• Nenhum resultado encontrado

P.1) A consciência requer autoconsciência, i.e., a autoconsciência é inerente à

2. O “COGITO PRÉ-REFLEXIVO”: DUAS LEITURAS

2.3. Consciência não-tética como familiaridade direta

2.3.3. Familiaridade e Má-fé

Como vimos na sessão 2.2, a noção sartreana de má-fé, por se tratar de uma forma de auto-engano, envolve dois paradoxos: o auto-enganador precisa estar consciente e não estar consciente da verdade a ser ocultada, bem como precisa estar consciente e não estar consciente da sua intenção de ocultá-la. Uma das tentativas de resolver estes paradoxos é dizer que na má-fé o indivíduo não tem- consciência tética da verdade a ser ocultada nem da intenção de ocultar, mas apenas consciência não-tética. A caracterização que Webber dá para a noção sartreana de consciência não-tética pretende tornar isso possível: se a consciência não-tética for equivalente à noção de conteúdo representacional não-conceitual correntemente discutida em filosofia da mente na tradição angloamericana, e se tomarmos como sendo a característica distintiva desse tipo de conteúdo o fato de ele não manter relações inferenciais com outros conteúdos, o indivíduo não- teticamente consciente da verdade a ser ocultada e da intenção de ocultar pode empreender a atitude de auto-engano sem que a contradição lhe seja óbvia, i.e., pode acreditar na mentira sem que ela entre em conflito com a verdade, sem se dar conta de que ele próprio sabe a verdade e a oculta de si.

Com efeito, a resolução que Webber oferece para os paradoxos da má-fé só funciona se a consciência não-tética da verdade a ser ocultada e da intenção de ocultar tiver, enquanto analisada “em terceira pessoa”, uma estrutura proposicional – ela deve especificar um estado de coisas possível e passível de ser expresso através de proposições (consistindo disso o seu caráter representacional). O que ela não deve poder fazer é ser inferida a partir de outras proposições ou servir de base para que outras proposições sejam inferidas pelo próprio sujeito (ou seja, de uma perspectiva primeir0-pessoal). Mas para que a explicação de Webber faça sentido, tanto aquilo que há para ser ocultado quanto a intenção de ocultar devem possuir propriedades, entre as quais o valor de verdade; e, para tanto, elas precisam necessariamente ter uma estrutura proposicional (viz.: devem poder ser verdadeiras ou falsas, para que a consciência tética dos conteúdos em questão tenha o valor de verdade oposto). Assim, numa situação de má-fé, se um sujeito tem, por exemplo, consciência não-tética de X onde X é uma proposição que especifica um estado de coisas verídico, ele deve ter consciência tética de ¬X, que será uma proposição não- verídica, a fim de que a má-fé possa ter êxito, pois assim esse sujeito terá e não terá consciência de X ao mesmo tempo. Parece que a normatividade está “entrando pela porta dos fundos”, i.e., entrando onde não deveria entrar (se a característica da consciência não-tética, sendo ela equivalente a um conteúdo não-conceitual, deveria ser justamente a ausência do papel normativo).

Além dessa dificuldade, a maneira de Webber de considerar o fenômeno da má-fé esbarra em três problemas. O primeiro deles é que a estratégia de equalizar a consciência não-tética tal como entendida por ele (i.e.: como singularização de um objeto sem qualificação) e conteúdo representacional não-conceitual parece não

funcionar. Na minha apreensão não-tética de um objeto tal como entendida por Webber eu apenas distinguo o objeto como “isto”. Mas mesmo ao distinguir o objeto como “isto”, eu ainda assim estou aplicando uma capacidade conceitual – afinal, ISTO é um conceito. De fato é uma noção mais fraca de conceito, ou um conceito mais rudimentar, suficiente apenas para distinguir o objeto do restante do entorno, ou para notar que sua presença constitui um estado de coisas diferente da sua ausência. Mas ainda assim, se eu distingo o objeto do entorno, se sou capaz de distinguir sua presença de sua ausência, parece que há uma capacidade conceitual sendo aplicada e, com isso, a menos que a noção de “conceito” defendida por Webber seja muito estreita e refinada (e exclua por exemplo conceitos demonstrativos), a consciência não-tética não pode ser sinônimo da apreensão de coisas ou estados de coisas sem aplicação de conceitos.

O segundo problema com a leitura de Webber é que ao propor uma explicação para a má-fé utilizando proposições que expressam estados mentais ou conteúdos representacionais aos quais supostamente o próprio sujeito não tem acesso, Webber acaba resvalando no mesmo tipo de dificuldade que acomete aqueles que tentam dar conta de estados representacionais de criaturas não- linguísticas ou pré-linguísticas utilizando conceitos que essas criaturas não possuem. Dito de outro modo, um conteúdo supostamente não-conceitual só pode ser considerado como possuindo uma estrutura proposicional a título de artifício explicativo para uma explicação inteiramente terceiro-pessoal (já que os conceitos que constituem a proposição que expressa aquele conteúdo não estão em operação na própria experiência do sujeito). Como destacado por Bermúdez e Cahen, existem diferentes maneiras de caracterizar objetos, propriedades e relações, mas nem todas são adequadas, porque nem todas servem para especificar o conteúdo da atitude relevante – algumas caracterizações fracassam em capturar a maneira como o próprio sujeito 'pensa' sobre a coisa ou estado de coisa em questão295. O exemplo dado por Bermúdez é o seguinte: “Seria incorreto, por exemplo, caracterizar o conteúdo da minha crença atual de que meu carro está estacionado na garagem usando os conceitos de física de partículas para descrever o estado de coisas que o tornaria verdade. Isso seria incorreto porque fracassaria em capturar como eu penso sobre o estado dos coisas do meu carro estando na garagem”296

. Ainda que o sujeito (digamos, Bermúdez) possua os conceitos da física de partículas necessários para uma tal especificação (suponhamos que ele possua), a caracterização será incorreta se não for assim que ele pensa sobre a situação em questão, ou seja, se aqueles conceitos não estiverem participando da maneira como ele concebe a situação. Em face disto, há uma pergunta básica que toda teoria precisa se fazer antes de mais nada, que é a pergunta sobre “quais restrições são impostas às especificações do conteúdo das atitudes proposicionais pela exigência de respeitar a maneira como o sujeito pensa sobre a condição de verdade da atitude relevante”297

. No caso do auto- engano, essa pergunta parece impor uma barreira a explicações que apelem para conteúdo não-conceitual, devido à própria exigência de que o sujeito saiba e não

saiba aquilo que pretende ocultar, bem como a pretensão de fazê-lo – se aquilo que

corresponde ao que o sujeito não sabe é não-sabido justamente em virtude de ser

295 Bermúdez e Cahen, op. cit., §2. 296 Ibid., §2.

de caráter não-conceitual, não poderia, a priori, ser expresso em termos de conteúdo proposicional.

E o terceiro problema com a proposta de Webber – que de certa forma é um desdobramento do segundo – é o seguinte: nós não precisamos realmente de uma teoria sobre como a má-fé é possível a título de artifício explicativo em terceira pessoa. Observada em terceira pessoa, a má-fé não se apresenta como problemática, porque o observador em terceira pessoa pode perfeitamente assumir que não há crenças em conflito, nem paradoxo: no caso da jovem coquette, por exemplo – ou bem estamos diante de um caso de engano ordinário, ou bem estamos diante de um caso de mentira cínica298. A menos que o observador em terceira pessoa tenha acesso a certas informações “privilegiadas” sobre a situação do indivíduo – como aquelas que temos a respeito da jovem coquette, por exemplo (nós sabemos que a jovem sabe que seu pretendente tem interesse sexual, mas só sabemos disso porque Sartre nos advertiu no começo do relato. Ou seja, essa é uma informação privilegiada, no sentido de que se ela não nos tivesse sido dada, não teríamos como obter por nós mesmos, a partir de uma perspectiva concreta em terceira pessoa, ainda que isso envolvesse interagir com a própria jovem, já que ela precisamente parece não saber que sabe) – ele, o observador em terceira-pessoa, não está em posição de dizer que se trata de má-fé, em primeiro lugar. Ou seja, o que tipifica o caso da jovem coquette como um caso de má-fé é o fato (entregue ao leitor a título de informação privilegiada) de que ela sabe que o pretendente tem interesse sexual. Se esse fato for completamente desconhecido para nós, o caso passa facilmente como um caso de engano ordinário (onde o pretendente tem interesse sexual, mas a jovem o toma como não tendo) ou como um caso de mentira cínica (onde o pretendente tem interesse sexual, mas o dissimula cinicamente para ludibriar a jovem, fingindo ter interesses puramente intelectuais). O ponto é que o problema da má-fé só se revelou como um problema porque foi descrito por Sartre não de uma perspectiva inteiramente terceiro-pessoal, e sim a partir de uma perspectiva mais abrangente que inclui detalhes, sobre a cena, que envolvem levar em conta a maneira como o próprio sujeito “sente” (qua vive) a situação. Dito de outro modo: o problema da má-fé só é realmente um problema se equacionado com a inclusão de certas variáveis que só podem ser extraídas da situação a partir de uma perspectiva primeiro-pessoal, e que a abordagem de Webber parece excluir, porque nos equipa com uma versão que o próprio sujeito dificilmente poderia endossar. “Essa explicação é inadequada porque não é assim que eu vejo a situação e não assim que eu me vejo”, a jovem poderia intervir, protestando. Com efeito, o próprio Webber reconhece que, se suas considerações estiverem corretas, a visão de Sartre é muito menos diferente da visão de Freud do que o próprio Sartre gostaria de admitir299, o que, dito de outro modo, significa que o suposto “auto- engano” do qual a má-fé inicialmente consistia na prática é reduzido a uma forma ordinária de engano: há um certo conteúdo, na mente do sujeito, que é obscuro para

298 Há ainda uma terceira possibilidade, que seria pensar que estamos diante de um caso irracionalidade prática clássico, concebido como fraqueza de vontade. Mas a mesmo a fraqueza de vontade, se considerada puramente a partir de uma perspectiva terceiro-pessoal, não necessariamente precisa ser envolver crença ou conflito entre crenças. O indivíduo pode simplesmente ter dois interesses, ou desejos, onde um se sobrepõe ao outro e é priorizado por ser mais forte ou mais imediato, por exemplo.

o próprio sujeito, e que determina sua ação. É esse “conteúdo”, no final das contas, o responsável pelo engano.

Williford consegue escapar a esses problemas? É o que resta avaliar. Ele não se detém demoradamente no problema da má-fé no artigo do qual viemos tratando. Em seus itens finais, no entanto, o autor parece tomar um caminho que envolve considerar que a má-fé é um comportamento paradoxal ou ambíguo fruto da manutenção de crenças contrárias, mas que a manutenção de crenças contrárias não é capaz, por si mesma, de caracterizar um conflito para o indivíduo. Isto é, Williford propõe aceitarmos que é possível manter crenças contrárias sem contradição; que não há nada na natureza da crença que impeça crenças com conteúdo contrário de coexistirem. (Isso parece explicar a característica “natural” das condutas de má-fé, quer dizer, parece explicar porquê entra-se em má-fé com tanta naturalidade, e porquê é tão difícil sair de uma conduta de má-fé uma vez tendo-a adotado300.) No limite, isso significa comprometer-se com a tese de que a economia mental dos seres humanos tal como concebidos por Sartre, no que diz respeito à crença, não obedece constrangimentos da racionalidade, tais como a lei de não- contradição, por exemplo; tornando possível para um ser humano, ao menos em princípio, acreditar ao mesmo tempo numa coisa e no seu oposto, de modo a que isso se manifeste na ação (gerando comportamentos que são vistos como paradoxais ou ambíguos – os comportamentos de má-fé). É nas imediações deste caminho que Williford parece caminhar para abordar o fenômeno sartreano da má- fé: ao crer no que quer que seja a consciência é familiarizada com o fato de que aquilo é um ato de crença (i.e.: tem uma compreensão direta e pré-judicativa de que se trata de crença, e não de outro tipo de atitude), mas não está familiarizada com o fato de que o conteúdo de uma crença contraria o conteúdo de outra, de modo que se houver evidências em favor de uma dessas crenças, i.e., se houver razões para mantê-la, haverá razões para abandonar a crença de conteúdo contrário. No nível pré-reflexivo as evidências e razões não são consideradas, pois considerá-las é justamente o que é refletir; então “somente mediante a reflexão é que toda a crença se torna 'problemática'”301

. É a reflexão que inaugura a “dissonância cognitiva” e torna explícito para o indivíduo que seus comportamentos são paradoxais ou ambíguos. Antes da reflexão, tais comportamentos não são tomados pelo indivíduo como tal.

Essa explicação parece viável, e parece capaz de contornar os problemas que se interpuseram para Webber – não há conteúdo não-conceitual envolvido e não estamos adotando uma perspectiva inteiramente terceiro pessoal para explicar o comportamento aparentemente paradoxal ou ambíguo de um indivíduo, porque estamos admitindo que até que o próprio indivíduo reflita sobre suas atitudes, não há nada a ser explicado: do seu próprio ponto de vista, ele não está em má-fé; e nós, observando de fora, não sabemos se suas condutas destoam ou não de suas crenças. Essa explicação, no entanto, ainda pressupõe que o problema está no nível do conteúdo das crenças (que é trazido à tona mediante a reflexão, quando é revelado conflitante) e, nesse sentido, ainda é uma explicação bastante

300 Diz Sartre: “Fazemo-nos de má-fé como quem adormece e somos de má-fé como quem sonha. Uma vez realizado esse modo de ser, é tão difícil sair dele como alguém despertar a si próprio (…)” (SN, p. 116).

301 Williford usa o termo “troubled”, que também pode ser traduzido como “perturbado”. Cf. Williford, op. cit., p. 84.

intelectualista para o fenômeno em causa. Mas, na realidade, Williford não precisa

dessa explicação. Partindo da sua intuição sobre o que é, para um indivíduo, estar

não-teticamente consciente de si mesmo nos atos irrefletidos, podemos avançar uma interpretação alternativa para o fenômeno sartreano da má-fé em bases willifordianas, sem precisar localizar o conflito no âmbito do conteúdo das crenças.

A má-fé é um fenômeno da fé, i.e., da crença. Sartre diz: “o verdadeiro problema da má-fé decorre, evidentemente, do fato de que a má-fé é fé. (…) a má-fé é crença, e o problema essencial da má-fé é um problema de crença”302

. Crença, como vimos, é para Sartre um modo de consciência; é uma das diversas atitudes (intencionais) possíveis de serem adotadas frente ao objeto. Ocorre que a “fenomenologia” da crença, tal como feita por Sartre, revela que se trata de uma atitude que é por si mesma paradoxal. O caráter paradoxal da crença não depende do objeto, quer dizer, não depende de o conteúdo que é “acreditado” ser inconsistente – é a estrutura da própria atitude de crer que é paradoxal. Segundo a linha interpretativa de Williford, o sujeito que se encontra numa atitude de crença, estando familiarizado com a estrutura da própria atitude, “saberá” que se trata de uma atitude paradoxal/ambígua em relação a certo conteúdo, e isso basta para que ele “saiba e não saiba” (“creia e não creia”) o fato desagradável e a intenção de ocultá-lo.

Como e em que sentido a atitude de crer pode ser uma atitude paradoxal? A má-fé, diz Sartre,

não conserva as normas e critérios da verdade tal como aceitos pelo pensamento crítico de boa-fé. De fato o que ela decide inicialmente é a natureza da verdade. (…) Em consequência, surge um tipo singular de evidência: a evidência não-persuasiva. A má-fé apreende evidências mas está de antemão resignada a não ser preenchida por elas, não ser persuadida (…). Assim a má-fé, em seu projeto primitivo, desde sua aparição, decide sobre a natureza exata de suas exigências, delineia-se inteira na resolução de não pedir demais, dá- se por satisfeita quando mal-persuadida, força por decisão suas adesões a verdades incertas.303

O que Sartre está dizendo é que a má-fé é uma certa maneira 'desleixada' de conceber a verdade – o indivíduo em má-fé se predispõe de saída a tomar como verdade certos fatos para os quais não há evidência justificacional suficiente, e mesmo fatos para os quais há evidências em contrário. Ele se dá uma desculpa para adotar esse comportamento: convence-se de que não há tal coisa como uma “evidência justificacional suficiente”, de que isso é uma espécie de ficção, isto é, de que nunca haverá evidência que baste para justificar a tomada de algo como verdadeiro, e que, portanto, tomar algo como verdadeiro não requer estar de posse de evidências: pode-se simplesmente crer, isto é, aceitar, tal como se aceitam autoridades.

A ideia de crença possui certa “plasticidade”, quer dizer, ela é utilizada para descrever coisas bastante diversas. Por exemplo, utilizamos a palavra “crença” tanto 302 SN, p. 115.

para expressar estados de convicção absoluta e inquebrantável (como quando um religioso convicto afirma “meu Deus, eu creio em ti”304

) quanto para expressar estados de incerteza e indeterminação (“Pedro é meu amigo? Não sei: creio que sim”305). O que há em comum entre os diversos casos que recaem sob o rótulo “crença”, independentemente do grau de convicção envolvido, é o ato de tomar um fato incerto e objetivamente indeterminado como uma verdade certa e objetiva. Toda crença é o ato de tratar como verdade aquilo que na realidade é hipótese. Nesse sentido, o próprio ato de crer (independentemente do conteúdo, ou seja, independentemente do objeto da crença) é de certa forma parte desonesto, parte enganoso, já que envolve um tratamento inadequado de fatos hipotéticos ou subjetivos. Para ser de má-fé, uma crença não precisa ter um conteúdo inconsistente – basta que ela seja reconhecida pelo indivíduo como uma crença, pura e simplesmente. E, para Sartre, crença sempre é reconhecida pelo indivíduo como tal, ainda que implicitamente – ela faz parte (junto com desejos, dores, prazeres, vergonhas, dentre outros) de uma classe de atitudes, ou eventos, que só existem na medida em que deles temos consciência306. Assim, faz parte da natureza da crença, bem como dessas outras atitudes ou eventos, “saber” que os temos (saber entre aspas porque não se trata de um saber intelectual ou inferencial, e sim de consciência não-tética307). Esse tratamento inadequado (i.e.: esse ato de tomar hipóteses ou fatos subjetivos como verdades objetivas, que constitui a própria crença), portanto, não é inconsciente, mas também “não se trata de uma decisão reflexiva e voluntária, e sim de uma determinação espontânea de nosso ser”308

. Ou seja, é algo como um escorregão. Quando temos uma crença, na justa medida em que “sabemos” que aquilo que temos é uma crença, e não uma verdade objetiva com garantias e provas, “sabemos” concomitantemente que se trata de mera crença, ou seja, “sabemos” que não há nenhum constrangimento real que nos force a tratar aquilo como verdade, o que equivale a “saber” que poderíamos perfeitamente não acreditar, e mesmo que não há nenhum motivo razoável para preferir acreditar, um que torne acreditar melhor do que não acreditar. É nesse sentido que Sartre diz que “crer é saber que se crê, e saber que se crê é já não mais crer”309 – crer envolve reconhecer que estamos tomando como verdade algo que nós simplesmente não sabemos se é verdade. Independentemente do conteúdo (ou objeto) da crença e do grau de convicção envolvido, o indivíduo que crê “sabe” que o que ele possui é crença, e não, verdade objetiva com garantias e provas, ou seja, conhecimento. Isso é o que há de comum a toda crença. No caso das crenças de má-fé, em particular,

304 SN, p. 117. 305 SN, p. 117.

306 Por exemplo, acerca do prazer: “o prazer não pode distinguir-se – sequer logicamente da consciência do prazer. A consciência (de) prazer é constitutiva do prazer, como sendo o modo mesmo de sua existência, matéria de que é feito, e não uma forma que se impusesse posteriormente a uma matéria hedonista. O prazer não pode existir 'antes' da consciência de prazer – sequer em forma de virtualidade, potência.” (SN, p. 26); acerca da própria crença: “a consciência (de) crença é crença, e a crença é consciência (de) crença.” (SN, p. 124); “Como vimos, nem a crença, nem o prazer, nem a alegria podem existir antes de ser conscientes, a consciência é a medida do seu ser (...)” (SN, p. 124).

307 SN, p. 117. Trata-se de “consciência não-tética (de) crer” (SN, p. 117); “A consciência não tética não é saber, mas, por sua própria translucidez, acha-se na origem de todo o saber” (SN, p. 117). 308 SN, p. 116.

há uma segunda “camada” de embuste, que é recusar-se a aceitar (ou seja, é negar) que crença é mera crença; e insistir em levá-la a sério como se se tratasse de um