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2 UMA ANÁLISE DO CRIME DE LESA-MAJESTADE

2.5 Aquele que pode ser traidor e o problema do não súdito

Pela lógica da relação de maiestas, assim como a da monarquia, que caracterizavam boa parte dos Estados ocidentais, desde a Antiguidade até o Antigo Regime, se há alguém em posição superior, deve haver aquele em posição inferior que se submete às vontades do príncipe. Esses são os súditos. Tanto pela questão religiosa, de que o rei é representante de Deus, assim como por conta da relação de majestade, os súditos estavam em estado de sujeição, o que significa que devem obediência e fidelidade ao rei.

Em tese, qualquer pessoa podia cometer o crime de lesa-majestade, desde que sua conduta se volte contra alguém de hierarquia superior. Levando tal ideia às últimas consequências, o imperador ou rei, como não reconhece, no plano temporal, ninguém acima dele, nunca poderia cometer o crime de lesa-majestade, e todos os seus atos, por mais injustos que fossem, seriam julgados somente pelo divino.

A grande questão que se faz importante, neste momento, é saber se os não súditos podiam ser criminalizados por lesa-majestade. A princípio, em uma análise lógica, por conta da necessidade de relação de majestade, somente os súditos podiam ser alvos do crime de lesa- majestade, já que aqueles que não estavam dentro da hierarquia não poderiam violá-la. Somente ofenderia a maiestas aquele que se encontrava dentro da relação de hierarquia.

No entanto, e aqui se inicia a discussão, deve-se lembrar que um fundamento do crimen laesae maiestatis é a manutenção da ordem. Além disso, como o Direito Penal, à época, prestava-se, em última análise, para proteger o poder e os interesses dos governantes, havia formas engenhosas de raciocínio para inserir os não súditos no alcance do crime.

Para responder tal pergunta, é necessário tentar traçar linhas básicas sobre quem seria o súdito. Mario Sbriccoli (1974, p. 224 et seq.), quando fala do assunto, demonstra que havia grande discussão nos autores do ius commune que parece nunca ter tido uma resolução. Como regra geral, o súdito seria aquele que possuía domicílio ou que nasceu no território de domínio do príncipe, e que estava dentro da relação de maiestas, como foi dito há pouco. Ainda, seria súdito aquela autoridade política que estava submetida a uma relação feudal com um rei ou imperador, sendo seu vassalo.

Entretanto, para fins do crime da lesa-majestade, havia o critério da rationi delicti que, em outras palavras, significa que o comportamento sedicioso seria punido de acordo com as leis do local que fora praticado. Assim, mesmo não sendo súdito de determinado território, alguém que se comportava de forma a ofender o príncipe ou a ordem seria julgado pelo crime de lesa-majestade naquele local. Sobre este pensamento, Girolamo Giganti (1598, p. 136) dizia que ser súdito em razão do lugar onde se comete o crime não poderia ser aplicado ao crime de lesa-majestade. Este possui como pressuposto lógico a maiestas, e se essa não existe, a ofensa deixa se configurar o referido delito.

Havia ainda mais dois raciocínios para ampliar os sujeitos ativos do crime. A primeira era de que a honra do príncipe sempre deveria ser defendida, independentemente de quem atente contra ele. A segunda, provavelmente derivada da primeira, parte de um caso mais específico, qual seja, a existência de embaixadores do príncipe em territórios que não estavam sob o domínio deste. Era necessário proteger tais funcionários da mercê do povo da outra comunidade. Mesmo que estrangeiros os ofendessem, ocorreria o crime de lesa-majestade.

Durante muito tempo na história do mundo ocidental, a pena de banimento era possível, também chamada de morte civil, degredo, perda da paz, entre outros termos. A ideia central destas punições era justamente expulsar o condenado do reino, da cidade, do império. Ele perdia sua cidadania, e, por consequência, a proteção que aquele Estado dava aos seus membros. Então, sendo banido, ele sairia da relação de maiestas com as autoridades de sua nação de origem, deixando de ser súdito.

Em uma primeira análise, poder-se-ia dizer que aquela pessoa expulsa não poderia mais cometer crime de lesa-majestade contra seu antigo rei, por exemplo. Ocorre que a literatura do ius commune, para este problema, aparentava não ter uma resposta única. A partir do momento que a pessoa é banida, ela era considerada um estrangeiro, não estando mais submetida à

hierarquia do seu Estado de origem. Portanto, seus atos contra seus antigos superiores não poderiam ser considerados crimen laesae maiestatis (SBRICCOLI, 1974, p. 237).

Mario Sbriccoli (1974, p. 237-238) lembra do entendimento em que, mesmo se tratando de um banido, este poderia ser condenado pelo crime, já que tais pessoas podiam ser um perigo externo para o Estado, principalmente por terem feito parte dele anteriormente, havendo a possibilidade de auxiliar outras nações com informações. Assim, deveria ser o banido tratado como um inimigo. Caso cometido o crime pelo exilado, outras penas deveriam ser aplicadas de modo a atingir os seus familiares. Assim, fala-se do confisco de bens e da infâmia, que acabavam resvalando na família do banido, pois ficariam sem meios de vida, e ainda seriam mal vistos dentro da comunidade.

Quando se compara o inimigo com o exilado que age contra seu Estado de origem, na verdade legitima-se o príncipe para que, com a finalidade de proteger seu poder e a ordem, passasse por cima de qualquer entendimento jurídico (SBRICCOLI, 1974, p. 239). Ou seja, sendo um inimigo, não há regras a serem seguidas, e qualquer ato para eliminá-lo não teria relevância para teorias jurídicas, sendo uma necessidade fática.