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Capítulo II: Argumentos construcionistas para uma compreensão do desabrigo:

1. Argumentos ontológicos construcionistas

Em uma época em que essência e verdade caminhavam de braços dados, a filosofia tinha como tarefa aprimorar os modos como o conhecimento pode re(a)presentar o mundo de modo realista (como tradução ou adequação). Neste contexto e quase um século antes das reflexões realizadas pelo movimento do giro linguístico, Nietzsche semeava reflexões sobre a natureza da linguagem, repensando seu papel

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constitutivo sobre a realidade e refletindo acerca de nosso relacionamento com o mundo. Nietzsche propunha que a origem da linguagem é a chave para a compreensão dos modos como construímos conhecimento – para ele, uma série de traduções e metáforas marcam os modos como nos relacionamos com isso a que chamamos realidade exterior.

Em uma análise acerca da linguagem realizada no ensaio “Sobre verdade e mentira no sentido extramoral” (1873/1999), Nietzsche propôs que a palavra, a

princípio, nada mais é do que a “representação sonora de uma excitação nervosa” transformada em imagem e som (representação esta realizada de modo artisticamente criador e arbitrário). Criada para exprimir sensações corporais (ou seja, o relacionamento homem-mundo), a palavra não correspondente termo a termo a nada no mundo exterior. Não há, portanto, adequação possível entre as “palavras” e as “coisas”.

A postura construcionista, de base crítica, aguçada a partir destes mesmos pensamentos e a partir das reflexões de autores da filosofia que estavam repensando a linguagem, não se resume, contudo, a considerar que o mundo é uma construção social realizada pelas palavras. Essa seria uma posição simplista, enfaticamente criticada pelos principais autores deste movimento (Hacking, 2001). As condições de existência a que estamos submetidos (entre elas, condições biológicas, sociais, históricas, etc.) nos permitem estabelecer tipos de relação com o mundo que acabam por constituírem-se em práticas que sistematicamente participam dos modos como a realidade é conformada (Ibañez, 2005). Isso significa que as práticas de relacionamento com o mundo (entre elas práticas que incluem a nossa linguagem cotidiana) efetivamente atuam nos modos como a realidade existe para nós, o que não significa dizer que são essas práticas que produzem o mundo a partir de um tipo de relação causal ser humano-mundo ou linguagem-mundo. As palavras de Ibañez são contundentes:

É certo que nosso sistema sensorial e nossos conceitos condicionam o que vemos. Mas, se não tivesse nada susceptível de ser visto, não veríamos nada. Isto é, somente conseguimos alcançar o que é descrito por meio de uma descrição, mas, para poder descrever, tem que haver algo, aí fora, que pode ser descrito (2005, p. 75).

Isso significa dizer que a realidade não pode ser considerada como uma coisa-em- si, extralinguística; nossas práticas cotidianas e linguísticas fazem parte da complexidade com que a realidade se reveste diante de nós (Mol, 1999). Dizer isso não significa considerar que a realidade possui natureza linguística, mas apenas que é

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impossível prescindir da linguagem. Considerar isso implica em assumir que nem as pessoas, nem o mundo possuem uma natureza determinada; ambos constituem-se em interação através de processos relacionais específicos (Iñiguez, 2003).

Disto resulta uma postura antiessencialista fundamental: em uma perspectiva construcionista, não há como “descer” a qualquer realidade última, em busca de fundamentos que permitam a defesa de determinada verdade, elaborada objetivamente por correspondência ao mundo exterior – não há como tentar compreender a loucura, a doença mental ou a vida nas ruas consideradas como exteriores às nossas significações. A proposta aqui é de abandonarmos a tarefa de compreender qual é o fenômeno por trás de todas as realidades envolvidas no viver na rua, em busca de algo essencial, único e imutável (tarefa geralmente tomada pelas ciências biomédicas a partir de compreensões que tentarão explicar o viver nas ruas a partir de anormalidades bioquímicas a nível cerebral ou genéticas, a nível hereditário).

Em uma perspectiva construcionista, o mundo não possui propriedades intrínsecas, não relacionais; o mundo é responsável por oferecer estímulos aos nossos órgãos sensoriais, e não tem a capacidade de impor o que seria um conhecimento verdadeiro ou falso. Para Ibañez (2005, p. 79), “se o mundo não tem a capacidade de determinar nossas crenças sobre o mundo, ainda menos tem a capacidade de determinar quais dessas crenças são corretas e quais não são”.

São as nossas práticas sociais e linguísticas que permitem que o mundo experimentado por nosso aparato biológico ganhe sentido. A própria noção de corporeidade ganha novo status, uma vez que este corpo, marcado pela biologia e pela cultura, é responsável por relações diferenciadas com o mundo a nossa volta. É somente porque estamos com nossos corpos imersos em comunidades linguísticas que podemos conceber a realidade de modo a compartilhar sentidos coletivos (Iñiguez, 2003). Ibañez (2005), comentando argumentos do relativismo conceitual de Searle, afirma

Só podemos representar e só podemos descrever o que estamos equipados para poder representar ou para poder descrever. Isso significa que nossas representações dependem do sistema conceitual que se encontra a nossa disposição e que nossas descrições dependem do vocabulário, ou da linguagem que manejamos (p. 75).

Além disso, é importante acrescentar que nossa linguagem foi desenvolvida ao longo dos séculos amparada nas nossas condições biológicas e suas relações com o mundo. Desse modo, é em vão a tentativa de conhecer a realidade pré-conceitualizada,

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ou, como diria Foucault, ir em busca de referentes pré-discursivos (como a loucura, por exemplo), porque não há experiência humana que consiga despir-se da linguagem e das práticas sociais e históricas em que está imersa.

Voltando ao pensamento de Nietzsche, a vida em sociedade, e os horrores envolvidos nela (a luta pela sobrevivência a que nós, como seres vulneráveis, sem chifres ou presas, estamos constantemente submetidos), acabam por exigir convenções e conceitos comuns, para que a vida em rebanho tenha sucesso. A crença na tradução do mundo em linguagem (em metáforas que a filosofia e as ciências petrificaram sob o nome de verdades) passa então a ser necessária, assim como o esquecimento da dimensão poético-criadora envolvida em cada ato enunciativo.

Nesse processo, as mediações inventivas da linguagem são apagadas e transpostas em regras de conhecimento supostamente rigorosas e descoladas dos corpos em que são produzidas e das relações de poder aí envolvidas, em tentativa de aproximação dos referentes a que supostamente pertencem, fundamentando a busca obstinada pela verdade, ainda hoje perseguida. A verdade, assim, apresenta função protetora à vida em sociedade, e foi estratégica ao longo do processo civilizatório que tinha como imperativo a gregariedade por meio de adestramentos culturais. Desse modo, Nietzsche salienta, antes de tudo, a falta de sentido histórico da filosofia em seu esquecimento do caráter inventivo da relação homem-mundo (através da linguagem). Em nossa busca pela origem, esquecemos que a verdade das coisas está ligada irremediavelmente à verdade discursiva.

Nietzsche considera, portanto, que a verdade é mais um valor moral de nossa sociedade, que serve, acima de tudo, à vida de rebanho, ao laço social, e que não deve jamais ser dissociada da linguagem. A verdade, assim, está sempre ancorada em pactos linguísticos e convenções sociais, que dizem menos das coisas em si, do que da relação homem-mundo (Marton, 2007).

Entretanto, a crítica nietzschiana à dicotomia essência-aparência e à noção de verdade como resultado da aproximação fiel ao mundo exterior não tinha como objetivo postular mais uma teoria ontológica sobre a natureza da realidade ou mesmo defender uma posição epistemologicamente relativista frente à construção de conhecimentos e verdades. Nietzsche propunha um questionamento profundo sobre nossa fascinação frente ao ordenamento do mundo e à racionalidade que acreditamos apurar progressivamente, deslocando o sujeito do conhecimento em direção à criação estética

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do mundo e de si, em tentativa de controverter nosso modo de vida em sociedade e a vontade de verdade que rege a todos.

Os deslocamentos que propõe envolvem uma análise apurada dos modos como viemos a ser o que somos, problematizando a hierarquia de valores instituída historicamente pela moral e afastando-nos da busca pelas essências. Sua genealogia da moral não tem como objetivo, neste contexto, ir em busca de qualquer origem, mas sim, daquilo que historicamente foi escondido, esconjurado, de tudo que foi transformado em desprezível e que, portanto, foi excluído dos acontecimentos históricos descritos tradicionalmente. Sua genealogia está à procura das relações de poder que estão envolvidas no processo de constituição dos valores (do bem, da verdade em contraposição ao mal, à mentira ou ilusão) – em análise das íntimas relações da ciência com a sociedade.

Segundo Foucault (1996), a vontade de verdade do ocidente, ou seja a vontade de opor o verdadeiro ao falso que obstinadamente vem sendo perseguida desde a filosofia socrático-platônica, e de maneira mais acelerada a partir do Renascimento, essa busca incessante pela verdade tem implicações sobre o modo de conceber a construção de conhecimento e o próprio edifício do saber estratificado pelas ciências. No interior da ordem de discurso que se centra na noção de verdade como adequação à essência, ocorreu, ao longo do tempo, a nítida separação entre a verdade e o poder (de quem fala), entre o saber e o desejo (de conhecer), tornando artificiais e deletérias quaisquer aproximações da verdade e do saber com o poder e o desejo. Foucault (1996) acredita que essa separação até os dias atuais nos faz ignorar a vontade de verdade que nos motiva a buscar conhecimentos essenciais, neutros e isentos e formatá-los em regimes de verdade com regras quase religiosas. Assim, para ele, é preciso questionar sempre a vontade de verdade que permeia as construções discursivas, as práticas de poder e os regimes de veridicidade, questionando de partida o discurso que afirma que

nem tudo é verdade; mas em todo lugar e a todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista, uma verdade talvez adormecida, mas que no entanto está somente à espera de nosso olhar para aparecer, à espera de nossa mão para ser desvelada. A nós cabe achar a boa perspectiva, o ângulo correto, os instrumentos necessários, pois de qualquer maneira ela está presente aqui e em todo lugar (Foucault, 1979, p. 113).

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Para afastar-se deste projeto moderno em torno da verdade, Foucault propõe seguir acontecimentos, ou seja, seguir as cristalizações de séries históricas complexas que aí aparecem (e estar disposto a encontrá-la nos espaços mesmos onde residem). Frente à afirmação de que singularidades não necessárias irrompem em solos históricos específicos, Foucault volta-se para a verdade-acontecimento na tentativa de romper com tradições essencialistas, generalizações que buscam metanarrativas da história. Propõe, portanto, um giro no posicionamento adotado pelas ciências, que deveria voltar-se para

Uma verdade dispersa, descontínua, interrompida, que só falaria ou só se produziria de tempo em tempo, onde bem entender, em certos lugares; uma verdade que não se produz em toda parte o tempo todo, nem para todo mundo; uma verdade que não nos espera. Porque é uma verdade que tem seus instantes favoráveis, seus lugares propícios, seus agentes e seus portadores privilegiados (Foucault, 2006, p. 303).

Como afirma Artières (2004, p. 16) ao referir-se ao pensamento foucaultiano, a tarefa do intelectual seria, neste contexto, “diagnosticar as forças que constituem nossa atualidade e que ainda a movimentam”, destruindo as universalidades e evidências e localizando os pontos frágeis e nevrálgicos das relações de saber-poder, suas linhas de força; incessantemente se deslocando em direção à expansão da vida. Essa investigação dialoga com tal reflexão e timidamente adota tal tarefa em direção a uma compreensão do viver nas ruas e dos sofrimentos experimentados pelas pessoas em situação de rua que busca diagnosticar as relações de saber-poder envolvidas nos relacionamentos entre a rede de saúde e cuidado e as pessoas concretas que, em situação de rua, experimentam sofrimento considerado de ordem mental.

Nesta seara argumentativa, propomos uma breve reflexão em torno da noção de

acontecimento como modo de complexificar a discussão sobre o fazer científico e sobre as políticas públicas ancoradas em relações de saber-poder pertinentes ao campo científico. Por acontecimento podemos compreender a emergência de uma conexão entre elementos materiais e sociais dispersos que irrompe em meio a diversas possibilidades momentâneas, e que em uma situação peculiar ganham sentido. Desse modo, segundo Tirado e Domènech (2001), essa seria uma possibilidade de ponderar que essa rede de relações, esses coletivos, podem simplesmente emergir em acontecimentos insólitos, que não estão submetidos a nenhuma lei que os governe e nenhum ordenamento, são simplesmente puro acontecer, caótico e estão associados tanto à sua história, quanto às associações presentes. Portanto, estas configurações

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instantâneas e fugazes, cuja composição é mutável e cujas inscrições locais são efêmeras, não permitem antecipação ou previsão e por isso oferecem certa resistência a qualquer racionalização – não há estrutura nessa rede de relacionamentos, somente um simples acontecer.

Segundo Tirado e Mora (2004), há três aspectos relacionados à noção de acontecimento que são dignos de nota: seu caráter metafórico, ou seja, a elaboração discursiva e sua imanente produção de sentidos oferecidos por conta desta particular associação entre elementos materiais e linguísticos; seu caráter narrativo, ou seja sua relação íntima com o próprio ato de narrar uma situação que irrompe no cotidiano e que faz falar e produzir sentidos; e seu caráter cotidiano, ou seja, que não se resume somente ao extraordinário, mas também às situações corriqueiras que podem conectar- se em sentidos comuns e produzir afetação, fala, conexão. Nesse sentido, a própria vida cotidiana pode ser compreendida a partir desta noção: o acontecimento, marcado por suas narrações, posiciona as pessoas frente ao espaço que habitam, a partir de sentidos específicos que emergem por conta de determinadas conexões entre materialidades e socialidades organizadas em um sentido comum.

Essa investigação situa-se justamente na tentativa de compreender a vida nas ruas e seus habitantes a partir de seus acontecimentos. Especialmente, nos atentaremos às

metáforas elaboradas acerca da vida nas ruas e seus habitantes, ou seja, problematizaremos a construção de sentidos sobre esses acontecimentos realizada pelos atores aí convocados. Além disso, essa pesquisa propõe-se narrar esses acontecimentos e refletir sobre essas narrativas (a partir dos escritos nos diários de campo) e assim produzir certa versão sobre eles a partir de uma perspectiva teórico-política implicada, atenta a seus efeitos. Por fim, esta investigação propôs-se a participar ativamente do

cotidiano das pessoas aí envolvidas, atentando para o extraordinário e também para o corriqueiro.

Voltando à discussão sobre a possibilidade de defender versões de realidades, de defender verdades, a noção de acontecimento complexifica essa problematização, na medida em que pressupõe o inacabado, o imprevisto e o fugaz de toda construção social, de toda verdade. Partimos de pressuposto que os seres humanos são capazes de construir conhecimento sobre esse mundo; conhecimento que, mesmo sem uma fundamentação última que garanta sua aproximação com a verdade (como gostariam os realistas e os objetivistas), pode ser considerado melhor ou pior, mais afortunado ou menos afortunado, mesmo assumindo o argumento relativista. Como? É nesse

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momento da reflexão filosófica que vemos a influência do pragmatismo sobre o pensamento construcionista (especialmente, a figura de Richard Rorty), como podemos observar nas palavras de Ibañez (2005):

Se não é o mundo quem causa a verdade de uma crença sobre o mundo e se certas descrições do mundo são, sem embargo, melhores do que outras, é porque estas crenças mostraram-se mais apropriadas para que os seres humanos possam se desenvolver no mundo, e não porque refletem melhor o mundo tal como realmente é (p. 79).

Podemos notar que já estamos adentrando no espaço das discussões epistemológicas sobre a construção de conhecimento. A discussão sobre a natureza instituinte e performativa de nossa linguagem sobre o mundo esbarra necessariamente nessa rediscussão da noção de verdade. Mas o que isso significa em termos estratégicos? Que é preciso oferecer primazia à discussão sobre os aspectos epistemológicos da construção das verdades sobre o mundo? A discussão aqui começa a imbricar pressupostos ontológicos, epistemológicos e políticos, tornando essa divisão artificial, com efeitos apenas didáticos. Mas por hora seguiremos os argumentos epistemológicos, para só então compreendermos a noção de sujeito e suas práticas de liberdade, discussão que aqui nos interessa. A reflexão sobre a verdade é fundamental para o construcionismo e tem importantes implicações nos modos como a ciência deve posicionar-se politicamente.