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Considerações sobre a (in)existência do princípio da legalidade no Antigo Regime

3 A TIPICIDADE E TIPIFICAÇÃO DO CRIME DE LESA-MAJESTADE E O CASO DA

3.4 Fundamentos para tipicidade do silêncio infiel

3.4.2 Considerações sobre a (in)existência do princípio da legalidade no Antigo Regime

estritamente observado. Por tal princípio, que segue o brocardo nullum crimen, nulla poena sine lege, entende-se que os crimes e as penas devem ser previstos em lei (em sentido estrito) já existente na época do fato, ou seja, deve ser anterior. Se não for assim, o fato seria atípico, não sendo crime. Portanto, não seria possível buscar outras fontes para se considerar determinado fato como uma infração penal, seja a literatura jurídica, os costumes ou decisões judiciais.

Da mesma forma, não é admissível a utilização de analogia para incriminar determinada conduta, a chamada analogia in malam partem, pois é uma forma de integração de lacunas que se utiliza de uma norma legal de certo caso para aplicação em outro similar, o que não se conforma com a ideia da legalidade, pois seria necessária uma lei anterior que regulasse tal fato não previsto.

Tal princípio da legalidade já era debatido no século XVIII por Beccaria e Montesquieu, por exemplo. O primeiro sustentava que a soberania de um Estado se dava a partir das parcelas de liberdade cedidas pelos seus membros, e que, portanto, essa mesma liberdade só poderia ser retirada pelo soberano, e não pelos magistrados. Desta forma, só a lei poderia restringir os direitos do cidadão, e, por consequência, só essa mesma lei poderia descrever crimes e cominar penas (BECCARIA, 1765, p. 11). Montesquieu, no mesmo sentido, afirmava que é uma característica do despotismo o fato de o julgador condenar criminalmente alguém e aplicar pena sem que haja uma lei anterior que preveja tal punição. Para haver um regime republicano, um dos pontos essenciais seria o juiz se ater à literalidade da lei, sem fazer qualquer inovação (MONTESQUIEU, 2000, p. 87).

Como lembra Rafael Mafei Rabelo Queiroz (2008, p. 43), o princípio da legalidade de Beccaria é diferente do que se fala nos dias atuais. Na sua obra, a preocupação maior não é exatamente com a criação de delitos, mas sim a aplicação de penas não previstas em lei. Na contemporaneidade, o foco muda um pouco de posição. Preocupa-se, atualmente, com a anterioridade legal da pena, mas, ao mesmo tempo, existe uma grande atenção com quem tem a atribuição de criar delitos, e como devem ser criados.

Mesmo havendo discussões no século XVIII a respeito do princípio da legalidade, este não era utilizado na prática da forma que os filósofos acima apresentavam. Entendia-se que a lei somente deveria trazer contornos gerais a respeito dos crimes, sem a necessidade de definir com precisão e taxatividade as condutas que constituiriam delitos. Assim, havia uma margem de discricionariedade para o julgador para inserir diversos fatos não expressamente previstos nos tipos penais abertos. Mesmo com essa ideia diversa do que se tem da legalidade moderna, o preceito do crime de lesa-majestade nas Ordenações Filipinas tentava trazer várias hipóteses em que o delito estaria configurado, descrevendo-as com detalhes.

O princípio da legalidade, a partir do iluminismo e das ideias liberais, tinha o propósito de garantia, ou seja, trazer limitações ao arbítrio do Estado (QUEIROZ, 2008, p. 42), fazendo com que o soberano respeite as próprias leis que cria e a liberdade das pessoas, restringindo-a somente em casos previstos na própria lei. Ocorre que, no sistema anterior, na maior parte do Antigo Regime, tal legalidade não tinha esse propósito. Na verdade, parecia estar mais ligada com uma demonstração de poder, prerrogativas do soberano contra os seus súditos, e com o propósito de os ameaçar sem necessariamente incorrer em punições (HESPANHA, 2013, p. 207).

Predominava na Idade Média e Moderna, principalmente no período da monarquia corporativista, na perspectiva da administração da justiça, a ideia de arbitrium iudiciis (HESPANHA, 2013, p. 207), ou seja, um poder atribuído a alguém em razão de um ofício público, como o juiz, que tem como base a consciência e a vontade do julgador, que pretende trazer justiça e equidade para o caso concreto, mas que, ao mesmo tempo, tem como limitações as razões já sedimentadas na cultura jurídica, servindo como um instrumento de “adeguamento tra realtà e diritto” (MECCARELLI, 1998, p. 22). O arbitrium do julgador não dá liberdade ilimitada para decidir o caso concreto. O magistrado estaria restringido pelo entendimento da literatura sobre o tema, assim como ao contexto do fato em questão.

Desta forma, a decisão não é exatamente predeterminada, havendo uma larga margem de discricionariedade para o julgador. Além disso, a lei formal não é grande preocupação, sendo somente um indicativo das bases e o espírito de justiça que devem ser utilizados. Portanto, seria desnecessária a sua observância em termos estritos. Assim, enquanto no modelo iluminista a lei é a principal fonte do direito, no sistema anterior, a ideia de arbitrium que tinha prevalência, não se importando com conclusões jurídicas retiradas da lei, mas sim da “sciencia iuris”

(MECCARELLI, 1998, p. 37). Poderia, então, o arbitrium ser um instrumento de inovação do Direito.

No que tange ao Direito Penal, o arbitrium se prestava para adequar a pena, por exemplo, ao fato criminoso, nos casos de não haver uma punição prevista em um estatuto, ou na hipótese do castigo previsto não ser adequado para o caso (MECCARELLI, 1998, p. 198 et seq.). Poderia o juiz se utilizar de uma pena não disposta anteriormente em fontes formais da ordem jurídica. Identifica-se a função do arbitrium de fazer a integração de lacunas penais, quando não há pena cominada, ou a finalidade de trazer maior justiça para o caso concreto, modificando o castigo previsto, seja para mais ou para menos, propondo-se como um aperfeiçoamento do Direito.

O mesmo raciocínio poderia ser aplicado à criação de novos fatos típicos. No contexto do direito comum, a lei era entendida como um estatuto de normas jurídicas não necessariamente completa, acabada ou definitiva, que somente se aplicava em sua inteireza dentro do contexto em que foi criada. Não sendo assim, caberia aos juristas atualizar tal lei, podendo, inclusive, criar novos crimes através do arbitrium. Segundo Massimo Meccarelli (1998, p. 238-239), a lei não era a única fonte de disposição de fatos delituosos, e o princípio da legalidade não era entendido como se faz atualmente.

António Manuel Hespanha (2013, p. 226), em um texto sobre a persistência do arbítrio do Direito contemporâneo português, afirma que durante a primeira metade do século XIX, não havia código criminal em Portugal, sendo os crimes ainda regulados, na perspectiva estatutária, pelas Ordenações Filipinas, que estavam desacreditadas, justamente por serem produto de outra realidade. Assim, utilizava-se da doutrina para definir crimes e penas e outros assuntos que os envolvam, como era o caso dos ensinamentos de Pascoal José de Melo Freire dos Reis. Além disso, havia grande margem para a dominação do Direito pela doutrina, já que as próprias Constituições portuguesas permitiam a inovação da lei pelos juristas. Até os dias de hoje, é possível enxergar grande margem de manobra dos juristas para interpretar a lei, mas agora baseados em outros fundamentos, que não o arbitrium do direito comum.

O princípio da legalidade só tomou maiores proporções e contornos modernos a partir de Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach, que viveu entre 1775 e 1833 (QUEIROZ, 2008, p. 196-197). Para este filósofo do Direito Penal, a legalidade deveria ser entendida como forte, ou seja, relacionando-se não só com a exigência de uma lei formal anterior que preveja a pena,

mas também que disponha precisamente ou taxativamente a descrição do crime. Ampliava-se os ensinamentos de Beccaria. Além de limitar o poder punitivo do soberano, o propósito de tal construção teórica era principalmente tornar mais eficaz a coação psicológica sobre os cidadãos, forçando-os a não praticar condutas ilícitas ao deixar mais claro quais são proibidas pelo Direito Penal. Chama-se tal característica atualmente de função preventiva geral negativa da pena, isto é, intimidar as pessoas em geral para que não atuem de determinada forma não aceita pelo Direito. Caso contrário, serão submetidas à punição prevista. Desta forma, seria necessária que a pena também fosse certa, para reforçar tal coação (QUEIROZ, 2008, p. 190 et seq.).

Diante deste quadro da prática do Direito Penal em boa parte do Antigo Regime, em que a legalidade não era compreendida como passou a ser nos fins desta época e na contemporaneidade, era possível a busca de outras fontes que não a lei para apontar a existência de um crime. E, havendo lacuna nas Ordenações Filipinas, buscava-se o direito subsidiário, ou seja, o direito romano, canônico, e a opinio communis doctorum. No que tange à literatura do direito comum, a análise minuciosa desses autores e sobre o que eles falam do silêncio infiel deverá ficar para um próximo trabalho, muito em razão da falta de tempo hábil para se fazer tal tarefa durante a pesquisa de mestrado, já que se tratam de livros e coleções extensas escritas em latim, o que exigiria anos de pesquisa.