”, in Roger Ebert’s Four-Star Reviews 1967-

2007, Kansas City, Andrews McMeel Publishing, 2007, ps. 220-1). Igualmente disponível em https://

Já frisámos o suficiente as diferenças de natureza e a desadequação originá- ria do regime verbal ao imagético, bem como o paradoxo de ele ser todavia irrenunciável como “reacção sobreveniente”.

A questão, agora, consiste em saber como pode ela, desde a sua insuficiência natal, assim “reagir” – e que alcance retrospectivo sobre o sentido da obra (e o destino desse sentido) pode ter esse imperfeito resultado do imperfeito instrumento, no caso, a linguagem do discurso teórico estético-crítico que retome interpretativamente a questão de sentido posta pela obra nos ter- mos irredutivelmente não-linguageiros desta. Tomaremos o partido de uma apologia da linguagem, reabilitando nela uma dimensão de modulação do

continuum que a proscrição deleuziana sumariamente descartara, e mani-

festaremos a sua indissociabilidade paradoxal da questão do sentido da obra artística. Rarefaremos notoriamente aqui o aparato de remissão bibliográfi- ca, por economia de espaço.

No documento Filmes (Ir)refletidos (páginas 87-92)