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Capítulo III: O que significa ser pobre e viver nas ruas em nossa sociedade?

3. D Cristina na intersecção: pobre, mestiça, migrante e mulher (Desfiliação por fragilização dos

3.2 Políticas sociais destinadas à pobreza a partir dos anos 2000

A partir do ano 2002, com uma política de combate à pobreza como tônica do governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, mudanças foram realizadas em direção à criação de postos de trabalho como incentivo ao crescimento econômico do país, ao mesmo tempo em que se ampliava o Programa Bolsa Família, principal programa de transferência de renda, responsável por atender, em 2011, mais de 13 milhões de famílias (investindo mais de 900 milhões de reais neste ano). Desde o início do programa até o ano de 2006, segundo dados do IPEA, 31% dessa população conseguiu sair da condição de extrema pobreza, e os níveis de desemprego conseguiram finalmente escapar da curva crescente das décadas de 1980 e 1990. Porém, ainda que o crescimento econômico esteja sendo acompanhado pela geração de emprego, segundo dados do IPEA, a maioria da população economicamente ativa, ou seja 56,7% encontram-se sem as proteções do emprego formal, se contamos os empregados sem carteira assinada, os autônomos e os trabalhadores não remunerados. Além disso, foi possível observar que somente no segmento da população mais pobre houve melhoria da renda-trabalho:

Enquanto a melhoria da renda trabalho, pela recuperação do valor real do salário, favorece, fundamentalmente, os mais pobres, com faixas de renda de até dois salários mínimos, as transferências de renda dos

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programas sociais permitiram que um importante número de famílias escapasse da condição da miséria. Trata-se, portanto, de uma focalização “dos mais pobres entre os pobres”. (Ivo, 2008, p. 224).

Mas vale lembrar que, justamente por não se constituir como programa de caráter universal (já que não é um direito constitucional de todos os brasileiros), o Bolsa Família possui critérios rígidos de seletividade16, elegendo apenas uma parte da população pobre para ser beneficiária. Nesse contexto, vale perguntarmos: o que é destinado àqueles que não conseguem trabalho e também não têm família? A seletividade deste programa implica em que todos aqueles indivíduos dessocializados, que não possuem nem mesmo a proteção dos laços e vínculos familiares, também não

tenham direito a beneficiarem-se da transferência de renda e estejam, assim, excluídos

dessa proteção.

O caso de D. Cristina nos ajuda a compreender os efeitos dessa seletividade dos programas sociais. Nas ruas desde 2001, D. Cristina não é beneficiária de nenhum programa social. Como não tem família, não tem direito a participar do Bolsa Família. E como ainda não tem cinquenta e cinco anos (faltavam oito anos na época em que a conheci), a aposentadoria ainda é um sonho distante. Ela me disse que não sabe se estará viva até conseguir esse benefício (o que não deixa de ser uma ponderação sensata, diante de tantos perigos a que está exposta diariamente, além de condições de vida extremamente precários). Apesar de apresentar alguns problemas de saúde (como tuberculose, hipertensão, problemas dentários e até mesmo algum transtorno de comportamento relatado em seu prontuário), nenhuma dessas enfermidades preenchem as condições que a tornariam apta para aposentar-se por invalidez.

A única política pública que está presente em sua vida refere-se à área da Saúde: o Programa de Saúde da Família sem Domicílio. Acompanhada por essa equipe desde 2009, D. Cristina vem recebendo cuidados constantes referentes à sua saúde bucal, ginecológica, ao tratamento de tuberculose e à oferta de apoio ao vício (tanto do álcool, quanto do crack e outras drogas). Até mesmo a zoonose foi contatada pela equipe para que seus muitos cachorros e gatos recebessem vacinas (houve uma época em que chegou a ter dezenove cachorros e quatro gatos).

16 O Bolsa Família seleciona famílias que tenham crianças em idade escolar (até quatorze anos) e com

97 Como a assistência social estava distante de sua vida, a equipe tratou de tentar de alguma forma assumir essa função. O relacionamento de D. Cristina com a equipe chegou a ser bastante intenso: sabendo da importância de seus animais para sua vida, a equipe contatou o controle de zoonoses com a proposta de que tal instituição conseguisse um trabalho para ela relacionado ao cuidado com animais e moradia fixa. E propuseram como condição o estabelecimento de vínculo entre tal instituição com a UBS e o encaminhamento de D. Cristina para um serviço de saúde em álcool e drogas. Infelizmente tal projeto foi rejeitado.

Diante disso, a equipe ainda se arriscou um pouco mais, apostando em uma intervenção que pudesse fazer a diferença para sua saída das ruas. Luís, seu ACS de referência, conseguiu um emprego para ela como caseira em um sítio perto de São Paulo. Lá ela ganharia R$ 400,00 por mês e teria um teto para morar. Ele conseguiu esse lugar após insistir com um conhecido, que é de família rica. Até seus cachorros foram com ela. Mas, em pouco tempo, ela já estava de volta às ruas (cerca de dois meses depois). Segundo Luís, D. Cristina entrou em contato com o tráfico de drogas da região e começou a gastar tudo o que ganhava com crack, a ponto de chegar a roubar objetos da casa onde estava para conseguir dinheiro para comprar crack e maconha.

Conversei com ela sobre esse episódio e ela me disse que fugiu de lá porque o dono do sítio havia prendido ela, e que não estava pagando nenhum salário. Enquanto ela estava trabalhando, ele a manteve trancada no sítio, sem contato com nenhuma pessoa. Ele só a visitava a cada quinze dias com uma cesta de alimentação e a ração dos cachorros. Depois de algum tempo, ela percebeu a situação e fugiu, abandonando seus cachorros lá (o que ela conta com bastante tristeza). Voltou às ruas em busca de novos cachorros e também voltou a usar crack, álcool e maconha. Depois desse episódio, suas relações com Luís ficaram abaladas, mas ela continuou a ser atendida pela equipe.

Sem muitos recursos, D. Cristina precisou criar estratégias de sobrevivência para adaptar-se à vida nas ruas. Ela me disse que para ela, é muito importante estabelecer vínculos de amizade com seus companheiros de rua. Para fazer isso, cozinha para alguns e até divide alimentos quando recebe certa “fartura”. Me disse que essa é a lei da rua, “você também tem que ajudar, porque de vez em quando todo mundo precisa de ajuda”. Alguns comerciantes da região já a conhecem por conta desses longos anos e sabem, segundo ela, que ela não representa nenhum perigo. Por isso, ela está sempre fazendo uma “ronda” em busca dessas doações, nas casas e comércios de seus amigos.

98 Aos poucos, acaba acumulando alguns objetos de ordem pessoal, utensílios de cozinha, roupas, cobertores e com sorte algum colchonete. Cheguei a conhecer seu mocó, bem organizado junto a um poste, com uma cozinha improvisada, alguns papelões para dormir, uma almofada velha e um cobertor novo dobrado, e algumas outras coisas guardadas em dois sacos grandes de lixo. O mocó ficava no meio da praça, um lugar que me chamou a atenção pela visibilidade e falta de proteção. Em seu prontuário, há relatos sobre isso: “Maloca organizada. Desenvolveu recursos de sobrevivência que garantem sua adaptação”. Mas, segundo ela, sempre que consegue organizar seu mocó, algo acontece e ela acaba perdendo o que possuía. E têm que começar tudo de novo... Apesar de se chatear muito, segundo ela, “não há o que fazer a não ser continuar a viver”.

Nesse sentido, suas amizades nem sempre são assim tão generosas e às vezes podem representar perigo. Roubos são constantes, sejam eles realizados pelo rapa (a polícia) ou por companheiros de rua. D. Cristina me disse que acredita que uma das pessoas que vivem na praça vem aproveitando-se dos momentos em que está dormindo bêbada para roubar-lhe, já que seus cachorros não latem com a sua aproximação. Ela mesma me disse que bebe às vezes, mas que ultimamente tem evitado porque acredita que um companheiro ladrão a rouba quando ela está dormindo um sono mais pesado depois que bebe. Segundo Luís, ela também é usuária de crack.

Mais importante que as pessoas, são esses cachorros e gatos que D. Cristina cuida. Quando a conheci, contei sete cachorros à sua volta (os gatos ficam espalhados na praça e aparecem na hora da comida). Para ela, viver nas ruas sem seus animais seria impossível. Em seu entorno, eles representam proteção (à aproximação de estranhos), e a possibilidade de criar relações de afeto e confiança. Boa parte de seus esforços cotidianos diz respeito ao cuidado desses animais, segundo ela, seus únicos amigos fiéis e verdadeiros, com quem sempre pode confiar.

D. Cristina me pareceu uma pessoa muito lúcida e crítica de sua situação social e de sua história. Contudo, a equipe a havia apontado como uma de suas pacientes que claramente sofriam algum transtorno de ordem “mental”. Depois que a conheci, não compreendi porque ela seria uma de minhas participantes. Comentei isso com Luís e ele me disse que, apesar de não tomar medicação psiquiátrica, ela muda seu comportamento muito repentinamente e, de um dia para o outro, podemos encontrá-la toda suja e despenteada, andando para lá e para cá, falando sozinha ou gritando pelas redondezas, além de ressaltar que é usuária de álcool e crack.

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Sem trabalho e sem direitos a proteção, as pessoas que não contam com suas redes de apoio familiar conseguem (sobre)viver inventando estratégias por vezes muito voláteis. Em diversas ocasiões, essas mesmas pessoas que parecem bem adaptadas, simplesmente perdem o controle, em situações de crise que revelam o sofrimento em que passam. No campo dos estudos sobre a situação de rua no país, há necessidade de compreendermos melhor tais estratégias de sobrevivência e, principalmente, forjar políticas públicas que estejam direcionadas para a garantia de direitos e que também respeitem suas necessidades e peculiaridades da vida nas ruas.

Para Escorel (1999), compreender o fenômeno das pessoas em situação de rua no Brasil implica relacionar as fragilidades advindas da desvinculação do mundo do trabalho (formal e informal) com a perda da proteção oferecida pelas sociabilidades familiares. Essa é uma discussão muito importante no campo dos estudos sobre as pessoas em situação de rua, uma vez que divide opiniões de pesquisadores e ativistas.

Segundo Escorel (1999), associar o fenômeno das pessoas em situação de rua somente à desvinculação do mundo do trabalho pode se configurar em uma leitura estreita das particularidades da história do assalariamento e das relações sociofamiliares no Brasil. Como vimos, a universalidade do pleno emprego nunca se concretizou em nosso país. Como estratégia de sobrevivência, o pobre urbano literalmente “inventou” um novo mercado de trabalho informal que o permitiu integrar-se marginalmente à vida econômica das cidades e muitas vezes até mesmo escapar da vida nas ruas, apesar de permanecer vivendo na pobreza, às vezes beirando a mendicância.

No contexto de escassez de empregos e exclusão da assistência, os trabalhos informais parecem ser a única possibilidade de garantir a sobrevivência. Inimpregável, essa camada da população encontrou uma nova profissão: como biscateiros, eles precisam saber um pouco de tudo e aceitar qualquer trabalho para conseguir sobreviver. Diante da falta de empregos estáveis, acabam se envolvendo com atividades mais próximas ao ethos das ruas, exercendo trabalhos informais de curta duração, extremamente precários, como guardadores de carro, catadores de papelão e alumínio e, com sorte, auxiliares de construção civil. Às vezes, conseguem dinheiro para comprar objetos de uso pessoal ou doméstico para revender como ambulantes em zonas de muito comércio de varejo. Segundo Bursztyn (2000a), desde os anos de 1970, vimos a categoria dos biscateiros proliferar de modo intensificado no cenário brasileiro de desigualdade social crescente.

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Isso, contudo, não significa que podemos explicar o aumento das pessoas em situação de rua somente relacionando-o com o aumento dos trabalhos informais. Muitas pessoas que trabalham como biscateiros contam com a proteção dos laços familiares e de algum modo conseguem a duras penas sustentar um lar. D. Cristina, por exemplo, quando chegou a São Paulo trabalhou em distintas funções, inclusive como ambulante, geralmente no centro da cidade, e “caiu na rua” somente após perder alguns laços familiares e construir outro, que não representou cuidado e proteção. Sua aproximação com a vida nas ruas foi paulatina, e envolveu fragilidades relacionadas ao mundo do trabalho e à esfera afetiva.

Além disso, ressaltamos a importância de mais um fator de vulnerabilização e desfiliação: a distância de sua cidade de origem (com sua rede de amigos e instituições, referências que fizeram parte de sua vida). Frente às dificuldades relacionais e em relação ao emprego, D. Cristina não podia contar com essa rede relacional sustentada pela cidade de origem (e que vai além dos laços mais próximos, relativos à consanguinidade ou às relações conjugais).

Se pensarmos a desfiliação como um desenrolar de situações que envolve fragilizações várias e aproximações paulatinas com o mundo da rua, devemos reconhecer que processos sociais de âmbitos históricos, políticos e econômicos relativos a cada contexto social atravessam vidas concretas e se atualizam em trajetórias específicas e pessoais. Em nosso contexto sociopolítico, brevemente apresentado aqui, além das fragilizações relativas ao mundo do trabalho e às relações familiares, a migração e o envolvimento com o mundo das drogas aparecem como importantes fatores de vulnerabilização. Defendemos, portanto, que em nosso contexto, a migração e a aproximação com as drogas (seja pelo consumo ou pela venda) compõem o cenário de vulnerabilização, na intersecção com esses outros dois processos que a literatura social reconhece como importantes para a desfiliação social em outros contextos.

Vale ressaltar, entretanto, que tais estudos refletem apenas sobre os processos de produção de desigualdade social e desfiliação, mas não dão conta de dimensionar a extensão do problema em cada sociedade ou contexto específico. Nesse sentido, passa a ser necessário estipular qual a magnitude do fenômeno para que ele possa ser elevado à condição de problema social, e assim, justificar a intervenção estatal por meio de políticas públicas voltadas para esse segmento da população. Resta, portanto, saber quantos são os pobres e dentre estes, quantos estão em situação de rua, onde vivem, como se distribuem na cidade, e quais são os recursos concretos (institucionais, afetivos,

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etc.) que contam para sobreviver. Nesse contexto, delimitar medidas de corte para contar os pobres passou a ser um empreendimento fundamental para a elaboração de políticas públicas voltadas para este fenômeno.

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Capítulo IV – Como medir a pobreza e contar pessoas em situação de rua?