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4 AS DISPUTAS EM TORNO DA DEFINIÇÃO DO MODELO DE JUSTIÇA

4.3 A aprovação do ECA

Em outubro de 1989, o deputado Octavio Elísio destacou que, em reunião da Associação Brasileira de Juízes e Curadores de Menores, realizada em Cuiabá, depois de discussões sobre a nova legislação, a resistência por parte dos juízes em relação à aprovação do ECA havia sido vencida, tendo recebido apoio da maioria dos presentes. Dessa forma, apontava, estava aberto o caminho para a aprovação do Estatuto (ELÍSIO, 1989). O ECA foi aprovado em junho de 1990, tendo havido um acordo entre as lideranças das principais bancadas parlamentares para a colocação da matéria em regime de urgência urgentíssima.

Em diversos momentos podemos perceber a esperança de que, a partir do ECA, a partir de uma nova legislação, seria possível alterar a realidade das crianças e adolescentes no Brasil. Nos discursos que se seguiram no parlamento, a sociedade civil foi ressaltada como a grande responsável pela reforma legal, e parlamentares de diferentes partidos políticos proferiram discursos na ocasião. De acordo com o deputado Nelson Aguiar:

A mobilização popular, o trabalho das entidades, das instituições, de personalidades, especialmente do mundo jurídico, das equipes técnicas do Congresso e da sociedade, além do labor parlamentar que aqui se desenvolveu até o presente momento representam uma página de lutas que jamais poderá ser esquecida, pois essas lutas fizeram a verdadeira história do Estatuto (AGUIAR, 1990b, p. 8174).

Já aprovado por unanimidade no Senado, e agora em Comissão Especial na Câmara, o Estatuto vai, ainda neste semestre, ser consagrado neste plenário. É a Nação que assim o quer, e nós. seus representantes, nos orgulhamos de cumprir esse papel histórico - privilégio, aliás, que não foi outorgado aos legisladores de outros tempos. Talvez como nós somente assim puderam exultar os abolicionistas da Lei Áurea (AGUIAR, 1990c, p. 4545).

O deputado percebia e apresentava a nova lei como uma revolução, chegando a compará-la à abolição da escravatura, “pois nos instrumentará para a libertação de dezenas de milhões de crianças da escravidão da miséria, do abandono, do analfabetismo, da exploração, da violência, da crueldade e da opressão” (AGUIAR, 1989a, p. 10794). O parlamentar, em outras ocasiões, já havia tecido relações entre a escravidão e a situação dos jovens em situação de vulnerabilidade, apontando que a ausência de criação de condições econômicas e sociais de cidadania para os negros escravizados que haviam sido libertos levou a “uma escravidão talvez ainda pior – a escravidão da miséria!” (AGUIAR, 1989a, p. 10794). De acordo com o parlamentar:

[...] no plano jurídico-social ela significará uma verdadeira “revolução copernicana”. pois: a criança e o jovem, não Estado-Juiz, passam a ser o “sol”, o centro do sistema, em torno do qual o mais deve girar (AGUIAR, 1989a, p. 10794).

O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao contrário do que andam pregando no seu equivocado mister de impedir que se regulamente aqui um dos direitos constitucionais mais sagrado e urgente, além de provocar uma verdadeira revolução de conceitos nessa área do Direito, devolvendo à sociedade uma atribuição que ela não pode alienar ao Estado, restitui a dignidade judicante do juiz, repondo-o ao seu devido lugar de julgador (AGUIAR, 1990c, p. 4545).

Eliana Almeida, que liderava a política de proteção da criança na FEBEM do Pará e coordenava o Fórum dos Direitos da Criança e do Adolescente, em Belém, também recorda o clima de esperança com a aprovação do ECA:

Quando o Estatuto foi aprovado no dia 13 de julho, o sentimento era de vitória, de reconhecimento da criança como sujeito de direitos. Quando entrou em vigor, no dia 12 de outubro, ficamos assistindo à sessão no Congresso e depois fomos para uma praça no centro de Belém com balões, palhaços... dizer para as pessoas que, a partir daquele dia, havia uma legislação para a infância brasileira. Era um momento de esperança, de entusiasmo, de vontade de mudar (UNICEF, 2015).

Como destacado por Beloff (2018) em sua entrevista, no Brasil, o fator emocional e político esteve acima do intelectual. Beloff (2018) afirmou que, no âmbito teórico, uma perspectiva ligada ao marxismo e à ideologia política de esquerda, como eram os movimentos sociais da época, não deveria acreditar que a lei pode mudar a realidade. Porém, nesses grupos de bases militantes de esquerda, instalou-se a ideia de que com a lei se poderia mudar a realidade. Ou, ao menos, que a lei era um passo fundamental para alcançar esse objetivo.

A entrevistada apontou que a esquerda sempre desconfiou da lei. E questionou: como foi que pessoas que tinham experiência em militância territorial, que tinham formação de esquerda, pensaram que com a lei iriam mudar a realidade? (BELOFF, 2018, tradução nossa)58.

De acordo com ela, havia muita força na mensagem passada por meio da representação social dos meninos e meninas de rua, de esperança em “grandes mudanças”, da “cidadania da infância”, de uma forma muito romântica, “mas isso durou o que dura o romanticismo, o que dura uma paixão” (BELOFF, 2018, tradução nossa)59, motivo pelo qual desde cedo surgem

críticas à nova legislação.

De acordo com Beloff (2018), na América Latina, não houve nenhum país que realizou sua reforma de forma tão emocional e política como ocorreu no Brasil, que o fez antes da aprovação da Convenção de Direitos da Criança e do Adolescente, ou seja, antes mesmo de que

58 “¿Como fue que gente que tenía experiencia en militancia territorial, que tenía formación de izquierda, pensó que con la ley iba a cambiar la realidad?” (BELOFF, 2018).

fossem desenvolvidos parâmetros para a nova doutrina. Na América Latina também começaram as discussões sobre os sistemas tutelares e sobre reformas nos sistemas de justiça em geral, “mina interpretação é que é um continente que está desesperado por ter uma utopia”, comenta Beloff (2018, tradução nossa)60. E, dessa forma, os demais países da região tomam o modelo do

Brasil como exemplo. Porém, nos outros países, Beloff (2018) afirma que as reformas foram mais tecnocráticas, mediadas por especialistas, como ela mesma, e realizadas como que “aprendendo” com os erros cometidos no Brasil. De acordo com a entrevistada, “o estranho do processo é que o Brasil faz sua reforma com uma intensidade política incrível, mas com uma qualidade técnica baixa. E isso explica parte dos problemas que o ECA tem. E a América Latina faz reformas que são cada vez mais técnicas, feitas por expertos” (BELOFF, 2018, tradução nossa)61.

Beloff (2018) também destacou as intenções e objetivos dos atores que trabalham nos organismos internacionais como a UNICEF, no sentido de implementarem projetos, programas e de avaliarem os resultados de tais iniciativas, como forma de medirem e legitimarem sua própria gestão. De acordo com Beloff (2018), isso se relaciona às lógicas da burocracia da cooperação internacional, destacando a influência de organismos internacionais no âmbito de reformas legais nacionais, apontando que esses atores “também jogam na política” (BELOFF, 2018, tradução nossa)62.

Marcos da Silva ressalta que a lei foi aprovada durante o governo de Fernando Collor de Melo, tendo sido aprovada diante da pressão internacional que era realizada sobre o país em razão das denúncias de extermínio de crianças e adolescente em situação de rua. De acordo com Silva, o ECA: “é uma lei criada pela sociedade civil organizada, não pelo governo, que só assinou, forçado pela grande pressão internacional contra o extermínio de crianças e pela necessidade de mostrar que o Brasil tinha interesse em respeitar as convenções internacionais” (CASTELFRANCHI, 2005). Em discurso proferido ainda em 1989, Nelson Aguiar afirmava que, no plano externo, o ECA viria para corrigir a imagem do Brasil quanto ao respeito aos direitos de crianças e adolescentes (AGUIAR, 1989a).

Ao apoiar projetos mediante apoio técnico e/ou financeiro, os organismos internacionais não o fazem de forma neutra. De acordo com Beloff (2018), ela mesma já redigiu pareceres a pedido da UNICEF, exemplificando:

60 “Mi interpretación es que es un continente que está desesperado por tener una utopía” (BELOFF, 2018). 61 “Lo raro del proceso es que Brasil hace su reforma con una intensidad política increíble, pero con una calidad técnica baja. Y eso explica parte de los problemas que tiene el ECA. Y América Latina hace reformas que cada vez son mas técnicas, hechas por expertos (BELOFF, 2018).

Havia um problema em um país, aí havia que desenvolver algum argumento, mas é um argumento político, não um argumento científico. Quando digo que a inimputabilidade no sistema brasileiro o que isso significa? Significa que é uma barreira político criminal [...] isso é uma invenção (BELOFF, 2018, tradução nossa)63.

Isso também significa que as disposições legislativas plasmam construções sociais, entendimentos sobre determinados assuntos em determinado contexto e em determinado momento histórico. Como abordamos no próximo capítulo, alguns desses entendimentos que legitimam o modelo de intervenção adotado pelo ECA vão ser alvos de críticas ao longo do século XXI, motivo pelo qual direitos que pareciam conquistados e, de certa forma, “estabilizados”, especialmente na doutrina internacional, como a necessidade de um modelo de intervenção especializado diante da “condição peculiar de desenvolvimento dos jovens”, passam a ser questionados, acirrando as disputas sobre o modelo de justiça juvenil a ser adotado no Brasil.

No que se refere à intersecção entre juventude e criminalidade, as discussões, no âmbito jurídico, giravam em torno do modelo processual a ser adotado, uns postulando que a legislação fosse, basicamente, mantida, enquanto outros defendiam sua reformulação. Assim, podemos afirmar que o ECA é um resultado dos conflitos que permearam sua elaboração e dos dilemas envolvendo a construção de um modelo especializado para lidar com jovens acusados do cometimento de delitos. Em todos casos, apesar das divergências, “garantistas” e “menoristas” defendiam que a intervenção sobre jovens autores de delitos deveria ser realizada em um âmbito especializado, distinto aos adultos.

Na próxima página, apresentamos um resumo dos principais elementos apreendidos da análise realizada neste capítulo.

63“Había un problema en un país, ahí había que armar algún argumento, pero es un argumento político, no un argumento científico. ¿Cuándo digo la inimputabilidad en el sistema brasilero que significa? Significa que es una barrera político criminal […] eso es un invento” (BELOFF, 2018).

Tabela 2. Elementos identificadas nos debates sobre o ECA:

DIMENSOES CATEGORIAS GERAL ESPECIFICO

Quem? Atores

Parlamentares Vinculados à defesa do ECA; Nelson Aguiar e Rita Camata

Judiciais (juízes e promotores)

Edson Seda; Antônio do Amaral e Silva; Antônio Carlos Gomes da Costa;

Munir Cury

Movimentos/organizações da sociedade civil

Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua; Pastorais do Menor; Fórum DCA; ANDI

Internacionais UNICEF

O quê? Representações sociais

Sobre os jovens

Vítimas da negligência estatal e familiar.

Sobre a criminalidade juvenil Consequência da situação de vulnerabilidade social e econômica. Como? Estratégias de intervenção “Menoristas” (modelo tutelar) Justiça especializada; discricionariedade judicial; exame

social e psicológico para determinar a intervenção; indeterminação do tempo de intervenção; decisão consensual;

visão positiva da intervenção estatal.

“Garantistas” (direito penal juvenil)

Justiça especializada; garantias processuais e limites à

intervenção estatal; proporcionalidade entre delito e

pena; tempo de intervenção determinado; defesa versus acusação; visão negativa da

intervenção estatal. Fonte: Elaboração própria.

5 AS DISPUTAS PELA DEFINIÇÃO DO MODELO DE JUSTIÇA JUVENIL POS-