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Capítulo 6. Identidade-no-contexto: o processo de identidade de vilarejo a cidade

6.4. Aqui, agora e depois?

“Quem somos nós?” é inseparável de “Onde estamos, de onde viemos, para onde vamos?”

Edgar Morin (2009)

A identidade de lugar consiste, de acordo com Proshansky e colaboradores (1983), em uma variedade infinita de cognições que definem e circunscrevem a existência cotidiana do indivíduo, as quais se relacionam tanto ao passado e presente quanto a antecipações acerca do mundo que o cerca. Ainda, ela influencia o modo como o indivíduo vê, sente e pensa em suas transações com o ambiente.

No âmbito desta investigação, os indicadores do processo de reestruturação da identidade de lugar dos participantes apontaram, conforme proposições de Twigger-Ross e colaboradores (2003), para uma definição de estados desejáveis para a estrutura de identidade. Esses se referem principalmente a uma avaliação positiva das mudanças graduais no contexto da sede municipal do presente em relação ao passado e a um senso de familiaridade e pertencimento em relação à localidade. Muitos elementos da análise dos resultados parecem corresponder à assimilação de novas informações do contexto da sede municipal como definidoras da identidade de lugar dos participantes (como por exemplo, o fato dos nativos serem receptivos e mais “mente aberta” do que os de outros distritos ter sido atribuído por eles ao desenvolvimento turístico da sede municipal). O reconhecimento das novas propriedades, ou um senso de familiaridade com o lugar, também se relacionaram a muitos aspectos de continuidade do ambiente. O desejo de continuidade (no lugar e de aspectos deste lugar), expresso por muitos entrevistados, foi muitas vezes relacionado à possibilidade de satisfação de suas necessidades proporcionada por este

ambiente e por seu desenvolvimento (como por exemplo, a qualidade de vida em função da tranquilidade, segurança, “fartura” do lugar, geração de empregos, etc).

No entanto, muitos aspectos negativos do desenvolvimento da localidade foram evidenciados em relação às condições atuais da sede municipal, com destaque à diminuição do fluxo turístico, à falta de investimentos em infraestrutura voltada a este setor e a diversas dificuldades na educação das novas gerações. Ainda, eles foram constantemente mencionados juntamente a expressões de preocupação e incertezas em relação ao futuro da localidade.

Vale ressaltar que os especialistas, ao serem questionados acerca das possíveis implicações para os nativos das mudanças na localidade nas últimas décadas, também destacaram muitos aspectos positivos do desenvolvimento dos nativos e da localidade, ao mesmo tempo em que a maioria dos relatos evidenciou uma preocupação em relação ao futuro deles. Essas preocupações, dos nativos e dos especialistas, ganharam maior ênfase em relação à juventude, destacando-se a falta de apoio institucional (educação de qualidade, capacitação profissional e opções de lazer e cultura), assim como o despreparo dos pais para educar seus filhos em uma sociedade com normas bastante diferentes daquelas que conheciam. “só negócio de bandido mesmo, porque ninguém pode mais exemplar um filho não. Se você bater, disse que bater num dá jeito (...) Eu acho que os governantes que é culpado por esses tipos de coisa. Que trocaram a lei certa” (Ent09, 62M).

Em uma pergunta direta acerca de como imaginavam a cidade futuramente em 10 anos, somente um entrevistado (Ent12, 47M) foi otimista e achou que a cidade (“como sempre”) melhoraria. Nove participantes (Ent01, 06, 07, 08, 14, 17, 23, 25, 29) opinaram que, “do jeito que as coisas iam”, a tendência seria piorar. Seis entrevistados (Ent 03, 05, 09, 15, 18, 25) se referiram às circunstâncias estarem sujeitas aos prefeitos que assumiriam a administração, e outros ainda disseram depender da “divulgação” da cidade, mas não atribuíram diretamente a responsabilidade a ninguém. No geral, a maioria preferiu expressar que gostaria que a cidade melhorasse, muitos destacando que dependeria de investimentos principalmente em educação de qualidade para os jovens. Quatro depoentes (Ent 11, 16, 26, 27) opinaram que provavelmente estaria igual (“calmo” ou “parado”), tanto com avaliações positivas quanto negativas.

Um fator a ser destacado em diversos apontamentos feitos pelos entrevistados se refere à sujeição do futuro da cidade à vontade política. Mumford (1991) destacou que o poder dos governantes como principal agente do desenvolvimento humano tomou uma

forma institucional nas cidades, levando a consequências desastrosas (“aberrações”, nas palavras do autor). Lefebvre (2001) afirmou que, com o desenvolvimento das cidades modernas, a reflexão urbanística ficou a cargo dos centros de decisões. “Atualmente, tornando-se centro de decisão ou antes agrupando os centros de decisão, a cidade moderna intensifica, organizando-a, a exploração de toda uma sociedade” (Lefebvre, 2001, p. 57). O autor argumentou acerca da necessidade de uma reforma urbana que garanta os direitos dos seus cidadãos em participar no desenvolvimento e planejamento do espaço urbano e em apropriar-se dele, apropriação esta que vai muito além dos direitos de propriedade somente (p. 135).

Galvão (2006), referindo-se às mudanças que o advento da estrada e a atividade lagosteira estavam provocando em Tibau do Sul, relatou:

Antigamente as comunidades isoladas conservavam por várias gerações seus hábitos, suas técnicas de cultura material e seus padrões culturais. Quando, porém, o processo de mudança se inicia, as coisas se misturam e até que se verifique a assimilação total, coexistem traços da cultura local ao lado da cultura invasora, os quais vão sendo imperceptivelmente aceitos (p. 23)

Essa dificuldade de percepção das mudanças ambientais graduais foi atribuída por Sommer (1979) à lei do efeito. A percepção de continuidade de elementos físicos, sociais e culturais no ambiente da sede municipal, expressos por muitos participantes deste estudo, bem como a própria continuidade de mudanças na localidade que favoreceram o seu desenvolvimento e contribuíram para avaliações positivas dos elementos de distintividade, autoestima e autoeficácia dos entrevistados, podem ser considerados como “facilitadores” de uma “aceitação imperceptível” das mudanças nesse contexto. Hall (2006), ao refletir sobre o ritmo e alcance das mudanças na sociedade pós-moderna, afirmou:

Essas últimas (instituições modernas) ou são radicalmente novas, em comparação com as sociedades tradicionais (por exemplo, o estado-nação ou a mercantilização de produtos e o trabalho assalariado), ou têm uma enganosa continuidade com as formas anteriores (por exemplo, a cidade), mas são organizadas em torno de princípios bastante diferentes (p. 15)

Muitos “princípios bastante diferentes” da cidade atual de Tibau do Sul em relação ao antigo vilarejo podem ser salientados. Alguns aspectos apontados por diversos entrevistados foram o trabalho assalariado, os horários de trabalho e o fato de se ter patrões, o ritmo “mais acelerado” principalmente dos turistas (ou impostos por eles ao ritmo de trabalho no ramo turístico), etc. Alguns deles referiram-se, também, ao período da pesca da lagosta. Em contraste, Cunha (2009) destacou que os pescadores artesanais (e agricultores) se orientavam por uma temporalidade distinta, por um ritmo próprio, por

tempos naturais, e trabalhavam para si próprios voltados ao núcleo familiar, além de outros aspectos que marcavam “tanto a vida laboral quanto a vida sociocultural como um todo” (p. 61). Esses apontamentos não devem ser compreendidos como uma crítica a essas mudanças, mas como uma constatação, evidenciando-se aspectos implicitamente relacionados a muitas considerações feitas no âmbito desta discussão.

Conforme exposto anteriormente, Lefebvre (2001) afirmou que as cidades divulgam uma nova racionalidade e destacou, como um aspecto, as exigências de uma previsão referente ao futuro. Mumford (1991) postulou as cidades como locais de grande concentração de energia cultural e física em que o âmbito das atividades humanas é estendido no tempo, para diante e para trás. O autor atribuiu esse fato principalmente à possibilidade de armazenagem das informações, por meio de documentos e registros escritos, por exemplo, que permitem sua reprodução e transmissão de uma cultura complexa de geração a geração. Essas características podem ser contrastadas com alguns aspectos característicos de comunidades tradicionais, como a transmissão da informação fundamentalmente pela oralidade, e a vivência voltada mais à satisfação de necessidades presentes ou “reais”, os quais foram discutidos anteriormente. Bauman (1999) afirmou sobre as comunidades tradicionais:

Os locais de encontro eram também aqueles em que se criavam as normas – de modo que se pudesse fazer justiça e distribui-la horizontalmente, assim re-unindo os interlocutores numa comunidade, definida e integrada pelos critérios comuns de avaliação (p. 33)

Em relação à sede municipal, o principal local de encontro dos nativos antigamente, o “mirante”, constantemente citado em conversas informais com estes e mencionado por alguns entrevistados como o “lugar que mais gostam” (ou gostavam), não existe mais. Foi privatizado. As normas também não parecem mais ser definidas por todos, mas conferidas aos cargos de decisão. As dificuldades em educar as novas gerações foram diversas vezes atribuídas aos mais jovens não respeitarem os mais velhos, como “era de costume”, e aos mais velhos não saberem como proceder segundo as regras sociais atualmente. Enfim, esses e outros aspectos avaliados negativamente parecem apontar para uma dificuldade de apropriação dos entrevistados em relação a seu lugar (dos espaços, da cultura, da possibilidade de modificar seu meio, etc).

De acordo com Vidal e Pol (2005), por meio das ações dos indivíduos, grupos ou coletividades sobre seu entorno, esses transformam os espaços e lhes atribuem significados pessoais e sociais, possibilitando a “interiorização” da práxis humana e a transformação de

si nesse processo, a que denominaram de apropriação dos espaços. Sendo a apropriação um conceito essencial para a discussão acerca da identidade, as dificuldades anteriormente destacadas podem ser relacionadas não somente aos mecanismos de manutenção de estados desejáveis para a estrutura de identidade de lugar, como também da identidade do lugar.

O núcleo da identidade de lugar se refere ao passado ambiental, concernente às experiências significativas do indivíduo que, no passado, serviram instrumentalmente para a satisfação de suas necessidades biológicas, psicológicas, sociais e culturais. Assim, as memórias também são incluídas no entendimento das cognições que definem a identidade de lugar (Proshansky et al, 1983). A identidade do lugar pode ser também relacionada à possibilidade de transmissão de uma cultura de geração em geração, que se dá por meio de uma memória coletiva. Bosi (2006), remetendo-se ao conceito de memória coletiva, explicou que, “De uma vibração em uníssono com as idéias de um meio passamos a ter, por elaboração nossa, certos valores que derivaram naturalmente de uma práxis coletiva” (p. 407). Ela depende da interação dos membros de um grupo, de laços de convivência, os quais se fortalecem em espaços de socialização (Bosi, 2006). Em Tibau do Sul, já não há mais o mirante do passado, onde seus moradores se reuniam para comunicar as fofocas, lembrar do passado e, quem sabe, mirar o futuro.

A apropriação compreende uma dimensão temporal e sequencial, exigindo uma confirmação contínua (reapropriação), e necessariamente implica em processos de identificação (Cavalcante & Elias, 2011). Os processos de identificação simbólica precedem e conduzem à formação da identidade, derivando-se destes o sentimento de pertencimento (Speller et al, 2002; Speller, 2005), conceito central para a definição de identidade de lugar adotada neste estudo. Segundo Cavalcante e Elias (2011), historicamente a noção sociológica de apropriação foi delineada em contraponto à noção de alienação, ou não identificação, do sujeito com sua práxis.

No âmbito desta investigação o senso de familiaridade, identificações com o ambiente (identificar, ser identificado e identificar-se com) e sentimento de pertencimento, expressos pela maioria dos participantes, pareceram apontar para um processo de apropriação ao longo das mudanças graduais na localidade. Essa apropriação pode ter sido favorecida pelos elementos de distintividade, continuidade, autoestima e autoeficácia, princípios responsáveis por guiar os processos psicológicos (de acomodação-assimilação e de avaliação) que regulam a reestruturação da identidade (Twigger-Ross et al, 2003). Desse modo, a análise dos resultados deste estudo apontou que a operação desses

processos pareceu ter contribuído no processo de reestruturação de identidade, funcionando no sentido de se definir estados desejáveis para sua estrutura.

É importante considerar que aqueles princípios guias são motivadores para a ação e, caso a capacidade de algum deles em contribuir para a manutenção da identidade satisfatoriamente seja ameaçada, várias estratégias de enfrentamento poderão ser acionadas. Elas se referem a processos cognitivos e comportamentais relacionados a qualquer atividade que objetive remover ou modificar uma possível ameaça à estrutura de identidade, nos mais diversos níveis como intrapsíquico, interpessoal ou intergrupos (Twigger-Ross et al, 2003).

Se por um lado a operação daqueles processos pareceu ter contribuído para o processo de reestruturação da identidade, como uma espécie de defesa psíquica, vale ressaltar que ela pode, no entanto, ser considerada ao mesmo tempo como dificultadora de estratégias de enfrentamento. Ainda que metodologicamente este estudo tenha se focado em indicadores psicológicos, a contextualização apresentada ressaltou outra faceta importante para a discussão dos resultados: os mesmos indicadores que apontaram para uma reestruturação da identidade, no sentido de se definir estados desejáveis para esta, mostraram-se também como dificultadores para que estratégias de enfrentamento fossem (e sejam) acionadas frente às atividades econômicas insustentáveis que se desenvolveram ao longo da história da sede municipal.

As considerações acerca da identidade-no-contexto foram feitas no sentido de se destacar que, ainda que muitos aspectos da cidade sejam positivos e essenciais à efetiva associação humana, há também muitos aspectos da comunidade que devem ser valorizados (Mumford, 1991). A valorização desses parece depender de um planejamento urbano que considere efetivamente as necessidades de todos seus habitantes, e não somente voltado ao benefício de uma minoria (Lefebvre, 2001).

que as forças políticas assumam suas responsabilidades. Neste setor que compromete o futuro da sociedade moderna e dos produtores, a ignorância e o desconhecimento acarretam responsabilidades diante da história que é reivindicada (Lefebvre, 2001, p. 107)

Ainda que estas considerações pareçam quase utópicas diante da história que se repete em tantos lugares do mundo, acredito ser necessário questionar o próprio modo de produção de nossas cidades e, nesse processo, de seus efeitos sobre nossas identidades. Em concordância às proposições de Mumford (1991, p. 619), “Antes que o homem moderno

possa controlar as forças que hoje ameaçam a sua própria existência, é necessário que retome posse de si mesmo”.

Os apontamentos feitos acerca da localidade e dos nativos da sede municipal encerram uma possibilidade de análise dessa realidade, enquanto inúmeros outros questionamentos tornam impossível o encerramento desta discussão.