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2 UMA ANÁLISE DO CRIME DE LESA-MAJESTADE

2.8 O crime de lesa-majestade no império português

2.8.2 O crime de lesa-majestade na legislação portuguesa

Teresa Luso Soares (SOARES, 2013, p. 172) aponta que a primeira legislação a tratar sobre a traição em Portugal foi a de D. Afonso II, que reinou entre 1211 e 1223, decretada no primeiro ano do seu governo. Não havia expressamente o termo “lesa-majestade”, mas já se falava sobre atentados contra o monarca ou seus parentes mais próximos. A punição era a morte e o confisco de bens. Em tal norma, havia a equivalência, para fins de tipificação criminal, entre a traição contra o rei e a traição contra o amigo, o pai ou o senhor, conhecido como aleivosia. Ainda, existia uma confusão entre a lesa-majestade humane e a divina, já que a própria lei comparava o crime com a heresia (HESPANHA, 2015, § 2284).

Em 1355, têm-se a lei de Afonso IV (r. 1325-1357), o qual nomeia tais tipos de delitos como “crimj Leese maJestatis” (RODRIGUES, 1971, p. 481). Tal determinação real, na verdade, falava sobre como deveriam ser processados alguns crimes, elencando a lesa- majestade no rol de crimes dos quais o processo deveria ser iniciado de ofício por juízes, vereadores, ou qualquer um que tivesse a competência para julgar tais fatos. Assim, não tratava exatamente sobre a tipificação, mas trazia a expressão lesa-majestade.

A lei de 1406 e o decreto de 1433, ambos de D. João I (r. 1385-1433), determinavam a possibilidade de homiziados, ou seja, pessoas que respondiam por crimes, mas não se encontravam presos, de se firmarem em localidades específicas chamadas coutos, as quais eram necessárias para a habitação de portugueses por questões de defesa de fronteiras do reino. Ocorre que estas mesmas espécies normativas traziam uma exceção: aqueles acusados por traição ou aleivosia não poderiam ser beneficiados, não encontrando segurança nos coutos (SOARES, 2013, p. 174 et seq.).

Com as Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1603), o tema criminal passou a ser previsto em uma parte específicas dessas ordenações, qual seja, o Livro V. Neste, os delitos foram também divididos em títulos, de acordo com sua gravidade e

temática. Já o crime de lesa-majestade foi classificado em primeira cabeça e segunda cabeça. Lembra-se que primeira cabeça significa aqueles comportamentos mais graves, que afetam diretamente a pessoa do soberano. Já os de segunda cabeça englobaria as outras condutas que de forma indireta signifique um desrespeito ao monarca.

Nas Ordenações Afonsinas, o crime podia ser encontrado no título II com os termos “treiçom” e “aleive”. Percebe-se, já de início, que se protegia a fidelidade de modo geral, não só em relação ao rei. A quebra de lealdade em relação ao rei, a um amigo, a um senhor ou ao pai caracterizavam tal delito. A relação que havia entre o monarca e o súdito era quase equiparada com outras relações sociais consideradas como bases para a sociedade, apesar de que “no seio do tipo penal, se estabelecem gradações” (HESPANHA, 2015, § 2285).

Estas Ordenações (Ord. Af., V, II, 3) comparavam a traição e a aleivosia com uma doença contagiosa que se espalha por toda a sua descendência e que pode contaminar outros, motivo pelo qual o traidor deve ser excluído da sociedade, justamente para não incentivar ou infectar outras pessoas com a vontade de desobedecer ao soberano. Portanto, as penas previstas eram de morte natural cruel, significando que se tirava a vida através de métodos de tortura. Ainda, havia o confisco de todos os bens e a infâmia, punição que afetava também os descendentes. No caso do delito de segunda cabeça, conforme o Livro V, II, 21, o castigo corporal ficaria ao arbítrio do julgador, não se aplicava a infâmia, e os bens não seriam confiscados caso houvesse herdeiros, em tudo levando sempre em consideração o estatuto pessoal do condenado, ou seja, seu status social (SOARES, 2013, p. 178).

As Ordenações Manuelinas e Filipinas mantiveram semelhante sistema, havendo algumas modificações se comparadas com as Afonsinas. Primeiro, separava a lesa-majestade da aleivosia, isto é, aquele crime não se caracterizava mais pela falta de fidelidade em relação aos amigos, pais e senhores, mas somente frente ao monarca. Existia uma especificação de que só se comete contra o rei ou seus familiares. Os comportamentos de desrespeito a autoridades subalternas, e que não tinham como alvo o monarca, migraram para outros crimes (HESPANHA, 1987, p. 558).

Era considerado crime de primeira cabeça auxiliar acusados do crime de lesa-majestade a fugir da prisão. Neste caso, aquele que ajudava não sofreria a pena de infâmia. Já os crimes de segunda cabeça poderiam ter como punição o confisco dos bens, mesmo que existisse herdeiros (SOARES, 2013, p. 180). Por conta da importância das Ordenações Filipinas para o

Antigo Regime em Portugal e para suas possessões ultramarinas, tal legislação será analisada em tópico apartado.

Normativos que se seguem a 1603, principalmente com a ascensão de D. José I (r. 1750- 1777), deflagram uma tendência centralizadora e, em direção contrária à especificidade que trazia os ordenamentos, de ampliar o alcance do crime de lesa-majestade. Primeiro, fala-se da carta régia de 21 de outubro de 1757, o qual incluiu no rol do referido delito qualquer confederação, ajuntamentos ou discursos revoltos que se colocassem contra às ordens e às leis do rei. Tal normativo surge como resposta ao julgamento da revolta do Porto de 23 de fevereiro de 1757, o que, pela Relação foi considerado crime de assuada (Ord. Fil., V, título XLV), e não de lesa-majestade (SOARES, 2013, p. 181).

O delito passou a abranger os magistrados do monarca, através do Alvará de 24 de outubro de 1764, pelo qual se configurava crime de lesa-majestade de segunda cabeça a oposição armada, mesmo sem lesões físicas, de qualquer pessoa às autoridades subalternas ao rei, já que estes agem sob às ordens do monarca. A pena de morte natural e o confisco de bens seriam aplicadas nos casos de haver ferimentos, mesmo leves, e quando, mesmo sem haver feridos, a diligência da autoridade fosse impedida (SOARES, 2013, p. 182).

Tem-se também o Alvará de 17 de janeiro de 1759 (SILVA, 1830, p. 646), o qual, além de confirmar a decisão que condenou membros da família Távora no caso do atentado contra D. José I (03 de setembro de 1758), também derrogou expressamente o parágrafo 15, do título VI (crime de lesa-majestade), do livro V das Ordenações Filipinas, mas somente no que tange às doações. Antes de tal decisão, os bens doados daqueles que cometiam o delito não seriam confiscados. Com este alvará, em todos os casos de lesa-majestade de primeira cabeça, tais bens passariam a ser objetos de reversão para a Coroa, inclusive no caso concreto referido, o que demonstra a não preocupação com a retroatividade das leis penais.

Segundo Hespanha (1987, p. 558-559), a proposta de um código criminal de Pascoal José de Mello Freire dos Reis tentava se afastar de posições de legislações anteriores. Primeiro evitava equiparar a relação de fidelidade ao rei com a fidelidade perante qualquer outra pessoa. Em segundo, retirava o caráter personalista de violação à pessoa do rei, colocando o crime de lesa-majestade como um atentado ao próprio Estado, em que o monarca é um representante. Desta forma, a ofensa a qualquer autoridade estatal passava a se caracterizar como este crime. Nota-se que, apesar da influência iluminista de Mello Freire, sua proposta pretendia dar ainda

mais alcance ao crime, já que a proteção deixava de ser relativa a somente um ou poucos indivíduos para compreender uma grande entidade abstrata.