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Entidades, Atores e Processo Multistakeholder de Governação Perceções e Envolvimento da Sociedade Civil

UMA ARQUITETURA EM CAMADAS

Para um diálogo entre técnicos e reguladores

Stupid network, smart applications

Solum e Chung (2003: 14)

(5.1) O MODELO

O TCP / IP (Transmission Control Protocol / Internet Protocol) define tecnicamente a Internet. Desde 1983, o ano de adoção, que é referido como o que melhor diferencia a rede das redes dos sistemas comunicacionais que a precederam (Benkler & Clark, 2016: 5).

Sem ele a Internet não existe, como se escreve no relatório da UNCTAD (2006: 263), emprestando à sigla amplitude bastante para abarcar a sequência de protocolos e standards abertos que, a operar em camadas, preserva a estabilidade do sistema.

Infraestrutura global de informação e de conhecimento, plataforma de excelência para a inovação e a criatividade, pilar do crescimento económico e do desenvolvimento social, a Internet e a sua governação, abordados num quadro político- diplomático-institucional durante a WSIS, são agora desgregados na arquitetura técnica e na forma como o modelo de camadas e respetivos corolários inferem na formulação das políticas regulatórias.

A natureza da Internet é razão do código nela inscrito, do software e do

hardware (tijolos e argamassa, no dizer de Solum & Chang (2003: 13) com que opera.

O TCP / IP é “código puro”, elemento comum às redes da rede e fator decisivo da sua funcionalidade. Nesse sentido, o TCP / IP é a Internet.

The code is law, afirma Lessig (2001: 283), enunciando a primeira norma

regulatória do ciberespaço. Para o autor, o código condiciona o comportamento humano, tal como a arquitetura de um edifício molda a rotina dos movimentos. Ele potencia certas ações dos utilizadores e reguladores em detrimento de outras.

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Se, para bem governar, há que conhecer ao detalhe, então importará aos decisores políticos penetrar nos meandros sofisticados da tecnologia para melhor a enquadrar e regular e, aos técnicos, entender e aceitar que a legitimidade e responsabilidade da governação se não dissociam da sua eficácia.

O modelo de camadas, arquitetado no trabalho pioneiro de Benkler (2000), Lessig (2001), Werbach (2002) e Solum & Chung (2003), quer-se espelhado nas políticas e normas regulatórias, vide numa Internet promotora de democracia económica e recetiva ao talento inovador e à criatividade de quem dela se serve; uma rede de redes aberta, descentralizada e plural, tão mais incontornável quanto para ela convergem hoje as várias tecnologias de informação e comunicação (ICTs) e se crê aproximar a passos de gigante a quarta revolução industrial, cujo advento o Fórum Económico Mundial de Davos, em 2016, festivamente anunciou.

O estímulo à inovação resulta da própria arquitetura da Internet, dos protocolos hierarquizados em camadas verticais. As camadas inferiores são responsáveis por funções técnicas primordiais, como ativar e manter a interconexão dos dispositivos de ligação, o roteamento de dados e a gestão dos congestionamentos de tráfego; ao invés, às funções nos níveis superiores cabe operacionalizar as aplicações, o que fazem de forma autónoma, ainda que confiando no desempenho integral das camadas inferiores.

Protocolos com funções idênticas, bem como as aplicações de software que a eles recorrem, podem ser alterados ou substituídos sem que tal obrigue a ajustamentos nos protocolos e aplicações alojadas nas camadas inferiores ou superiores. Os benefícios são evidentes: uma menor complexidade na sequência TCP / IP e um acréscimo da robustez do sistema, já que não força à predefinição dos componentes, que se articulam sempre que necessário para processar os dados e alcançar o resultado desejado, seja aceder a um sítio web ou recorrer ao skype.

Numa perspetiva técnica, os protocolos da Internet são agrupados em quatro camadas separadas, a que acresce uma quinta, a camada física, que define a relação bidirecional entre o dispositivo de conexão e o meio de transmissão. As quatro primeiras camadas são:

 Camada de ligação ou enlace de dados, cuja função é a de retificar os erros eventualmente praticados na camada física e coordenar o fluxo de dados entre dois nós adjacentes na mesma rede;

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 Camada de rede, que divide em pacotes os dados gerados na rede emissora e os encaminha para o terminal de destino na rede recetora; o protocolo comummente usado é o IP;

 Camada de transporte, situada entre as camadas de rede e a de aplicações; é a primeira camada ponto-a-ponto; referencia as aplicações no computador emissor e no recetor, para obter uma maior coerência e confiabilidade do processo; o protocolo usado é o TCP, que, por definição, assegura que os pacotes de dados são rececionados pela ordem devida e sem estarem corrompidos, caso em que é automaticamente acionado um pedido de reenvio;

 Camada de aplicações, onde a maioria dos programas de Internet trabalha, seja a partilha de ficheiros ou a consulta de uma página web, seja o encaminhar e receber os fluxos de dados.

Numa segunda perspetiva, política e regulatória, a literatura recente surge dividida, propondo diferentes agregações de camadas, como sintetizado na Figura 5.1

Governação em Camadas [Figura 5.1]

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Assim, para Benkler (2000) e Lessig (1999), o modelo estrutura-se em três camadas, com a física (fios, cabos e dispositivos de conexão) no plano inferior, sobreposta pela camada lógica, que decide “quem acede a quê e o que aparece onde” (UNCTAD, 2006: 276), e da camada de conteúdos. Para o autor, protocolos e aplicações são neutrais quanto ao conteúdo dos pacotes de dados e, se bem que autónomas nas funções que cada uma desempenha, as várias camadas são interdependentes, uma vez que o funcionamento incorreto de uma delas interrompe a comunicação.

Em Werbach (2002), o número de camadas sobe para quatro. No plano inferior encontra-se a infraestrutura física, a que exige investimentos mais avultados, sendo por regra monopólio natural das empresas de telecomunicações e alvo predileto da atenção dos reguladores. Segue-se a camada lógica, que opera a coordenação dos fluxos de dados nas redes, pelo que as preocupações regulatórias passam a atender ao funcionamento do DNS e à prestação das entidades centrais no ecossistema de governação, como a ICANN.

A terceira camada é a das aplicações, aquela onde os pedidos dos utilizadores são satisfeitos; sendo de tipo e natureza diversos e prestados em regra pelas empresas detentoras da infraestrutura física, são regulamentados um a um. Enfim, a camada superior é a dos conteúdos, a da informação disponibilizada pelas aplicações, que dependem para o efeito da camada lógica, para operar a transferência de dados do provedor para o utilizador.

Solum e Chung (2003) identificam, por seu turno, seis camadas no modelo. No nível inferior situa-se a camada física, que embora não integre a sequência TCP / IP, é considerada parte do sistema de comunicação em rede, já que sem recurso a um meio físico a transferência de bits não ocorre. Segue-se a camada de enlace, de interação dos computadores individuais com a camada física; é nela que o TCP / IP ganha autonomia, libertando-se da diversidade de configurações de hardware.

A terceira camada é a IP, também chamada de rede ou de Internet, a gestora dos fluxos de pacotes de dados nas redes; a camada de transporte surge em seguida, com a dupla missão de dividir em pacotes os dados recebidos da camada de aplicações e de os enviar para a camada IP; desta última recolhe depois os pacotes de dados, para os remeter para a camada de aplicações.

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113 A camada de aplicações, a quinta, reúne os protocolos de que as aplicações se servem, como o http para a www, o smtp para o email, o ftp para a transferência de ficheiros ou o DNS para o mapeamento dos endereços numéricos de IP, de modo a torná-los reconhecíveis. A sexta e última camada é a dos conteúdos, a camada superior onde os símbolos e imagens comunicados se materializam e ganham legibilidade.

Hierarquizadas na vertical, as camadas permitem que um conteúdo digitalizado por uma aplicação seja desagregado em pacotes pela camada de transporte, endereçado pela camada IP e encaminhado pela camada de enlace para o destinatário final através da camada física. Uma vez recebida, a informação ascende na vertical pelas várias camadas, para ser enfim interpretada como conteúdo por uma determinada aplicação.

(5.2) CÓDIGO É LEI

O princípio de uma governação consistente com o modelo de camadas, acoplado à noção de uma política regulatória que observe a separação das camadas e minimize o seu cruzamento ou distância entre elas, remete para o trabalho de Lessig (1999, 2001) e para duas características únicas da Internet: o código e o princípio end-to-end, ponto-a- ponto ou terminal a terminal.

Diferente do ar que se respira ou da água que dessedenta, a Internet não tem propriedades naturais. Criação virtual, produto do engenho humano, a natureza que patenteia é função do código nela inscrito, dos protocolos e aplicações que a implementam. O argumento de que por ser global, acionada a partir de qualquer lugar, frustra a regulação por um só governo, é procedente, mas obnubila o fato de tal decorrer do código a que obedece e que torna irrelevante a localização geográfica ou a origem / destino dos pacotes de dados por ela transportados. Nesse sentido, protocolos e aplicações na camada lógica são formatadores dos comportamentos dos utilizadores, o que explica a afirmação de que na Internet o código é a lei.

Relevância idêntica assume o princípio ponto-a-ponto, que concentra a inteligência da rede na periferia, na camada das aplicações. Stupid network, Smart

applications (Solum & Chung, 2003: 14) ou rede estúpida / aplicações inteligentes,

espelha a “cegueira” da rede, que se limita a rotear, sem discriminar, o tráfego gerado pelas aplicações, essas sim capazes de dar resposta aos pedidos dos utilizadores.

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A neutralidade da rede face às aplicações ou aos conteúdos que delas dependem, bem como o perfil ou tipo de utilizador, obriga os operadores da camada física a uma mesma indiferenciação, ao não favorecimento do que anteviram como vantagem competitiva, que ao invés deve provir do mérito e da preferência que o público lhe dispensar (Cerf, 2006: 6). A questão é tudo menos pacífica e não faltam os argumentos a proclamar que o princípio da neutralidade abre caminho a uma regulação intrusiva e frustradora da dinâmica do mercado, ou que protocolos abertos, não proprietários, penalizam quem pretende diferenciar os serviços a prestar ou especializar- se em áreas que, pela exclusividade que revelam, justificariam um tratamento preferencial.

Com a transparência a rede ganha, porém, em confiabilidade e na redução de custos no momento de crescer e incorporar tecnologias inovadoras. Se a Internet fosse opaca não seria suficiente investir na camada de aplicações, havendo que fazê-lo também nas camadas inferiores. À relevância económica de uma rede não- discriminatória, recetiva à criatividade de todos e de cada um – há uma camada de aplicações em todos os computadores com acesso à rede, pelo que não “pesa” nos custos de inovação – junta-lhe Lessig (1999) o benefício direto para os utilizadores, que investem na aquisição da aplicação mas não na reconfiguração da rede.

Desenvolvido por Saltzer, Reed & Clark (1981, 1998), o princípio end-to-end convida na sua implementação a identificar a camada relevante, a saber onde se situa o

end. A função de preservar a integridade dos dados numa aplicação de transferência de

ficheiros (ftp) deve, por exemplo, ser atribuída à camada das aplicações e não à camada inferior, pela razão simples dos dados poderem estar corrompidos mesmo antes de entrarem na rede e de ser missão da ftp a respetiva comprovação.

Dito de outro modo, é impraticável disponibilizar uma função numa camada inferior à que é utilizada, uma vez que esta não possui informação suficiente para a executar de forma integral. Só a camada terminal conhece com precisão aquilo de que a dita função carece. Se disponibilizada num nível inferior, ocorre uma dessintonia (information mismatch) entre a camada que possui a informação e a que dela necessita para a executar.

Transposto para o plano regulatório, parece evidente que os normativos não devem violar ou comprometer a separação de camadas e que, a existir um cruzamento de camadas, a distância entre aquela em que a norma visa produzir efeitos e a camada

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115 afetada pela regulação, deve ser a mais curta possível. Como argumenta Solum & Chung (2003: 5), a boa regulação é a que confronta um problema na camada em que ocorre; a pior, a que ataca uma dificuldade na camada de conteúdos, regulando a camada física ou vice-versa.

A regulação que afeta mais do que uma camada provoca um desajustamento entre os fins e os meios regulatórios. Ainda com Solum & Chung (idem), se, numa camada, um problema é visado com uma norma que impacta uma camada diferente, a especificidade da Internet faz com que a regulação contamine usos inocentes (overbreath) e não debele o mal que lhe está na origem (underinclusion). Combater, por exemplo, a pornografia online, bloqueando a conexão entre a infraestrutura local e a rede global, resulta no acesso condicionado aos sítios pornográficos, mas também a outros conteúdos inocentes, além de haver sempre vias alternativas para contornar o bloqueio imposto.