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Argumentação matemática, abdução e ensino

1. Argumentação

1.3. Argumentação matemática e sua relação com a ciência

1.3.2. Argumentação matemática, abdução e ensino

Vimos anteriormente que a argumentação matemática pode ser estudada à luz do layout de argumento de Toulmin. Além disso, destacamos a importância da abdução tanto na matemática quanto na física, como forma de construção de novos conhecimentos a partir da emissão de hipóteses. Neste tópico sistematizamos como esses saberes se transformam em uma ferramenta de análise em situações de ensino- aprendizagem.

No contexto do ensino de matemática, Inglis et. al. (2007) afirmam que a análise dos argumentos dos estudantes é um tema recorrente na pesquisa em ensino, que

25 incide sobre os seus conteúdos e as suas estruturas, sendo estas últimas o foco de análise do artigo. Especificamente eles analisam o interior dos argumentos, a partir do referencial de Toulmin, destacando o papel dos qualificadores modais, caracterizando diferentes formas de argumentação usadas pelos matemáticos.

Eles verificam que nas pesquisas em ensino de matemática, os autores costumam omitir os qualificadores modais e as refutações, chegando até a mencionar sobre um ‘padrão ternário’ de argumento. Por outro lado, autores de outras áreas usam o padrão completo, mas atribuem valores psicologicamente insignificantes aos qualificadores e refutações, quando na verdade esses elementos estão intimamente relacionados à classificação dos tipos de garantias usados na argumentação matemática. Esse papel é enfatizado ao analisar os argumentos produzidos em entrevistas por talentosos especialistas em matemática, destacando as diferenças entre os argumentos produzidos por eles e os argumentos de não especialistas usando conhecimentos matemáticos.

Nessas entrevistas, em consonância com os referenciais apresentados, os apoios e as refutações frequentemente ficam implícitos na fala dos participantes. Também é muito comum o uso de garantias não dedutivas para deduzir conclusões não absolutas, o que esclarece o papel fundamental que essas formas de argumentação desempenham na resolução de problemas. Além disso:

[...] a omissão do papel do qualificador modal em modelos de argumentos matemáticos nos obriga a considerar os argumentos apenas como conclusões absolutas, e, consequentemente, a subestimar as garantias não dedutivas em matemática avançada [...] talvez o objetivo de instrução não deva ser o traço do raciocínio indutivo ou intuitivo dos argumentos dos alunos, mas garantir que eles qualificam esses tipos de garantia de forma adequada (INGLIS et. al., 2007, p.19).

Ainda sob a referência de Toulmin no estudo da argumentação matemática, Pedemonte e Reid (2011) buscam observar os tipos de abdução que facilitam o acesso às provas dedutivas em estudantes. Eles partem da hipótese de que a abdução sobrecodificada (quando uma regra ou garantia é conhecida e usada para inferir um caso ou dado) é mais fácil na construção da prova, desde que a regra usada ou disponível seja suficiente para resolver o problema: “[...] a distância estrutural entre argumentação abdutiva e prova dedutiva é menor porque os alunos só tem que olhar para os dados para justificar a alegação; a regra e a alegação já estão presentes” (PEDEMONTE e REID , op. cit., p.286).

26 Já a forma sobcodificada é considerada mais difícil, porque que há várias regras ou garantias disponíveis para resolver o problema (inferir o dado) e caso uma regra não funcione, é necessário mudar de estratégia. A nosso ver, essa forma pode ser bastante frutífera para a introdução e discussão de características essenciais da ciência: como a aproximação de uma curva, as incertezas em uma medida etc.

Por fim, a prova que envolve uma abdução criativa é a mais difícil, pois ela compreende uma verificação cuidadosa da regra criada, e caso isso não seja feito adequadamente, pode-se levar a uma prova falsa.

Com o intuito de analisar a relação entre os diferentes tipos de abdução e as provas nas práticas dos estudantes, Pedemonte e Reid (op. cit.) usam o padrão de argumentação de Toulmin (TAP), destacando o papel dos conhecimentos básicos (B), que no caso tratam da teoria matemática. Ao olhar os processos abdutivos com esse modelo, os dados são considerados uma incógnita, que ao ser encontrada possibilita “[...] aplicar a regra de inferência que justifica a alegação” (p.287):

Figura 4: Abdução no TAP (Adaptado de Pedemonte e Reid, op. cit.)

Os autores analisam grupos de alunos tentando resolver um problema geométrico5 por meio do uso de um software, situação na qual aparecem os diferentes tipos de abdução. Os conhecimentos básicos guiam os estudantes para encontrar dados6 para aplicar os teoremas de congruência de triângulos em uma abdução sobrecodificada. A partir daí, fica fácil construir uma prova dedutiva. Em ambos os casos pode ser aplicado o TAP.

Os estudantes dessa pesquisa têm dificuldades para escolher regras que permitem obter dados para a alegação, logo, eles falham em fazer abdução

5“ABC é um triângulo. Três quadrados exteriores são construídos ao longo dos lados do triângulo. Os

pontos livres dos quadrados são conectados, definindo mais três triângulos. Compare as áreas destes triângulos com a área do triângulo ABC” (PEDEMONTE e REID, 2011, p.288).

6 Isso está de acordo com uma visão adequada da ciência, pois as hipóteses se baseiam nas teorias que o

27 sobcodificada. Posteriormente, a autoridade do professor fez com que os alunos escolhessem uma regra (envolvendo garantias e conhecimentos básicos), por meio de seu questionamento, transformando uma abdução sobcodificada em sobrecodificada, permitindo a construção de uma subsequente prova dedutiva. Depois, esses estudantes transformaram essa abdução sobrecodificada em duas provas dedutivas.

Com relação à abdução criativa, os alunos apresentam maiores dificuldades, em alguns casos, apesar de se basearem em conhecimentos básicos corretos, usam garantias falsas, resultando em uma prova falsa para o problema. Em outras situações, nesse processo, os discentes construíram corretamente uma nova regra ou garantia para justificar a alegação, baseando-se em conhecimentos básicos empíricos (rotação geométrica das figuras), porém, não puderam se guiar por sua conclusão já que não dispunham de um teorema que a fundamentasse. Assim, eles não conseguiram usar a nova regra na sua prova.

Em outra circunstância, em que os estudantes tinham um problema algébrico, Pedemonte e Reid (op. cit.) mostram que os mesmos partiram de um caso específico para uma regra geral. Isso poderia ser considerado como um processo indutivo, se o caso fosse apoiado por múltiplas instâncias de objetos do mesmo tipo, porém, como o raciocínio baseou-se em apenas um exemplo para chegar a uma regra geral, tem-se uma abdução criativa. Além disso, essa regra foi tratada como teorema pelo estudante, uma vez que ele a usou para resolver outros problemas.

Resumindo, Pedemonte e Reid (2011) mostram que existe grande dificuldade na abdução sobcodificada, principalmente quando ela envolve selecionar conhecimentos básicos diferentes para cada garantia, e também que existem dois tipos de abdução sobcodificada: uma em que há várias regras conhecidas apoiadas em uma teoria e outra mais difícil de ocorrer, em que há várias regras apoiadas em teorias diferentes. A nosso ver, esses níveis de abdução sobcodificada são respectivamente similares aos níveis 4 e 5 descritos por Silva (2007).

No caso da abdução criativa, a dificuldade é ainda maior, visto que não há regras para serem selecionadas (não se conhecem as garantias e conhecimentos básicos) – é necessário criá-las. Dessa forma, há duas dificuldades cognitivas durante o processo de abdução: a primeira é relativa ao próprio processo e a segunda é a de transformar a abdução em uma prova. Ainda no processo criativo, é necessário que a regra criada seja provada ou justificada na argumentação para que os estudantes a reconheçam como teorema, usando-a em sua prova.

28 Por fim, os autores mostraram que alguns tipos de abdução facilitam o processo de prova e outros dificultam e que o processo de resolução de problemas antes da prova pode promover o desenvolvimento de abduções, se houver a devida orientação do professor. E ainda, eles elaboram representações dessas escalas abdutivas a partir do padrão de Toulmin, as quais sistematizamos na figura a seguir:

Figura 5: Níveis de abdução (adaptado de PEDEMONTE e REID, 2011).

Nossa hipótese é que essas hierarquias da abdução (tanto aquelas apresentadas por Silva, 2007, quanto essas destacadas por Pedemonte e Reid (op. cit.) podem ser usadas como parte de uma ferramenta de análise de situações de ensino e aprendizagem tanto em aulas de matemática quanto de física, já que esses processos também são observados na física – tal como foi destacado no tópico anterior, ao analisar os exemplos de Kepler e De Broglie.

O quadro da figura 5 é bastante explicativo em relação ao uso da abdução nas diferentes situações. É possível inclusive avaliar o domínio de conhecimentos dos estudantes. Por exemplo, quando há uma abdução sobrecodificada, há um domínio relativo de uma regra ou garantia para inferir um dado que leva à conclusão (o que já é interessante dependendo dos saberes que o contexto exige). Por outro lado, as abduções sobcodificada (níveis 1 e 2) e criativa denotam um domínio de vários conteúdos, no

29 primeiro caso inferindo os dados a partir de várias garantias que sustentam a conclusão e no segundo caso criando uma nova garantia que gera os dados para a conclusão, o que significa que o aluno deve olhar criticamente para os conteúdos que ele domina.

Destacamos também o papel dos qualificadores e refutadores no processo de abdução e argumentação matemática, pois eles apontam para características importantes da ciência, como as aproximações, modelizações e limites de aplicação/validade. Assim, o uso desses elementos do argumento denotam uma compreensão implícita da natureza da ciência como uma tentativa de explicar a natureza, ao contrário da visão distorcida como uma verdade exata e final destacada por autores como Gil-Perez et. al. (2001). Sendo assim, é importante observar o uso de qualificadores modais e refutadores que indicam a precisão das alegações, tais como: presumivelmente, a menos que, provavelmente, possivelmente, por outro lado etc.

Destacamos no próximo tópico alguns resultados da pesquisa em ensino de ciências sobre argumentação, que complementam os estudos apresentados anteriormente e que podem auxiliar na construção de um instrumento para interpretar uma situação de ensino-aprendizagem, que auxilie a responder nossas questões iniciais sobre o papel da matemática na construção dos argumentos científicos dos estudantes.

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