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P.1) A consciência requer autoconsciência, i.e., a autoconsciência é inerente à

3. DESAFIOS TEÓRICOS E EMPÍRICOS

3.4. Considerações Finais

Em face do que discutimos ao longo desse capítulo, estamos em condições de considerar que a posição de K. Wider a respeito dos casos teóricos e empíricos apresentados (e da suposta incompatibilidade entre as teses gerais de Sartre e uma explicação adequada para esses casos) constitui um falso dilema. Como acreditamos ter mostrado, as razões de Wider para concluir que tais casos não podem ser explicados em termos sartreanos são em larga medida baseadas em mal-entendidos interpretativos com respeito a noções fundamentais do filósofo, como a de consciência pré-reflexiva e a de ação livre.

Desse modo, o caso dos pacientes com visão cega pode ser adequadamente explicado em termos sartreanos segundo o curso explicativo que Wider chamou de “3”, ou seja, um caso de processamento não consciente de informações (i.e., como não envolvendo experiência, como não sendo um caso de percepção, tal como percepção é entendida por Sartre). O caso do motorista de caminhão de Armstrong, por sua vez, pode ser adequadamente explicado em termos sartreanos segundo o curso explicativo que Wider chamou de “1” (embora o curso explicativo “3” também esteja disponível), ou seja, como um caso de consciência não-tética, no qual o indivíduo está realizando uma ação pré-reflexiva e está não-teticamente consciente de fazê-lo. Para tanto, este deve ser um caso de ação habitual acompanhada de distração, quer dizer, um caso em que o indivíduo está empreendendo uma ação para a qual ele já possui o know how de maneira irrefletida e em certo momento se distrai – o indivíduo “sabe”, durante todo o tempo em que realiza a ação, algo sobre si mesmo (por exemplo: onde seus pés e mãos estão e onde devem estar no momento da realização de cada rotina) e sobre o que é percebido (por exemplo: onde é o limite da pista de rolamento, onde estão os obstáculos, etc.) e este é um “saber” não intelectual, não inferencial e não observacional. No instante em que se distrai, contudo, ele instantaneamente se esquece daquilo que vinha fazendo, i.e., do que vinha acontecendo nos momentos anteriores – ele se esquece onde estiveram seus pés e mãos, onde era o limite da estrada no trecho já percorrido, quais as

curvas e manobras que foram feitas, etc. Porém, mesmo no momento em que ele nota que não se lembra do que vinha acontecendo nos momentos anteriores, ele “sabe” algo (não intelectual, não inferencial e não observacionalmente) acerca de si mesmo e acerca do entorno do momento presente, pelo que sua consciência não- tética de si (consciência pré-reflexiva) e sua consciência perceptual estão intactas, tendo sido apenas a memória a se degradar.

Estes casos teórico-empíricos, portanto, representam desafios para Sartre na medida em que o próprio Sartre não se debruçou sobre casos semelhantes (e, portanto, na medida em que a tarefa permaneceu por fazer); mas não representam contra-exemplos para sua noção geral de consciência, e particularmente para sua noção de consciência pré-reflexiva, na medida em que podem ser satisfatoriamente abordados a partir dessas noções sem recair num paradigma intelectualista ou em contradições.

CONCLUSÃO

Ler Sartre, mas lê-lo realmente, buscando compreender e aplicar seu pensamento em vez de só olhar os pontos principais, está de volta em nossa agenda.

Neil Levy, “Sartre”

Fizemos um percurso longo e sinuoso pelos primeiros trabalhos filosóficos de Sartre e por alguns de seus intérpretes anglófonos. Se nosso objetivo foi atingido, conseguimos mostrar que Sartre, enquanto filósofo da mente, é uma figura um tanto quanto diferente do que uma primeira impressão de seus textos poderia revelar. Sua ontologia não é do tipo dualista, sua concepção de consciência não é tão semelhante à concepção racionalista quanto alguns intérpretes tendem a considerar; e o principal “resíduo” de hiperintelectualismo em sua obra – a autoconsciência – é muito menos onipresente do que inicialmente temos tendência a entender. Mostramos também que o sentido da ideia de ação pré-reflexiva tal como aparece em diversas passagens na obra filosófica de Sartre, embora longe de encontrar um consenso, admite ser entendida segundo uma chave de leitura muito menos intelectualista do que tradicionalmente tem se dado. Por fim, esperamos ter mostrado também que não é tão fácil desafiar esta ideia apelando para casos teórico-empíricos que tem como peculiaridade a presença de consciência na ausência de autoconsciência, justamente porque o cogito pré-reflexivo não é, como mostramos, uma autoconsciência, no sentido robusto, que acompanha todos os episódios da vida consciente de um indivíduo.

Não pretendemos de modo algum ter esgotado as possibilidades de diálogo entre Sartre e a filosofia da mente, e sim indicado e dado os primeiros passos num caminho que tem potencial para gerar outros frutos interessantes. Uma oportunidade, talvez inovadora, de pesquisa futura poderia se concentrar na apropriação dos resultados deste trabalho para abordar o debate contemporâneo entre conceitualistas e não-conceitualistas, uma vez que um Sartre não- hiperintelectualizado certamente teria condições de somar-se a outros autores como Heidegger e Merleau-Ponty a título de inspiração e fonte fenomenológica para o esforço, que já está em curso, de construção de uma via média no supramencionado debate, com vistas a argumentar no sentido de que a racionalidade não é pervasiva à experiência. Outra possibilidade seria destrinchar, de maneira mais pormenorizada, as implicações da noção sartreana de consciência pré-reflexiva para uma discussão acerca da irracionalidade prática e da fraqueza da vontade em filosofia da ação. E, por último, outra oportunidade promissora seria buscar aplicar a noção sartreana de consciência pré-reflexiva com vistas a enriquecer a compreensão que temos de certos fenômenos da psicopatologia que exibem ambiguidades ou antinomias práticas da racionalidade, tais como o transtorno maníaco-depressivo e transtornos psicóticos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS