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DESENVOLVIMENTO HUMANO E PERCEPÇÃO

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2. CORPOREIDADE, PERCEPÇÕES E SENSORIALIDADE

2.1 DESENVOLVIMENTO HUMANO E PERCEPÇÃO

Compreendendo o desenvolvimento humano no enfoque histórico-cultural, entende-se que a percepção pode ser situada entre as funções psicológicas superiores, ou seja, entre aquelas tipicamente humanas, constituídas na cultura. Se Vygotsky a elenca entre estas (VYGOTSKY, 1991), depreende-se que não se refere ao perceber instintivo, quase confundido com sensação, como a percepção de um ruído ou de um sabor. Não é essa a percepção da espécie humana, como distintiva das demais espécies. O ser humano atribui sentido (pessoal) e significado sociocultural ao que percebe. Assim, logo confere signos, estabelece associações significante-significado.

O homem, ao perceber um ruído, o relaciona com um parâmetro da cultura e estabelece um série de relações (cognitivas e afetivas) a partir disso. Por exemplo, o ruído é o de um avião que está perto de aterrisar no aeroporto que está localizado próximo. Ou: o ruído é de uma sirene que provavelmente provém de uma ambulância que está se dirigindo a um hospital conduzindo acidentados do trânsito. E então vêm à mente todas as relações, de memória e imaginárias, socioculturais e pessoais que esses eventos – a partir do ruído percebido - possam evocar.

Para quem não apresenta comprometimento nos órgãos dos sentidos esse aprendizado ocorre de forma relativamente espontânea, sem que haja necessidade, por parte dos adultos ou das crianças mais velhas, de ensinarem de maneira intensa ou sistemática como se usa e para que serve cada objeto do cotidiano e o que cada palavra pronunciada ou som significa ou evoca. Na brincadeira infantil, a criança já demonstra esse conhecimento, de modo que as

simbolizações não ocorrem por acaso nem desprovidas de um nexo cultural de referência. No uso do brinquedos e nas interações, no decorrer da brincadeira, a criança não só representa situações características do seu contexto sociocultural como também, nas recriações, vivencia o hipotético, o que deseja ou que perspectiva, sempre a partir do referencial da cultura (VYGOTSKY, 1991).

O aprendizado é facilitado se a criança, além do intelecto, tiver a visão e a audição preservadas. Enxergar facilita a orientação no espaço, o dirigir-se ao outro e o reconhecimento imediato do ambiente físico e dos objetos. E quando a criança apresenta surdez, enfrenta a barreira linguística, de ser mais difícil a interatividade com seus pares da cultura dominante (cultura ouvinte). Além disso, muitos signos visuais e sonoros são informativos do cotidiano (como semáforos, placas de sinalização, escritas e sons de veículos) e de comunicação de massa. A música, por exemplo, é presença comum em entretenimentos sociais e de veiculação de cultura, além de ser constitutiva de sensibilizações.

Portanto, o comprometimento sensorial tem impacto no transcurso do desenvolvimento, não estritamente pelo déficit no organismo, mas pelas consequências de prejuízo social decorrentes. A diferenciação apresenta-se mais expressiva em razão da incompatibilidade da cultura em poder assegurar, de imediato, condições para impulsionar e ampliar o desenvolvimento com a mesma suficiência e consonância com que corresponde às pessoas sem deficiência. Por isso, as linhas do desenvolvimento – biológica e cultural – não se entrelaçam tão espontaneamente, o que retarda a constituição das funções psíquicas superiores (VYGOTSKY, 1993).

Para Vygotsky (1993), a “velha” defectologia equivocava-se em concentrar-se no déficit e atribuí-lo ao organismo, quando as razões para a insuficiência de desempenho (ou os tão referidos, na atualidade, “atrasos no desenvolvimento”) tinham raízes sociais. A prova disso é que, uma vez proporcionadas as condições para a supercompensação - vistas como o aprendizado na vida em sociedade, entre humanos, daquilo que pode desenvolver as funções psíquicas superiores -, promoveria-se o entrelaçamento dos planos biológico e cutural, com crescente tendência ao predomínio do último sobre o primeiro na determinação do processo de desenvolvimento.

Concretizada essa viabilidade, poder-se-ia dizer, então, que não há diferença no processo, para pessoas com e sem deficiência, com referência à seguinte “lei”: ambas estão subordinadas à sociogênese para o alcance das potencialidades tipicamente humanas, expressas pelas funções psicológicas superiores. Essas funções são gestadas em uma cultura e se produzem nas relações sociais, entre pessoas; depois, convertem-se em ferramentas

intrapsicológicas, isto é, modificam o próprio pensamento (VIGOTSKI, 1931/2013; VYGOTSKY, 1991). É o caso da memória (voluntária e com relação significante- significado), da linguagem (constitutiva do pensamento) e da percepção (consciente e imbuída de significações socioculturais).

Coerentemente, o autor pontua que Louis Braille contribuiu muito mais com a educação dos cegos com a proposição do alfabeto para os cegos do que séculos de uma educação centrada no treino da sensibilidade perceptiva dos órgãos dos sentidos (VYGOTSKY, 1993). Enquanto o alfabeto Braille possibilita um aceder cognitivo, à leitura, à escrita, ao domínio de um código (linguagem), a educação restrita ao sensório desconsidera o potencial psíquico da pessoa cega. A compensação é equivocadamente concebida como substituição de órgãos, como se educar um cego correspodesse a ensinar a “ver com as mãos”. Não se considera, aí, a percepção como construção cognitiva nem socialmente determinada, mas estritamente vinculada ao plano elementar.

Nesse prisma, Vygotsky é um crítico da educação centrada na perceptualidade, quando restrita à dimensão sensório-motora. De fato, uma educação sob esse enfoque perde de vista a constituição do humano, centra-se no defeito e ainda procura “revertê-lo” como se o sujeito fosse o próprio déficit ou por ele predeterminado. Não obstante, Vygotsky assinala que o conhecimento dos processos elementares, orgânicos, é importante para a compreensão do desenvolvimento humano (VIGOTSKI, 1931/2013), o que também é coerente, pois eles são constitutivos deste e, no caso de pessoas com deficiência, mostram os caminhos que se evidenciam à compensação.

Daí em diante Vygotsky deu ênfase à elevação da constituição das funções psíquicas superiores e ao papel da educação no processo. Não detalhou metodologicamente a atuação no percurso da convergência do predomínio do biológico para o predomínio da linha cultural como impulsionadora do desenvolvimento nem discorreu sobre o conceito de reserva de compensação e como este estaria envolvido.

Esta lacuna teórica persiste na atualidade: ou se estudam as deficiências e sua caracterização, deixando-se claro que essa configuração inata determina certos comportamentos e certos tipos de aprendizagem/não aprendizagem (mais entendidos como responsividade), ou então, quando a ênfase recai no modelo social em oposição ao modelo médico, salientam-se os recursos de acessibilidade e de tecnologia assistiva.

Mas de onde parte a idealização desses recursos? Por que alguns e não outros? Importa lembrar que a cultura é desenhada por e para “normais”, para um tipo humano padrão. Esse tipo estaria suficientemente apto, por seu próprio saber de experiência, a (re)desenhar-se na

perspectiva do outro? Fazendo uma analogia com a colonização, interrogo: uma pátria estruturada por quem coloniza teria o mesmo enraizamento de uma pátria fundada por quem é da própria terra?

Valentin Haüy e Louis Braille eram cegos; Anne Sullivan, professora da surdocega Hellen Keller, possuía baixa visão; as línguas de sinais desenvolveram-se como idiomas nas comunidades surdas. São exemplos que sugerem que o sucesso dos recursos materiais e dos modos de ensinar foi possível por terem partido da percepção de pessoas cujo desenvolvimento transcorreu de forma diferenciada, afetado por comprometimento biológico. Mais do que o sucesso de um conhecimento, foi, em primeiro lugar, fruto de um saber.

Feranández (2001) faz uma distinção entre os dois termos: o saber passa pelo corpo, ao passo que o conhecimento não. Como exemplifica a autora, não se confia em quem diz que conhece como se dirige um carro, e sim em quem afirma que sabe dirigir (FERNÁNDEZ, 2001). No conhecimento, apenas o intelecto está envolvido; o sujeito acumula conhecimentos sobre algo. No saber é imprescindível a experiência, o por em jogo o próprio corpo.

Merleau-Ponty (1945/2011) também ressalta o saber experimentado – pelo corpo - e o diferencia do provindo do intelecto: “Engajo-me com meu corpo entre as coisas, elas coexistem comigo enquanto sujeito encarnado, e esta vida nas coisas não tem nada em comum com a construção dos objetos científicos” (MERLEAU-PONTY (1945/2011, p. 252).

No transcurso desta tese, emprego a palavra corporeidade em virtude do explicitado na Introdução, para evitar a redução do entendimento de corpo à organicidade, uma vez que na literatura o conceito é constantemente identificado como organismo físico e no âmbito médico. Convém acrescentar que esta foi também uma preocupação de Comin e Amorim (2008), que realizaram uma revisão bibliográfica sobre o termo na literatura científica. Os autores consultaram as bases de dados PsycInfo, Medline, Scielo e Lilacs demarcando o período 1970 a 2005. Propositadamente não utilizaram a palavra “corpo”, uma vez que esta sugeriria a emergência de trabalhos com enfoque estritamente orgânico; assim, empregaram: “corporeidade”, “corporeality”, “corporality” e “embodiment”; incluíram, ainda, “dialogismo”. Mesmo assim, “vale frisar que se encontrou um enorme quantidade de estudos fundamentados na herança do modelo médico que abordam a corporeidade de um modo biologizante, em termos de capacidades, incapacidades e doenças físicas” (COMIN; AMORIM, 2008, p. 199). Outros trabalhos foram excluídos da análise por não abrangerem aspectos relacionais (com o outro) ou contextuais, ou então por apresentarem enfoque estritamente psicoterapêutico.

Psicologia. Chamaram atenção dos analistas a presença de reflexões advindas da filosofia como embasamento e a recorrência da fenomenologia merleaupontiana. Outro destaque foi a ausência de definição clara de corporeidade. Há diálogos com o termo, mas somente uma autora, Ymiracy Polak, da área de Enfermagem, propôs uma definição, também sob inspiração de Merleau-Ponty:

Para mim, corporeidade é mais que a materialidade do corpo, que o somatório de suas partes; é o contido em todas as dimensões humanas; não é algo objetivo, pronto e acabado, mas o processo contínuo de redefinições; é o resgate do corpo, é o deixar fluir, falar, viver, escutar, permitir ao corpo ser o ator principal, é vê-lo em sua dimensão realmente humana. Corporeidade é o existir, é a minha, a sua, é a nossa história (POLAK, 1996, p. 119, grifo da autora).

Essa definição me apraz, uma vez que subentende-se um corpo em constante potencialidade de transformação, o que é coerente, pois, uma vez que as “coisas” no mundo - os cenários, as pessoas, as relações e os eventos - se modificam e trancorrem, o sujeito que os percebe, sendo parte deles, também tende a se modificar. Sua história pessoal - sua existência - faz-se nesse transcurso em um quadro sociocultural, de alguma forma.

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