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1 REVISÃO DA LITERATURA

1.3 APRENDIZADO DA ESCRITA

A escrita é uma forma de mediação lingüística que foi criada pelo homem de acordo com necessidades socioculturais. Ela foi concebida muito tempo depois de o homem ter desenvolvido a habilidade de comunicação oral. Cabe ressaltar que nem todos os povos desenvolveram a língua escrita, porém todos se tornaram utentes da comunicação oral. O objetivo da escrita não é somente o registro da fala, mas transmitir mensagens que se perpetuam no tempo e no espaço, transcedendo a memória e a mortalidade humanas (NAVAS & SANTOS, 2002).

Apesar de a linguagem escrita estar relacionada com a linguagem oral, existem diferenças fundamentais entre esses dois sistemas lingüísticos. Quando a criança inicia o processo de alfabetização, usualmente ela já domina a linguagem oral com função comunicativa. Essa habilidade é adquirida naturalmente durante o processo de socialização, implicando domínio de uma série de regras gramaticais, internalizadas e utilizadas inconscientemente, que orientam seu desempenho lingüístico (BARRERA & MALUF, 2003). Em contraste à aquisição da fala, para o aprendizado da escrita a exposição e o contato com materiais escritos não são suficientes, sendo necessário o ensino formal (escolar) ou informal. Gombert (1992) assinala a exigência de um nível de abstração mais alto para o tratamento da linguagem escrita, visto que ela requer reflexão consciente.

Existem três sistemas de escrita: o logográfico, o silábico e o alfabético. A diferença entre eles reside na unidade lingüística representada. O primeiro, utilizado pelos chineses, também chamado de ideográfico, faz a notação da palavra, ou, mais precisamente, dos morfemas. No segundo, ainda presente no Japão, são utilizados caracteres que representam a unidade silábica. O terceiro é a forma utilizada para representar, por exemplo, a língua portuguesa, em que a unidade representada é o fonema. Os dois últimos sistemas comentados são denominados fonográficos.

Uma escrita alfabética é considerada transparente ou rasa, como é o caso do português, quando existe semelhança entre o número de grafemas e fonemas. Em contrapartida, quando o número de grafemas é consideravelmente superior ao número de fonemas, como é o caso de muitas palavras do inglês, a escrita é considerada opaca ou profunda (NAVAS & SANTOS, 2002).

As mesmas autoras afirmam que nenhum sistema é completamente logográfico ou fonográfico. Todos eles são mistos, ou seja, assim como no sistema logográfico são observadas algumas representações silábicas ou, até mesmo, fonêmicas, nos sistemas fonográficos também são utilizados logogramas. De qualquer modo, entende-se que todos, em maior ou menor grau, realizam um recorte no continuum da fala, o que exige atividade metalingüística.

A complexidade do sistema alfabético está na exigência de uma reflexão consciente no nível do fonema, ou seja, a criança deverá desmembrar o continuum da cadeia da fala em seus constituintes mínimos e relacioná-los aos grafemas (SCLIAR-CABRAL, 2003). Ao atingir esse conhecimento, pode-se dizer que a criança compreendeu o princípio alfabético. A complexidade desse aprendizado faz com que muitos pesquisadores, como sublinhado por A. Morais (2005), entendam a escrita alfabética como um código, algo que deve ser descoberto pela criança.

Em uma perspectiva distinta, a teoria da Psicogênese da Escrita desenvolvida por Ferreiro & Teberosky (1999) defende que a escrita alfabética é um sistema notacional, cuja apropriação constitui para a criança um trabalho conceitual e não apenas de memória e percepção.

A. Morais (2005) ressalta a diferença entre um código e um sistema notacional. O autor aponta que um código representa os símbolos de um sistema notacional como, por exemplo, o código Braile utilizado por deficientes visuais. Para aprender a ler e escrever em Braile, o indivíduo deverá compreender anteriormente o sistema de notação alfabética, ou seja, o princípio alfabético. Um código não requer, como a notação, a preservação de propriedades do objeto representado. No caso da escrita logográfica, a propriedade preservada é o significado da palavra, em um sistema alfabético é a característica de segmentação dos significantes verbais.

No presente estudo, de acordo com a teoria da Psicogênese da Escrita, parte-se do princípio de que o aprendizado da notação escrita apresenta uma seqüência evolutiva, que está relacionada às hipóteses que a criança faz sobre o que é escrever. Acredita-se que a aprendizagem da escrita tenha início na vida da criança muito antes de qualquer tentativa de ensino ser proposta. Postula-se, também, que as fases do aprendizado da escrita exercem um papel fundamental no desenvolvimento das habilidades de reflexão fonológicas.

Ferreiro (2003) aponta que, durante o percurso de apropriação do sistema de notação alfabética, a criança compreende as relações entre a língua oral e escrita

e começa a elaborar representações mentais para as unidades lingüísticas. Nesse sentido, Zorzi (2000) sublinha que as crianças não iniciam o aprendizado da escrita partindo do conhecimento das estreitas relações entre as letras e os sons, elas são conseqüências de um longo processo e não uma condição de partida. Esse processo, de acordo com Ferreiro & Teberosky (1999), está relacionado à seqüência psicogenética de construção da escrita, caracterizada por níveis ou hipóteses de escrita que são denominadas: hipótese de escrita pré-silábica, silábica, silábico- alfabética e alfabética. A seguir será caracterizada cada uma delas. Exemplos com a escrita de participantes deste estudo aparecem no anexo 1.

1.3.1 Hipótese de escrita pré-silábica

A hipótese pré-silábica é dividida em dois níveis. No primeiro, escrever, para a criança, “é reproduzir os traços típicos que ela identifica como sendo a forma básica da escrita” (FERREIRO & TEBEROSKY, 1999, p. 193). Podem aparecer grafismos separados entre si, compostos de linhas curvas ou retas ou, ainda, grafismos ligados entre si por uma linha de base ondulada. Esse tipo de escrita é denominada icônica e somente a própria criança que escreveu é capaz de interpretá-la. Nessa fase, pode-se observar a presença do realismo nominal, ou seja, a intenção de representar características do objeto através da escrita, a qual pode apresentar-se com uma proporção relacionada ao tamanho do objeto.

Nesse primeiro momento, apesar de a característica comum a todas as crianças estar relacionada à falta de consciência de que a escrita nota aspectos da fala, elas apresentam variações qualitativas no comportamento frente à atividade da escrita. Enquanto algumas crianças ainda têm dificuldades para diferenciar os atos de desenhar e escrever, outras já apresentam o entendimento de um dos princípios da escrita alfabética, a linearidade. Algumas dessas crianças apresentam grafias variadas com uma quantidade constante, outras apresentam variação na quantidade de caracteres utilizados. Entretanto, quando presente, essa variação tem relação com o tamanho do objeto e não com o tamanho da palavra. Pode-se dizer que, nessa fase, algumas crianças já operam com as hipóteses de variedade de

grafismos e de que é necessário um determinado número de caracteres para escrever (no mínimo três).

Em um segundo momento da hipótese pré-silábica (nível 2), a criança parece entender que, para poder ler coisas diferentes, há uma diferença objetiva nos materiais escritos. Nessa fase, denominada não-icônica, a forma dos grafismos é mais definida e mais próxima das letras. A criança segue com as hipóteses de variedade e de quantidade mínima de grafismos para escrever algo. Porém, para poder representar significados diferentes, a criança passa a utilizar permutas na ordem linear dos grafismos utilizados. A variação de posição dos caracteres com o objetivo de expressar diferenças de significado constitui uma importante aquisição cognitiva. É nesse período, também, que aparecem formas fixas de escrita, como por exemplo, a do nome próprio. Em alguns casos, percebe-se que as crianças usam, para escrever diferentes palavras, somente as letras do próprio nome, mas com variação na posição das mesmas.

Exemplos: GATO → AUT FANTASMA → UAT

1.3.2 Hipótese de escrita silábica

A hipótese silábica é caracterizada pela intenção de dar um valor sonoro a cada um dos caracteres que compõem a escrita. A relevância dessa fase é que cada grafia vale por uma sílaba. Evidencia-se, aqui, um tipo de habilidade metafonológica, pois a criança percebeu que a escrita representa partes das palavras faladas, passando a utilizar grafias para representar a unidade silábica. A hipótese de escrita silábica pode ser considerada, então, como uma evidência de que existe relação entre o desenvolvimento de habilidades metafonológicas e o aprendizado da escrita em um sistema alfabético. A correspondência global entre a forma escrita e a expressão oral presente na fase pré-silábica é superada e, pela primeira vez, a criança passa a trabalhar com a hipótese de que a escrita representa partes da fala. Na hipótese silábica ainda podem aparecer grafismos diferentes de letras, mas que

correspondem ao número de sílabas. Quando são utilizadas letras, elas podem ou não notar um valor sonoro existente na palavra.

Exemplos: GATO → UE; AF; AT; GT; AO FANTASMA → TEM; FAA; FTA

1.3.3 Hipótese de escrita silábico-alfabética

A fase da hipótese silábico-alfabética é caracterizada por uma análise da palavra que vai além da sílaba, aparecendo conflitos entre a hipótese silábica e a quantidade mínima de grafemas. A criança também evidencia uma contradição entre a hipótese silábica e as formas fixas de escrita, para as quais a criança tem uma imagem visual estável. O conhecimento do valor sonoro das letras também entra em choque com a hipótese silábica. Ao mesmo tempo em que a criança começa a perceber que escrever é representar unidades menores que a sílaba, ela mostra-se resistente em abandonar a hipótese silábica e a idéia de que faz falta uma quantidade mínima de letras para escrever. As contradições presentes nessa fase parecem abrir as portas para as habilidades de reflexão fonêmicas. Observam-se, nesse nível, oscilações entre a escrita silábica e alfabética.

Exemplos: GATO → ATU; GTO

FANTASMA → FTMA; FNTAMA; FATAMA

1.3.4 Hipótese de escrita alfabética

A hipótese alfabética é atingida quando a criança entende que cada um dos caracteres da escrita corresponde a valores sonoros menores que a sílaba. Ela realiza, então, uma análise sonora dos fonemas que formam as palavras que pretende escrever. Nessa fase, a criança começa a encontrar dificuldades relacionadas à ortografia da língua.

Exemplos: GATO → GATU

FANTASMA → FAMTAZMA; FAMTASMA; FANTASMA

Estudos realizados no Brasil, envolvendo crianças com desenvolvimento típico, como os de Costa (2002); Moojen et al. (2003); Freitas (2004) e A. Morais (2004), sustentam a hipótese de que, quanto mais avançado o nível de escrita, melhor o desempenho em tarefas de consciência fonológica.

A maioria das pesquisas internacionais realizadas tem focado a relação da consciência fonológica com as habilidades em leitura, classificando as crianças, por exemplo, como leitoras ou não leitoras. Essas pesquisas, de acordo com A. Morais (2004), deixam de estabelecer relações entre o processo de apropriação da escrita e as habilidades de reflexão fonológica.

No presente estudo, como pretende-se averiguar a associação existente entre a consciência fonológica e as hipóteses de escrita dos participantes, é importante explicitar os diferentes entendimentos sobre a natureza da relação entre as habilidades metafonológicas e a alfabetização encontrados na literatura.

1.4 RELAÇÃO ENTRE A CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA E O APRENDIZADO DA