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Capítulo 2. Identidade e suas relações com o lugar

2.1.3. Superando dicotomias: a pessoa-no-ambiente

Ainda que a perspectiva anteriormente apresentada supere aquela mais individualista, Hall (2006) apresenta críticas de alguns teóricos a essa noção, alegando que o dualismo cartesiano ainda se manifesta na separação de duas entidades – indivíduo e sociedade – que se conectam.

Giddens (2002) aponta como uma característica bastante distintiva da modernidade (ou da modernidade tardia, na definição de Hall), o dinamismo extremo a que estamos sujeitos. Hall (2006) discute brevemente diferentes leituras de teóricos importantes sobre a relação entre identidade e as mudanças constantes e abrangentes na sociedade contemporânea, afirmando que um fator comum entre elas é a ênfase dada às descontinuidades. Emerge então uma nova concepção de sujeito “pós-moderno” (Hall, 2006), em que diferentes identidades são assumidas em diferentes momentos, as quais não são unificadas em torno de um eu coerente, postulando uma identidade continuamente formada e transformada. “O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático” (Hall, 2006, p. 13).

Na área de Psicologia Social esses mesmos argumentos ganham força, como se pode notar nas críticas de Ciampa (1987) à concepção de identidade: “a identidade que se constitui no produto de um permanente processo de identificação aparece como um dado e não como um dar-se constante que expressa o movimento do social” (p. 68, grifos do autor). E complementa, “Identidade é movimento, é desenvolvimento do concreto. Identidade é metamorfose” (p. 74).

Jacques (1998) complementa que a identidade se constitui na relação do sujeito com seu contexto socio-histórico, definindo-o como “resultante da ação humana enquanto externalização do seu psiquismo que volta a se interiorizar transformado, num processo contínuo de articulação entre o individual e o social” (p. 163). A autora destaca o processo de apropriação (e não de adaptação ou introjeção), a ser apresentado posteriormente por meio do conceito de apropriação dos espaços, como central na constituição da identidade do sujeito, conferindo-lhe um caráter ativo e transformador nesse processo. A autora acrescenta que, para se garantir o caráter processual dessa nova concepção de identidade, faz-se necessário superar as dicotomias individual/social, estabilidade/transformação, igualdade/diferença e unicidade/totalidade.

Nesse sentido, Altman e Rogoff (1987) e Valera (1996) apontam para a necessidade de superação do caráter molecular característico da perspectiva interacional, em que pessoa e ambiente são considerados como entidades separadas que se conectam. Os autores destacam outras perspectivas, a sistêmica e a transacional, que apresentam um caráter molar, compreendendo pessoa e entorno holisticamente definidos no interior de um sistema integrado. Após fazer uma breve retomada da história da Psicologia Ambiental e apontar algumas características gerais do campo de estudos, Valera (1996) sugere a adoção de uma perspectiva transacional como base teórico-epistemológica deste.

De acordo com Valera (1996), a perspectiva transacional tem como unidade de análise a “pessoa-no-ambiente”, sendo os dois sistemas (pessoa e ambiente) compostos por aspectos indissociáveis que, conjunta e simultaneamente, se definem. Portanto, a investigação de determinado fenômeno não pode ser realizada a partir da análise das características dos sistemas em separado e das relações entre as partes, senão como sistemas que dependem um do outro para adquirirem definição e significado. Assim, interessa a essa perspectiva o estudo de análises holísticas que definam os fenômenos a partir de suas qualidades relacionais intrínsecas, levando-se em consideração aspectos psicológicos, contextuais e temporais, os quais são inseparáveis (Valera, 1996).

As mudanças, vistas por aquela perspectiva, são consideradas como inerentes aos sistemas, coexistindo mutuamente com sua estabilidade (Altman & Rogoff, 1987). Nesse sentido, os autores propõem que, para se compreender o fenômeno investigado, o estudo deve se propor a entender as transformações do sistema, utilizando como ferramenta a investigação das qualidades relacionais dos elementos em constante mutação. Valera (1996) ressalta a natureza recíproca e bidirecional das relações pessoa e ambiente, implicando que os estudos nessa perspectiva devem, tanto buscar a origem da alteração ocorrida e a direção que esta toma, a qual é emergente e não estabelecida a priori, quanto questionar o modo como uma variação em determinado nível afeta outros níveis, criando- se constantemente novas configurações pessoa-ambiente.

Para enfatizar a importância de uma compreensão holística de pessoa e entorno, Valera (1996) destaca que um dos temas ainda insuficientemente desenvolvidos no campo da Psicologia Ambiental se refere à “análise do significado espacial e sua relação com os processos de identidade” (p. 10). Essa interrelação pessoa-ambiente como unidade inseparável encontra-se implícita nas raízes deste campo de estudos desde os primeiros escritos acerca de seus pressupostos (e.g., Ittelson, Proshansky, Rivlin & Winkel, 1974).

2.2. Os lugares do lugar em sua relação com a identidade

Somos alguém em algum lugar. Ou ainda, nas palavras que ouvi um dia como sendo de autoria de Paulo Freire, “A cabeça pensa onde os pés pisam”.

O desenvolvimento das diferentes concepções de identidade foi discutido anteriormente, apontando para a compreensão do indivíduo em sua relação com grupos e estruturas sociais mais amplas (Hall, 2006). Em relação às teorias psicológicas acerca da identidade, pode-se considerar que o conceito de identidade social veio suprir algumas lacunas deixadas pelas concepções mais individualizadas do sujeito (Bonaiuto & Bonnes, 2000). No entanto, alguns teóricos apontam que, nas inúmeras produções teóricas acerca desse conceito, insuficiente atenção é dada aos aspectos físicos do ambiente e, ainda, ao papel do lugar no desenvolvimento da identidade (Mourão & Cavalcante, 2011; Twigger- Ross & Uzzell, 1996; Valera & Pol, 1994). Deste modo, primeiramente será apresentada a definição do conceito de lugar adotada para este estudo e, posteriormente, as formulações teóricas das principais teorias psicológicas acerca da relação entre identidade e lugar.