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Capítulo II: Argumentos construcionistas para uma compreensão do desabrigo:

4. O sujeito e suas práticas de liberdade

Seguir uma postura construcionista significa não tratar o sujeito como uma essência, como um oásis que se situa intocado (Tirado & Mora, 2004), anterior às práticas de significação e constituição do mundo. É preciso seguir os modos de subjetivação que permitiram a emergência do sujeito na nossa sociedade ocidental moderna. Neste intuito, Foucault sugere dois diferentes métodos de alcançar a

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constituição do sujeito: 1. por meio da investigação das táticas de objetivação do sujeito – ou seja, por meio da análise da história da emergência dos jogos de verdade – como se articulam os discursos capazes de dizer o verdadeiro e o falso acerca do sujeito – por exemplo, a psicanálise, a medicina, a psicopatologia, a psicologia, etc. – na tentativa de seguir “como se formaram diversos jogos de verdade através dos quais o sujeito se tornou objeto de conhecimento” (Foucault, 1984a, p. 236); e 2. por meio da investigação das táticas de subjetivação do sujeito – ou seja, por meio da análise dos modos como o sujeito aparece como objeto para si mesmo; no intuito de perseguir “a formação dos procedimentos pelos quais o sujeito é levado a se observar, se analisar, se decifrar e se reconhecer como campo de saber possível” (Foucault, 1984a, p. 236).

Suas reflexões criticam tanto os universais antropológicos, quanto o sujeito constituinte ao defender o estudo das práticas concretas de constituição do sujeito e sua relação com o contexto social e histórico específico que se relaciona. Entretanto, Foucault alerta:

recusar o recurso filosófico a um sujeito constituinte não significa fazer como se o sujeito não existisse e se abstrair dele em benefício de uma objetividade pura; essa recusa visa a fazer aparecer os processos próprios a uma experiência em que o sujeito e o objeto “se formam e se transformam” um em relação com o outro e em função do outro (Foucault, 1984a, p. 237).

Isso exige uma análise diferenciada sobre a questão do poder. Neste enquadre, não precisamos analisar as origens do poder, seus princípios e ou limites, mas sim os procedimentos e técnicas utilizados para atuar sobre o comportamento de outros indivíduos, tentando compreender como “formas diversas e particulares de “governo” dos indivíduos foram determinantes nos diferentes modos de objetivação do sujeito” (Foucault, 1984a, p. 238). Para o autor, o poder não se constitui acima dos indivíduos, em formas institucionalizadas e rígidas, como o Estado, por exemplo. Poder rizomático, distribuído em toda malha social, em toda relação social; poder, portanto, microfísico. Por poder, Foucault compreende a relação em que cada um procura dirigir a conduta do outro; noção que implica necessariamente na possibilidade de resistência: se há relações de poder em todo o campo social, é porque há liberdade por todo lado. São estas práticas de liberdade que permitem com que o sujeito se constitua de maneira ativa, através do cuidado de si. Para Foucault,

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é preciso distinguir as relações de poder como jogos estratégicos entre liberdades – jogos estratégicos que fazem com que uns tentem determinar a conduta dos outros, ao que os outros tentam responder não deixando sua conduta ser determinada ou determinando em troca a conduta dos outros – e os estados de dominação, que são o que geralmente se chama de poder (1984b, 285).

Este poder rizomático, que se estende por todo o corpo social, depende, portanto, de pontos de resistência, que emanam a partir de indivíduos, cujas condutas estão fundamentadas na liberdade que possuem, na relação consigo e com o outro. Entretanto, é preciso salientar que o cuidado de si, as práticas de liberdade, não são inventados pelo próprio sujeito, mas constituem-se a partir de “esquemas que ele encontra em sua cultura e que lhe são propostos, sugeridos, impostos pela sua cultura, sua sociedade e seu grupo social” (Foucault, 1984b, p. 276). Portanto, não se trata do tema da liberação das relações de poder a partir de resistências ancoradas em liberdades individuais – isso representaria um risco de voltarmos a considerar que existe “uma natureza ou uma essência humana que, após um certo número de processos históricos, econômicos e sociais, foi mascarada, alienada ou aprisionada em mecanismos, e por mecanismos de repressão” (Foucault, 1984b, p. 265).

A relação do sujeito consigo mesmo, inaugurada no ocidente na Grécia antiga, permite um descolamento das malhas de objetivação que as relações de poder e de saber constantemente tecem sobre os indivíduos. A relação consigo, derivada da relação com os outros e dependente de modos culturais estabelecidos em cada sociedade, acaba por permitir um movimento de subjetivação que possibilita a constituição de si (do sujeito) a partir de práticas que ganham independência do poder/saber e que estão constituídas, portanto, no terreno da liberdade. Deleuze, comentando Foucault, escreve

É como se as relações do lado de fora se dobrassem, se curvassem para constituir um forro e deixar surgir uma relação consigo, constituir um lado de dentro que se escava e desenvolve segundo uma dimensão própria: a enkrateia, a relação consigo como domínio, “é um poder que se exerce sobre si mesmo dentro do poder que se exerce sobre os outros” (quem poderia governar os outros se não governa a si próprio?), a ponto da relação consigo tornar-se “princípio de regulação interna” em relação aos poderes constituintes da polícia, da família, da eloqüência e dos jogos, da própria virtude (Deleuze, 2005, p. 107, grifos do autor).

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Considerar que a subjetivação se faz por dobra da força, porém integrada em movimentos de objetivação, de captura do sujeito nas relações de poder-saber, é admitir que os sujeitos podem então passar a se relacionar a partir de posições que, a partir do cuidado de si, garantam práticas de liberdade. Tais práticas influenciam ativamente nos modos como a realidade é performada. Isso garante certo grau de escolha no conduzir- se, e no relacionar-se com os outros, o que efetivamente tem efeitos na realidade a ser construída a cada momento e nos jogos de verdade que serão defendidos.

5. Por uma leitura construcionista do desabrigo e das pessoas em situação de rua