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Frase quase paralela, encontramos em Theodor Adorno, e que deve ser

No documento Filmes (Ir)refletidos (páginas 98-105)

A CRISTALIZAÇÃO DA REALIDADE NUM FILME DELEUZIANO (ELEPHANT: GUS VAN SANT, 2003)

6.  Frase quase paralela, encontramos em Theodor Adorno, e que deve ser

lida dinamicamente, como fórmula de um trajecto e não gráfico de uma situação imobilizada – na clave de uma filosofia da “não-identidade” e da não-totalidade como é a do autor, toda ela feita de mobilidade e de inaca- bamento incessantes, como também em Kafka e na Imagem-tempo:

Os paradoxos da Estética são ditados pelo seu objecto […]. Tal como na música, também na natureza resplandece o que é belo, para, logo a se- guir, desaparecer perante a tentativa de o petrificar. […] Para além da aporia do belo natural, nomeia-se aqui a aporia da Estética no seu con- junto. O seu objecto determina-se como indeterminável, negativamente. Por isso a arte precisa da filosofia, que a interprete, para dizer aquilo que ela não consegue dizer, enquanto que, porém, isso apenas pela arte pode ser dito, ao não dizê-lo.49

A relação obra de obra de arte / teoria estética tornou-se um necessitaris- mo histórico, passe o oxímoro: corresponde à ontologia da obra de arte da modernidade, e tem a assinalar o seu momento inaugural, desde logo, um apogeu – o par The Raven / Philosophy of Composition, de Edgar Allan Poe, a explicação impossível e parodicamente auto-deceptiva. Na era dos escritos

49. ADORNO, Theodor W., Ästhetische Theorie, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1990, p. 113 (também como ADORNO, Theodor W., Teoria Estética, Lisboa, Edições 70, 1984, p. 89)

auto-teóricos proliferantes de autor, inseparáveis do acto criativo; na era da crítica e da história da arte, e da sua exposição extrema pela museologia, pelas vanguardas, pela curadoria; da perplexidade da filosofia em ver o seu velho ofício de abismação nos limites do sentido e na angústia das ultimida- des mudar de mãos, dela para a arte – a arte tornar-se-ia indissociável de um impossível dizer estético, que melhor revele a própria impossibilidade que a própria arte tende a ser, uma impossibilidade que a arte encarna me- lhor (“através da sua morte”) que qualquer outra instância do sentido. Ora, é pela recusa da obra a dar-se em pleno sentido que a linguagem a persegue para a dizer (em resposta, porém, a uma solicitação tácita e consti- tutiva da própria obra), e o seu efeito é o da aceleração espiral: quanto menos a obra fala, mais a linguagem se encarniça em a dizer, e, quanto mais tenta dizê-la, mais revela o quão indizível ela é. O indizível aparece por reacção ao seu contrário e alimenta-se desse veneno. Mas “o indizível” (tal como, assim o vimos já, a própria linguagem) fica nesse entre-dois, interdito, como um efeito de limiar: é uma quase-significação que precisa da dimensão da significação para poder, no seio mesmo dela, escapar-lhe, indeterminar-se como uma nuvem, furtar os seus contornos, esquivar-se “orficamente” (a arte começando, miticamente, quando Orfeu perde Eurídice e lamenta essa perda: a arte começa quando uma sombra se desvanece e o artista fica a sós com esse desvanecimento, com essa inefabilidade perdida… mas não com- pletamente). Assim, quanto mais se consegue dizer a obra mais se consegue que ela não-diga o seu sentido – q.d., que ela o exima, esquive, indetermine, subtilise, que ela o rarefaça esplendidamente. É preciso pô-la a falar para a pormos a calar-se.

Por outro lado, a própria linguagem é um fenómeno de limiar e, por isso, paradoxal e ambivalente. Se compreendemos o que ‘incompreensível’ quer dizer, se sabemos o que ‘indizível’ ou ‘inefável’ significam, então, compreen- demos como uma linguagem pode servir para exprimir o seu próprio limite e dizer o seu contrário. A linguagem sabe o seu outro, e sabe dizê-lo. Sabe que o que não é linguagem escapa à linguagem… mas diz ainda isso mes- mo: ultrapassa o seu próprio limite para melhor poder fixar-se-o. A sua

propriedade reflexiva, e quase consumadamente metalinguística,50 é o que

nela vincaria a função do continuum, e que lhe permite encetar o acompa- nhamento da processualidade.51 A eloquência da imagem apofática apenas

brilha escuramente no meio diáfano da linguagem que, triunfalmente, a fa- lha. É esse o único alvo de uma escrita que quisesse dizer Elephant, quer dizer, o não-dizer.

Estabelecidos estes prolegómenos, dispomos talvez de instrumentos os bas- tantes para dizermos que é tempo de avançarmos para um “close viewing” (no modelo do close reading) do filme de Gus Van Sant, “que diga aquilo que ele não consegue dizer” e desse modo e não de outro verifique que é, pois, para, não conseguindo dizê-lo, conseguir não-dizê-lo, que esse filme é. É essa tarefa e esse prazer que deixamos entregues nas mãos do leitor.

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50. Para um Hegel, questão adquirida: a reflexão da própria reflexão é o especulativo, o saber absoluto (à imagem do deus aristotélico e dos seus avatares teológicos ao longo de todo o aristotelismo ocidental, todavia ultrapassado pela sua dialectização idealista hegeliana). Não assim para Wittgenstein, Russell, Gödel.

51. Por isso encontramos nesse sumo-sacerdote da linguagem e do lógos, G.W.F. Hegel, uma reintrodução do primado do processualismo da realidade, se bem que sob a forma da superação especulativa da dialéctica da substância e do sujeito, do substancial e do processual.

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Siglas:

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DELEUZE, Gilles, Cinéma 1. L’Image-Mouvement – C1 DELEUZE, Gilles, Cinéma 2. L’Image-Temps – C2

DELEUZE, Gilles, Francis Bacon. Logique de la Sensation – FB DELEUZE, Gilles, Pourparlers – Pp

No documento Filmes (Ir)refletidos (páginas 98-105)