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Aquém do cogito cartesiano e além do sensório

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2. CORPOREIDADE, PERCEPÇÕES E SENSORIALIDADE

2.2 PERCEPÇÃO COMO EXPERIÊNCIA PRIMEIRA

2.2.1 Aquém do cogito cartesiano e além do sensório

Mencionei que na perspectiva de Merleau-Ponty a percepção “antecede” o cogito, pois seria impossível pensar sobre si e sobre o mundo sem a referência primeira do perceber, de habitar um contexto percebido, o que só é possível por meio do corpo (MERLEAU-PONTY,

1945/2011). Importa esclarecer que a crítica do autor procede na referência ao cogito cartesiano, que é uma “apreensão psíquica”: “Foi neste cogito de um instante que Descartes pensou quando disse que estou certo de existir durante o tempo que penso nisso. [...] Põe-se externo às coisas e busca igualmente uma essência, um ideal nos objetos” (MERLEAU- PONTY, 1990, p. 57-58). Assim, não deixa espaço à dúvida.

Merleau-Ponty defende outro sentido de cogito (o perceptivo), o único, a seu ver, sólido: o que se manifesta pela dúvida, pela incerteza, as quais advêm justamente do engajamento no objeto (MERLEAU-PONTY, 1990). Decorre, portanto, da experiência de percebê-lo, de encarnar-se na realidade percebida e admirar-se dela. Esse “irrefletido” é experiência originária, condição para que a intelecção se dê; mais ainda, esta só pode existir devido ao laço com o percebido. Eis o desafio da fenomenologia, de “retornar às coisas mesmas”:

Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala e em relação ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relação à paisagem – primeiramente nós aprendemos o que é uma floresta, um prado ou um riacho (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 4, grifo do autor).

Tanto o intelectualismo quanto o empirismo são posições criticadas pelo fenomenólogo. A última por centrar-se nas impressões sensoriais como vias de conhecimento que apreenderiam o real; portanto, a verdade dependeria do que as impressões representassem para cada um, ou seja, recairia-se no subjetivismo: “O sensualismo reduz o mundo, observando que, no final das contas, nós só temos estados de nós mesmos” (MERLEAU- PONTY, 1945/2011, p. 13). Além disso, presume-se falsamente que a percepção iniciaria-se em órgãos específicos dos sentidos, quando na verdade, como postula o fenomenólogo, a percepção se dá pelo corpo (como um todo). As impressões sensoriais, individualmente, seriam o “final”, o resultado, e não o início da percepção.

Masini (1994) corrobora que, no empirismo,

A faculdade cognoscitiva do homem é vista como tabula rasa e a realidade do mundo é que predomina. O marco inicial do conhecimento é a sensação, definida como ação pontual exercida sobre o corpo e concebida por via de abstração: por um lado a anatomia e a fisiologia formando uma representação do corpo, um conjunto de processos orgânicos (suscetíveis de serem ativados por um estímulo externo) que subentende um percurso anatômico, ligando um receptor a determinado posto de registro; por outro lado o estímulo agindo por propriedades que a química e a física definem objetivamente. Assim, o mundo externo age sobre os sentidos de modo fragmentário e a interioridade do ser fica reduzida às propriedades do objeto transformadas nas qualidades experimentadas como funções orgânicas.

Em sua crítica, Merleau-Ponty (1945/2011) assinala que as sensações não estão regidas por leis fisiológicas, apenas, mas também psicológicas; e entre elas a relação é de entrelaçamento, não de sobreposição:

Uma análise mais exata mostra que os dois tipos de funções se entrecruzam. O elementar não é mais aquilo que, por adição, constituirá o todo, nem aliás uma simples ocasião para o todo se constituir. O acontecimento elementar já está revestido de um sentido, e a função superior só realizará um modo de existência mais integrado ou uma adaptação mais aceitável, utilizado e sublimando as operações subordinadas. Reciprocamente, a experiência sensível é um processo vital, assim como a procriação, a respiração ou o crescimento (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 31).

Ao dizer que o acontecimento elementar já está revestido de um sentido, o filósofo insinua que neste plano – o da experiência sensível – já ocorre uma percepção, que se dá em um contexto e dela emergiu um sentido. É essa a experiência primeira, que reverbera e retorna aos órgãos dos sentidos.

O autor postula que só é possível perceber a partir do corpo e critica a associação que se faz entre percepção e sensorialidade pura, como se a soma das sensações apreendidas no ambiente correspondesse à percepção. Para o filósofo, o processo é inverso: quando o sujeito percebe, o corpo, por inteiro, está envolvido e então decorre a sensação de estar (de algum modo) no mundo. Nessa percepção primeira não estão ainda discriminadas as sensações em cada órgão, muito menos há racionalização. Como a percepção se dá pelo todo e sempre na relação com algo, exclui-se a possibilidade de apreensão de um quale sensorial neutro e que pudesse ser traduzido como conhecimento objetivo.

A experiência perceptiva não se confunde também, por isso, com o conhecimento intelectualmente formulado. Antes de qualquer conceituação, formulação matemática ou denominação geográfica, ou seja, antes que aspectos do mundo sejam passíveis de serem conhecidos “em si”, como realidades objetivas, opera-se um sentir da paisagem e da disposição espacial das coisas no mundo. É isso que permite e projeta a consciência, inclusive a possibilidade de perceber-se como sujeito que percebe, como no seguinte exemplo:

A visão já é habitada por um sentido que lhe dá uma função no espetáculo do mundo, assim como em nossa existência. O puro quale só nos seria dado se o mundo fosse um espetáculo e o corpo próprio um mecanismo do qual um espírito imparcial toma conhecimento [...] O sentir, ao contrário, investe a qualidade de um valor vital; primeiramente apreende em sua significação para nós, para esta massa pesada que é nosso corpo, e daí provém que ele sempre comporte uma referência ao corpo [...] . O sentir é essa comunicação vital com o mundo que o torna presente para nós como lugar familiar de nossa vida. É a ele que o objeto percebido e o sujeito que percebe devem sua

espessura. Ele é o tecido intencional que o esforço do conhecimento procurará decompor (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 83-84).

Ao falar em “esforço”, o filósofo sugere que a pretensão da objetividade existe, é buscada pelo intelecto a partir do solo perceptivo, mas seu completo alcance é ilusório, uma vez que o meio pelo qual a percepção é possível, ou seja, o corpo, está inserido no mundo.

A dimensão subjetiva, por outro lado, não se confunde com subjetivismo. O fenomenólogo assinala que considerar o mundo como produto das sensações ou de estados sensíveis é outro equívoco. O mundo já preexiste ao sujeito, está enraizado numa espacialidade e numa temporalidade e se apresenta sob uma fisionomia, um horizonte perceptivo. Este horizonte traz uma forma, denota uma história e sugere continuidades. Convoca, por isso, o sujeito a “habitá-lo”, de modo que o campo perceptivo faça-se sentido para ele (na dupla acepção do termo: fisiológica e psicológica). Cabe lembrar, contudo, “nosso corpo não tem o poder de fazer-nos ver aquilo que não existe; ele pode apenas fazer- nos crer que nós o vemos” (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 55).

A possibilidade de perceber se dá pela interação com o percebido, razão pela qual a fenomenologia recusa-se a compreender um corpo abstrato (supostamente universal) ou como centrado a um “para si”, pois “só posso compreender a função do corpo vivo realizando-a eu mesmo e na medida em que sou um corpo que se levanta em direção ao mundo” (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 114). Nessa perspectiva, é o corpo que torna possível ao sujeito “ser uma experiência”e “comunicar interiormente com o mundo” (MERLEAU- PONTY, 1945/2011, p. 142, grifo do autor), à medida que vislumbra, desloca-se, projeta-se em relação a algo, entranhando-se nos objetos e constituindo-se com eles. Assim, compreender o corpo supõe compreendê-lo em relação a algo, pois somente assim ele se faz existente e faz as coisas do mundo existirem para o sujeito, como objetos que querem “dizer” algo.

Em suma, trata-se de olhar para o fenômeno e não para partes que se associam. Por essa razão, o corpo, na fenomenologia, não se confunde com a dimensão orgânica, historicamente relegada a uma condição de inferioridade, fraco em relação à alma ou submisso à razão, tampouco justificam-se pretensões de explicá-lo exclusivamente pela fisiologia, ou então pela psicologia.

Os motivos psicológicos e as ocasiões corporais podem-se entrelaçar porque não há um só movimento em um corpo vivo que seja um caso absoluto às intenções psíquicas, nenhum só ato psíquico que não tenha encontrado seu

germe ou seu esboço geral nas disposições fisiológicas (MERLEAU- PONTY, 1945/2011, p. 130).

Contemporaneamente, encontram-se nos trabalhos do biólogo Humberto Maturana fundamentos de uma biologia do conhecimento fortemente ancorada na percepção (MATURANA, 2001). Tal como Merleau-Ponty, concebe o corpo (nas palavras do autor, “corporalidade”) como a via possível para o conhecer; não que o conhecimento esteja no corpo (em determinados órgãos ou funções fisiológicas), mas se dá a partir das relações que este estabelece (MATURANA, 2001). O biólogo acrescenta que a qualidade do observado ou percebido depende de uma correlação interna biologicamente possível.

Depreendo que quando a sensorialidade aparece comprometida ou desorganizada em relação aos padrões de normalidade orgânica, acarreta diferenciais significativos no plano perceptivo e nas interações com o mundo. O problema é que muitos diferenciais não são visíveis ou presumíveis ao observador (externo), de modo que é acrescido um desafio: dar visibilidade dessa percepção aos “normais”. Estudos feitos a partir de testemunhos de pessoas com deficiência parecem ser o meio mais próximo de acedê-la; eles ajudam a compreender nuances da percepção, em que dimensões fisiológicas e psicológicas imbricam-se como corporeidade e produzem emoções, tecendo um solo de conhecimento do mundo.

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