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1.2 A EVOLUÇÃO DO ESTADO DE DIREITO – A RECENTE PREOCUPAÇÃO COM O AMBIENTE

1.2.4 A globalização e a necessidade de um novo modelo estatal

1.2.4.2 Aproximações, diferenças e desafios do Estado de Direito Ambiental

Na abordagem histórica das transformações do Estado foi possível perceber que o perfil de Estado corresponde às principais demandas das sociedades de cada época. Sob esse aspecto, é justificável e coerente o surgimento dos debates acerca do Estado de Direito Ambiental diante da centralidade da proteção do meio ambiente nos dias atuais.

Dentre as perspectivas trazidas pelos autores no item anterior, é possível afirmar que todos partem da necessidade de superação do antropocentrismo clássico engendrado no surgimento da Modernidade como conseqüência do pensamento iluminista. De fato, não há como compatibilizar um horizonte de proteção ambiental com base em concepções que relacionem o ser humano como senhor absoluto e dominador da natureza.

Entretanto, nem todos os juristas apontam para a mesma solução de superação do antropocentrismo. Michael Kloepfer, Manuel Pureza e Catarina Frade falam explicitamente em um Estado cujas bases ideológicas devem estar assentadas em um paradigma ecocêntrico, que concebe a natureza como portadora de valores próprios. Já Morato Leite aponta para uma concepção chamada de antropocentrismo alargado, que reconhece a centralidade do papel do ser humano no momento de elaboração das normas e da tutela ambiental sem, contudo, se deter a uma tutela daquilo que seja unicamente útil à espécie humana. A tutela do meio ambiente para Morato Leite deve ser, então, a mais ampla possível, liberando a ação humana da visão utilitarista própria do antropocentrismo clássico.

De outra parte, Canotilho e Ingo Sarlet concentram suas abordagens no destaque das questões sociais e de democracia. Não é possível, para ambos os autores, falar na construção de um Estado do Ambiente que não seja democrático com uma preocupação clara de inclusão social. Canotilho ressalta, com muita ênfase, a discussão da justiça ambiental, no sentido de que não há como imaginar a consolidação de um Estado do Ambiente que continue mantendo o padrão de exclusão e discriminação social próprio das sociedades capitalistas e consumistas, afinal, esse

modelo de sociedade é que nos encaminhou para o abismo de degradação ambiental atual.

Esse nos parece ser o principal debate acerca do Estado de Direito Ambiental: o elemento democracia, que também nos parece ser o grande ponto de aproximação de todas as abordagens sobre o assunto, já que todos estabelecem a valoração do meio ambiente como um bem em si mesmo e a necessidade de implementação de políticas ecológicas transparentes e acessíveis à toda população.

Nesse sentido, é possível considerar que o Estado de Direito Ambiental não seria uma nova fase do Estado de Direito, já que comunga das bases do Estado Democrático de Direito, necessitando superar exatamente os mesmos impasses que até hoje emperram a concretização desse Estado Democrático, como a desigualdade social e o individualismo. Por isso, acredita-se que o Estado de Direito Ambiental é uma continuidade do Estado Democrático que se consolida diante da centralidade dos debates ambientais.

Portanto, é totalmente legítimo, por exemplo, reconhecer a importância da atuação dos novos movimentos sociais que têm como principais objetivos a proteção da natureza e o impedimento da exploração do homem pelo homem. Este novo Estado, afinal, está conectado à idéia democrática de aumento da ação política social e clama pela participação mais ativa de toda a sociedade civil.

Por todos esses argumentos, o maior valor desse Estado do Ambiente também é a solidariedade, por possibilitar a garantia dos valores presentes nos Estados Liberal e Social (liberdade e igualdade), indo, entretanto, além dessas perspectivas e assegurando a sobrevivência da espécie humana, no modelo atual da sociedade de risco, com garantia de realização de todas as dimensões de direitos fundamentais.

Adentrando na segunda reflexão proposta, pode-se afirmar, após todos os debates aqui desenvolvidos, que não é possível construir um Estado Democrático e Ambiental com base no paradigma econômico dominante, ainda que este já tenha se apropriado do discurso ambiental, utilizando termos como desenvolvimento sustentável ou consumo sustentável. As questões ambientais tratadas sob essa perspectiva podem até representar algum avanço em relação às situações anteriores, mas continuam a

reproduzir os limites próprios do capitalismo, que procura sempre se alimentar das alternativas mais lucrativas.

O Estado de Direito Ambiental ainda está muito longe de ser concretizado. Nem sequer tornou-se possível o Estado Democrático de Direito e sua perspectiva de transformação social. De qualquer forma, o debate ambiental ganha cada vez mais centralidade. Entretanto, tal centralidade não poderá pagar qualquer preço. A permanência de bases democráticas de decidibilidade e o desenvolvimento de padrões de inclusão social e de justiça ambiental, que possibilitem até mesmo a inclusão política de parcelas inteiras da população, alijadas de tais processos pela ausência de concretização básica de seus direitos fundamentais, nos faz refletir sobre o Estado de Direito Ambiental que se quer. Como coloca Catherine e Raphael Larrère, é preciso voltar a conceber o ser humano e a natureza como partes de um mesmo todo, afinal,

se o homem faz parte da natureza, não há razões para dramatizar. Não há que escolher entre a natureza e o homem. Podem ser ambos protegidos, é possível ligar a preservação da diversidade biológica, por exemplo, à defesa da diversidade cultural.114

Nesses termos, repensar a relação ser humano e natureza é, acima de tudo, repensar a relação entre os próprios seres humanos, já que grande parte dos processos de degradação do meio ambiente é fruto de distorções causadas por essas inter-relações.

O grande desafio para a concretização desse Estado seria a mudança desses paradigmas internalizados na sociedade. Essa mudança, no entanto, pressupõe que cada indivíduo, em parceria com o Estado, assuma para si a responsabilidade de cuidado com o outro e a preservação e valoração do meio ambiente. Isso pressupõe a equiparação dos deveres aos direitos, aspecto completamente complicado para uma sociedade acostumada a só ter direitos.

114

LARRÈRE, Catherine; LARRÈRE, Paphaël. Do bom uso da natureza: para uma filosofia do meio ambiente. Lisboa: Instituto Piaget, 2000. p. 17.

No primeiro capítulo analisou-se a definição de Estado de Direito, bem como sua evolução, enfatizando a influência que tais modelos estatais exerceram na degradação ambiental nos dias atuais.

Chega-se a um novo conceito de Estado, denominado nessa dissertação por Estado de Direito Ambiental, que traz o Meio Ambiente como o maior valor a ser considerado. Por esta razão, o Direito também deve assumir uma concepção diferenciada da clássica noção antropocêntrica, para uma concepção biocêntrica ou ecocêntrica. Esta nova concepção não está relacionada com “nunca levar em consideração os interesses humanos”, mas, ao contrário, indica que os interesses humanos não definem e nem comandam todos dos “horizontes de valores”, reconhecendo que há valores naturais, que os homens devem respeitar115.

Este Estado pressupõe não só direitos, mas, e principalmente, deveres, tanto do Estado como da sociedade civil. O presente capítulo procura, então, esclarecer a importância da valorização dos deveres fundamentais, dentro de um Estado de Direito, enfatizando o dever fundamental de preservação ambiental.

Para tanto, far-se-á uma evolução do dever, que ocorreu muito antes da evolução dos direitos e que foi esquecida e desvalorizada na mesma época em que se começou a falar de direitos individuais, frente ao Estado.

Sergio Resende de Barros afirma:

Na história precedente, a era dos deveres antecedeu a era dos direitos. São duas eras seqüenciais na sua passagem cronológica e complementares na sua moldagem histórica, pelo que, o estudo da evolução até os direitos deve preceder o estudo da evolução do direito (...). Dessa maneira, na origem primária, seja na geração atual e singular de um direito, seja na geração histórica e geral dos direitos, o direito nasce da obrigação, o poder nasce do dever. Daí, que os direitos humanos estão, por essa correlação, na dependência dos deveres humanos. Se estes não forem assumidos e

115

PIERRI, Naína; FOLADORI, Guillermo (Eds.). Sustentabilidad? Desacuerdos sobre el desarrollo sustentable. Montevideo, Uruguay: Trabajo y capital, 2001. p. 85.

cumpridos, tendo por fundamento os valores histórico-sociais que os enformam, aqueles serão, em realidade, meros ideais.116

Depois da análise histórica dos deveres, estudar-se-á o Dever Fundamental na Constituição Federal de 1988, destacando seu conceito, sua estrutura e o Regime dos Deveres Fundamentais no Brasil. Tentar-se-á demonstrar que o dever fundamental de proteção e preservação ambiental faz-se necessário para que a preservação do meio ambiente pelo direito não passe de um ideal jurídico. As crises atuais são reflexos da irresponsabilidade de todos. Uma das alternativas para amenizá-las é buscar o dever que cabe a cada cidadão.

Passe-se então ao estudo.

2.1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA DIFICULDADE DA EFETIVAÇÃO