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3. ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL

3.5 Aprendizagem e desenvolvimento

Antes de analisar a gênese proposta, importante discutir o contexto no qual Vigotski (2014) empreendeu a sua investigação, no qual preponderavam três concepções acerca da relação existente entre aprendizagem e desenvolvimento.

A primeira, capitaneada por Piaget e de cunho cognitivista, defende a independência entre ambas, sob o argumento de que a aprendizagem é um processo exterior, que não influencia o desenvolvimento.

Assim, o desenvolvimento deve atingir uma determinada etapa, com a consequente maturação de determinadas funções, antes que a aprendizagem possa ocorrer, ou seja, “o curso do desenvolvimento precede sempre o da aprendizagem” (VIGOTSKI, 2014, p. 104).

Em oposição a esta proposição, a corrente behaviorista, encabeçada por Thorndike, afirma que aprendizagem é desenvolvimento, ou seja, cada etapa da aprendizagem corresponde a uma etapa do desenvolvimento, havendo, portanto, uma total identificação entre esses dois processos, que ocorrem de forma simultânea e sincronizada.

Por fim, uma terceira, representativa da gestalt, tenta agregar as proposições anteriormente apresentadas, construindo uma concepção dualista do desenvolvimento: concorda que o processo de desenvolvimento é independente do de aprendizagem, mas, entretanto, afirma que a aprendizagem coincide com o desenvolvimento.

O desenvolvimento, pois, caracteriza-se por dois processos que, embora conexos, são de natureza diferente e condicionam-se reciprocamente. Por um lado está a maturação, que depende diretamente do desenvolvimento do sistema nervoso, e por outro a aprendizagem, que é em si mesma o processo de desenvolvimento.

Koffka, seu principal expoente, defende que a aprendizagem é desenvolvimento, mas ao mesmo tempo não considera “que aprendizagem e desenvolvimento sejam processos idênticos. Postula, pelo contrário, uma interação

mais complexa, (...) [uma vez que] o desenvolvimento continua referindo-se a um âmbito mais amplo do que a aprendizagem” (VIGOTSKI, 2014, p. 109). A Tabela 7 abaixo sintetiza os pontos de vista analisados anteriormente:

Tabela 7 – Desenvolvimento e aprendizagem Principais concepções pré-vigotskianas

Fonte: Elaborado pela autora, a partir de Vigotski (2014, p. 103-109).

Vigotski (2014) não estava satisfeito com nenhuma das teorias até então vigentes, apesar de aproximar-se mais da terceira, ou seja, concordar com Koffka de que desenvolvimento e aprendizagem são processos interdependentes.

Ele ressalta, entretanto, que a interdependência destes dois processos está relacionada à própria gênese do desenvolvimento humano. Isso porque, ao longo da vida, o indivíduo constrói o seu psiquismo a partir da interação entre os planos filogenético e ontogenético.

Cognitivismo Behaviorismo Gestalt Desenvolvimento e aprendizagem são independentes Aprendizagem é desenvolvimento Desenvolvimento e aprendizagem são interdependentes Aprendizagem

Aproveitamento exterior das oportunidades criadas pelo desenvolvimento

Aquisição de capacidades e hábitos específicos, ou seja, formação mecânica de vínculos associativos.

Leva ao desenvolvimento

São processos simultâneos e sincronizados, de modo que a cada etapa de aprendizagem corresponde uma etapa de desenvolvimento

Desenvolvimento e aprendizagem sobrepõem-se Principal

representante Piaget Thorndike Koffka

Processo natural Leva à aprendizagem, numa interação complexa Relação entre desenvolvimento e aprendizagem Processo de desenvolvimento possibilita um determinado processo de aprendizagem, enquanto o processo de aprendizagem estimula o processo de desenvolvimento Desenvolvimento

Processo de maturação sujeito às leis naturais, que cria

potencialidades

Aprendizagem ocorre dado certo grau de desenvolvimento, sem possuir, entretanto, a capacidade de exercer qualquer influência ou modificação sobre ele

Dessa forma, nascido com as características da espécie (filogênese) e constituído a partir das ações e relações sociais travadas com os seus pares, cada indivíduo segue o caminho da ontogênese a partir dos artefatos concretos e simbólicos, das formas de significação e das visões de mundo fornecidas pelos grupos culturais em que se encontra inserido.

Além disso, a pluralidade de conquistas psicológicas que ocorrem ao longo da vida de cada indivíduo gera complexos processos de desenvolvimento, que será singular para cada sujeito.

Por conseguinte, não obstante o percurso do desenvolvimento ser em parte definido pelo processo filogenético de maturação do organismo, conforme postulado por Koffka, é o processo de aprendizagem que impulsiona e viabiliza, em última instância, a construção do psiquismo dos indivíduos.

O aprendizado começa desde os primeiros dias de vida do bebê, a partir da sua interação com os adultos e as crianças mais velhas, inicialmente no nível externo, social, cultural e interpsíquico e, na sequência, a partir da sua significação e internalização, ocorre a sua ressignificação, num nível interno, psicológico e intrapsíquico.

Mas o que Koffka e os demais pesquisadores da época não perceberam é que, na verdade, existem dois níveis de desenvolvimento: o efetivo e o potencial. O primeiro refere-se ao nível de desenvolvimento das funções psicointelectuais que se atingiu como resultado de um processo específico de desenvolvimento já realizado.

Entretanto, este nível de desenvolvimento efetivo não indica completamente o estado de desenvolvimento da pessoa, uma vez que ela pode realizar, com a ajuda de terceiros, um grande número de ações que supera os limites da sua capacidade atual.

Desse modo, “a diferença entre o nível das tarefas realizáveis com o auxílio de terceiros e o nível das tarefas que podem desenvolver-se com uma atividade independente define a zona de desenvolvimento potencial” (VIGOTSKI, 2014, p. 112).

O que o sujeito pode fazer hoje com o auxílio de terceiros poderá fazê-lo amanhã por si só. A área de desenvolvimento potencial permite, portanto, vislumbrar a dinâmica do seu desenvolvimento e examinar não só o que o desenvolvimento já produziu, mas também o que poderá produzir.

Assim, não obstante reconhecer que o processo de aprendizagem se inicia a partir da interação do bebê com os seus familiares, Vigotski (2014) ressalta a importância do aprendizado escolar, que introduz novos elementos ao desenvolvimento da criança, propiciando o conhecimento de novos aspectos, não relacionados aos seus conceitos espontâneos, ou seja, à sua vivência cotidiana.

Isso posto, a fim de tornar-se mais efetiva e abarcar conceitos científicos e mais abstratos, que viabilizam, por sua vez, a compreensão dos seus próprios processos mentais, bem como o seu o acesso ao conhecimento historicamente construído pela humanidade, a aprendizagem deve ocorrer de forma sistematizada e formal, no âmbito da escola ou instituição similar.

Mas para que essa aprendizagem provoque mudanças, deve agir na zona de desenvolvimento potencial (ZDP) das crianças, ou seja, deve envolver conteúdos ainda não conhecidos, mas passíveis de compreensão a partir da ajuda de colegas e professores. Dessa forma, “o único bom ensino é o que se adianta ao desenvolvimento” (VIGOTSKI, 2014, p. 114).

Assim, se o ensino se mantiver restrito aos conteúdos já conhecidos, no chamado nível do desenvolvimento efetivo, não afetará as crianças e, consequentemente, mudanças não serão engendradas.

De igual forma, se for de um nível de complexidade tal que não seja passível de compreensão mesmo com o auxílio de terceiros, o desenvolvimento também não estará sendo viabilizado.

Importante observar que a aprendizagem, mesmo na ZDP, não gera automaticamente desenvolvimento, pois:

O processo de desenvolvimento não coincide com o da aprendizagem, o processo de desenvolvimento segue o da aprendizagem, que cria a área de desenvolvimento potencial. (...) Aprendizagem e desenvolvimento da criança, ainda que diretamente ligados, nunca se produzem de modo simétrico e paralelo. O desenvolvimento da criança não acompanha nunca a aprendizagem escolar, como uma sombra acompanha o objeto que a projeta. (VIGOTSKI, 2014, p. 116).

Na escola, as crianças terão a oportunidade de aprender a escrita, um signo ainda mais complexo e, na nossa sociedade atual, tipicamente grafocêntrica, tão importante quanto a fala.

A sua aprendizagem transforma o psiquismo, na medida em que promove modos diferentes e ainda mais abstratos de pensar, de se relacionar com os seus pares e de produzir conhecimento.

A análise de Vigotski da relação ontogenética da aprendizagem e desenvolvimento teve como foco a sua gênese e como base empírica pesquisas realizadas com crianças, no contexto da nascente e revolucionária União Soviética das décadas de 1920 e 30.

Coube a Leontiev, após a morte de Vigotski, aprofundar nas décadas subsequentes a análise desta relação para além da infância e da adolescência, explicitando o conceito de atividade, que tornou-se basilar na abordagem histórico- cultural soviética.