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Argumentos contra a leitura standard

3. todos os estados mentais estão “no interior” da res cogitans, implicando que (c)

1.2. A consciência sartreana implica autoconsciência?

1.2.2. Argumentos contra a leitura standard

A leitura standard frequentemente se apóia em variações de uma passagem que do final da parte 1A de TE e que é repetida na introdução de SN, na qual Sartre parece fornecer evidência inequívoca a seu favor. Trata-se da passagem na qual ele afirma que “o tipo de existência da consciência é ser consciente de si”151. Navas articula três argumentos para defender que, a despeito do que uma leitura inicial dessa passagem e de suas variações possa sugerir, a interpretação standard é textualmente problemática. O primeiro deles é o de que a leitura standard implica que o objetivo de Sartre em TE é, na pior das hipóteses, ininteligível e, na melhor delas, trivial. O segundo é o de que há outras passagens no ensaio nas quais ele

150 THODY, Philip. Sartre: Uma Introdução Biográfica. Trad. P. Perdigão e A. Mayall. Rio de Janeiro: Bloch, 1974, p. 76.

parece rejeitar explicitamente a tese que a leitura standard lhe atribui. E o terceiro é o de que embora haja afirmações no texto de Sartre que a primeira vista parecem fornecer evidência conclusiva em favor da leitura standard, tal como a passagem supramencionada, a interpretação que é requerida de modo a que tais afirmações de fato sirvam como evidência em favor dessa leitura é excluída por outras afirmações que o filósofo faz no contexto em que elas ocorrem. Os dois primeiros argumentos serão abordados nesse tópico e o terceiro, por ser mais complexo, será tratado no tópico seguinte. Além desses três argumentos, Navas avança uma leitura positiva das passagens em questão no argumento três, uma leitura que justifique a motivação de Sartre para fazê-las, e tenta mostrar que, se corretamente entendidas, elas não dão suporte à leitura standard. Esta leitura alternativa será abordada no tópico subsequente.

a. “A Transcendência do Ego” – o objetivo do ensaio

No primeiro parágrafo de TE Sartre enuncia seu objetivo no artigo:

Para a maioria dos filósofos o Ego é um “habitante” da consciência. Alguns afirmam sua presença formal no seio das “Erlebnisse”, como um princípio vazio de unificação. Outros – na maioria psicólogos – pensam descobrir sua presença material, como centro dos desejos e dos atos, em cada momento de nossa vida psíquica. Nós gostaríamos de mostrar aqui que o Ego não está nem formalmente nem materialmente na consciência: ele está fora, no mundo; é um ser do mundo, como o Ego do outro.152

Dito de outro modo, o que Sartre pretende defender no artigo é que aquilo a que se costuma chamar de Ego ou de Eu não é um princípio organizador e unificador dos conteúdos da experiência, e sim um fruto da organização e unificação desses conteúdos. O Ego não é o criador da unidade, mas, antes, seu produto (porquanto ele não está “dentro” da consciência, atuando sobre as experiências como um ímã, e sim fora, no mundo, resultando das experiências). A ideia de que o Ego não está dentro da consciência é integralmente mantida em SN, e reiterada por Sartre no capítulo intitulado “O Eu e o circuito da Ipseidade”153. Mas o que exatamente significa dizer que o Ego não está “dentro” da consciência? Em uma nota de rodapé no texto, Sartre explica que ele usa “consciência” no sentido triplo de totalidade da consciência, de mônada, e de cada um dos momentos singulares da consciência (ou, simplesmente, episódios)154. Desses três sentidos de “consciência”, o que está primordialmente em jogo na passagem em que o filósofo define o objetivo do ensaio é o terceiro, a consciência entendida como episódios conscientes (que isso é o caso é atestado pelo fato de que os argumentos mobilizados por Sartre para defender que Ego está fora da consciência são apresentados na forma de respostas à pergunta sobre se o “eu penso” de fato acompanha todas as nossas representações155. Ao endereçar essa questão, Sartre está endereçando a questão sobre se o Ego de fato está presente, de uma forma ou de outra, em todos os

152 TE, p. 13.

153 SN, parte II, cap. V. 154 TE, p. 16.

nossos eventos mentais). Desse modo, o objetivo de Sartre de mostrar que o Ego está fora da consciência equivale ao intento de mostrar que o Ego não é parte de todos os nossos pensamentos ou episódios conscientes; mostrar que há episódios conscientes sem Ego. E, na medida em que a noção sartreana de Ego é a noção de self como agente de ações e portador de estados e qualidades156, a ideia de que o Ego não é parte de todos os nossos episódios conscientes resulta em que nem todos os nossos episódios conscientes são episódios em que temos consciência de nós mesmos como tal, i.e., nem todos os nossos episódios conscientes são autoconscientes. Contrariamente ao que a leitura standard sugere, portanto, o objetivo de Sartre no ensaio é defender uma afirmação que tem como implicação imediata a ideia de que consciência não requer autoconsciência, de que episódios conscientes não-autoconscientes são possíveis (i.e.: de que nós não somos nem como Narcissus nem como Tinnitus). Com efeito, os exemplos dados por Sartre para ilustrar a ideia sugerem que há certas atividades conscientes (as atividades ditas irrefletidas, viz., aquelas que realizamos sem pensar), nas quais um Ego não está envolvido: “Não há eu no plano irrefletido. Quando eu corro para pegar um ônibus, quando eu olho as horas, quando me absorvo contemplando um retrato, ali não há um Eu. O que há é a consciência do ônibus-que-eu-devo-pegar [no original: “conscience du tramway-devant-être-rejoint”], etc, e consciência não posicional da consciência. (…) Não há lugar para mim neste nível, e isto não é fruto do acaso, de uma falha momentânea de atenção, mas da estrutura mesma da consciência”157

. Em face desse argumento, um adepto da leitura standard poderia protestar dizendo que afirmar que o Ego não está presente num determinado episódio consciente não é o mesmo que afirmar que tal episódio careça de autoconsciência

em absoluto, isto é, ele poderia argumentar que quando Sartre fala que há

atividades conscientes sem Ego, o que ele está dizendo é que a nessas atividades a consciência não possui formas elevadas de autoconsciência intrínsecas, mas possui formas mínimas. Ou seja, para esse objetor, a visão de Sartre seria a de que a consciência possui necessariamente uma forma mínima de autoconsciência intrínseca, embora não possua formas elevadas, e o que ele anuncia no parágrafo de abertura do artigo como sendo seu objetivo seria a defesa da segunda parte dessa asserção, i.e., que a consciência prescinde de formas elevadas de autoconsciência. Assim, a posição do objetor seria a de que a meta anunciada por Sartre no parágrafo de abertura de TE é a de mostrar que nossa vida mental não é como a de Narcissus, mas é como a de Tinnitus158.

Embora este movimento contra-argumentativo de fato esteja disponível para o partidário da leitura standard, ele não lhe traz grandes avanços, porque é problemático no seguinte sentido: ninguém realmente acha que nossa vida mental é como a de Narcissus (ao menos nenhum dos interlocutores de Sartre oficialmente defendeu isso, nem mesmo os “neokantistas, empírio-criticistas e intelectualistas”, os quais Sartre afirma que “têm uma tendência a querer realizar as condições de 156 “O Ego, sob a dupla forma gramatical do Eu e o Mim, representa a nossa pessoa, enquanto unidade psíquica transcendente. (…) É enquanto Ego que somos sujeitos de fato e de direito, ativos e passivos, agentes voluntários, possíveis objetos de um juízo de valor ou responsabilidade. (…). As qualidades do Ego representam o conjunto das virtualidades, latências, potências que constituem nosso caráter e nossos hábitos. (…)” (SN, p. 221).

157 TE, p. 29, grifos originais, intervenção entre colchetes acrescentada.

possibilidade determinadas por Kant”159

). A visão de que nem todo estado consciente envolve formas elevadas de autoconsciência é incontroversa, e isso faz com que a estratégia do leitor standard torne o objetivo de Sartre em TE completamente trivial. Se Sartre de fato estivesse se propondo a mostrar que nossa vida mental não é como a de Narcissus, ele estaria se lançando numa tarefa na melhor das hipóteses supérflua.

b. Consciências impessoais são possíveis

Como já mencionado, na primeira parte de TE Sartre argumenta que o Ego está “fora da consciência”, e faz isso levantando e endereçando a questão sobre se o “eu penso” de fato acompanha todas as nossas representações. Ao final da sessão 1A do ensaio, ele conclui que o “eu penso” não acompanha todas as nossas representações160. As implicações disto (viz., do fato de o “eu penso” não estar presente em todos os nossos episódios conscientes), enumeradas pelo próprio filósofo, são as seguintes:

1) que o campo transcendental torna-se impessoal, ou, se preferirmos, “prépessoal”; ele é sem Eu;

2) que o Eu aparece somente no nível da humanidade, e não é mais que uma face do Moi [mim], a face ativa;

3) que o Eu Penso pode acompanhar todas as nossas representações porque ele vem à tona sobre um fundo de unidade que não contribuiu para criar e que, ao contrário, é esta unidade anterior que o torna possível;

4) que é lícito perguntar-se se a personalidade (mesmo a personalidade abstrata de um Eu) é um acompanhamento necessário de uma consciência e se não se podem conceber uma consciências absolutamente impessoais.161

Navas enxerga nessa lista de implicações subsídios contra a leitura standard. Como vimos, a leitura standard, ao atribuir a Sartre a versão forte da tese de que consciência implica autoconsciência, exclui a possibilidade de existência de criaturas como Marie Antoinette, que são capazes de estados conscientes desprovidos de autoconsciência, e Trump, que carece de todas as formas de autoconsciência e que, consequentemente, tem apenas uma forma de consciência puramente impessoal. No entanto, quando Sartre escreve sobre consciência como um campo impessoal ou pré-pessoal, quando ele diz que ela é “sem Eu” (“Egoless”), quando afirma que é legítimo perguntar se não seria possível considerar uma consciência inteiramente impessoal, ele está admitindo ao menos em princípio que a consciência não necessariamente envolve autoconsciência no sentido de todo estado consciente ser

159 TE, p. 16.

160 “Portanto, podemos responder sem hesitar: a concepção fenomenológica da consciência torna o papel unificante e individualizante do Eu totalmente inútil. É a consciência, ao contrário, que torna possível a unidade e a personalidade do meu Eu. O Eu transcendental [i.e.: o Eu que está “por detrás de toda consciência, que seria una estrutura necessária da consciência”], portanto, não tem razão de ser” (TE, p. 22, intervenção entre colchetes acrescentada).

161 TE, pp. 19-20. Essas implicações, enumeradas de 1 a 4, “constituem o fundo da tese que Sartre irá defender em oposição aos últimos trabalhos de Husserl”, como observa Sylvie Le Bon em nota de rodapé na edição original francesa.

necessariamente um estado autoconsciente. Para Navas ele está de fato fazendo a afirmação, mais robusta, de que nada na natureza mesma da consciência exclui a possibilidade de que existam criaturas como Trump e que, uma vez tais criaturas sendo concebíveis, autoconsciência (mesmo na sua forma mínima) não pode ser um atributo necessário da consciência. A hipótese de Navas é apoiada pela conclusão de TE, onde o filósofo afirma literalmente que a consciência é impessoal162.

É claro que essas passagens não estabelecem de maneira conclusiva a inadequação da leitura standard; elas apenas instanciam que, assim como há passagens que corroboram a leitura standard, há também as que a desabonam, de modo que tal leitura não está garantida pela totalidade do texto do filósofo, como K. Wider, por exemplo, parece assumir.