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Entidades, Atores e Processo Multistakeholder de Governação Perceções e Envolvimento da Sociedade Civil

(5.3) DIÁLOGO IMPERATIVO

O princípio das camadas exprime um ideal normativo, mas não visa ser teoria geral da governação ou postulado único da regulação. Serve, porém, a um tempo, para parametrizar as decisões das autoridades públicas e, a outro, seguindo a recomendação de Werbach (2002: 2), para recentrar na Internet a regulação do sistema de comunicações, substituindo as categorias horizontais do modelo tradicional de regulação, baseado no estatuto geográfico dos serviços disponibilizados – e os mecanismos centralizados de controlo, como os comutadores, que tem que ser alterados de cada vez que se adicionam novas funcionalidades – pelas camadas verticais que alicerçam a arquitetura técnica da Internet.

Privada, pública ou transnacional, a regulação deve procurar respeitar a integridade das camadas, observando quer a sua separação – não forçando uma camada a diferenciar a gestão de dados com base na informação disponível noutra camada – quer o mínimo da distância no seu cruzamento, entre a camada que a norma visa regular e aquela que é diretamente afetada. Regular uma questão de direitos de autor (copyright) atuando na camada IP para bloquear certos endereços, é um bom exemplo da violação do princípio que manda regulamentar cruzando o menor número possível de camadas.

Autores como Solum & Chung (2003: 43) admitem, entretanto, ser limitada a aptidão do princípio das camadas para influenciar os procedimentos legislativos e

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regulatórios, face a considerandos de natureza ideológica ou de interesses particulares, que não raro moldam as decisões. É improvável que o princípio e os seus corolários prevaleçam, quando os resultados que geram conflituam com motivações mais fortes. Todavia, acreditam os autores, “não só os reguladores podem não ser insensíveis à racionalidade dos argumentos, como os fundamentos que ancoram o modelo transcendem uma qualquer ideologia ou paleta de interesses, sendo a transparência da Internet um valor em si mesmo, um bem de confirmada relevância social”.

Por outro lado, à questão de saber porque é que os reguladores são tantas vezes tentados a violar o princípio das camadas – é frequente a regulação visar a camada inferior do TCP / IP, na convicção de estar a resolver problemas nas camadas superiores e não necessariamente na camada de conteúdos – Solum & Chung (idem: 54) respondem que é tão só o desejo de “ferir de morte a tecnologia que autoriza a conduta indesejável que se pretende banir”. Cortar o mal pela raiz parece ser o desejo último dos reguladores, face à declarada impotência em recuperar o controlo dos conteúdos.

Do todo resulta um imperativo de diálogo entre a comunidade técnica e os decisores políticos. O TCP / IP sabe tomar conta de si, é robusto e confiável, não discrimina entre pacotes de dados, nem quer saber que aplicações são usadas, o tipo de conteúdos que geram ou quem delas se serve e porquê; enfim, os protocolos e standards que integram a sequência cumprem, na camada a que pertencem, as funções que lhe foram cometidas, sem esperar ou curar de saber o que ocorre nas demais.

A crescente dependência da Internet que a sociedade contemporânea revela, convida porém a que os princípios técnicos que a definem sejam incorporados de forma consistente nas políticas públicas, recusando o foco estreito do “ataque” a manifestações fáceis de observar, como a questão do spam ou do cibercrime.

Como escrito, por mais que aos decisores sejam estranhos os princípios técnicos que fundam a mais revolucionária tecnologia comunicacional do nosso tempo, e à comunidade técnica pareçam irrelevantes argumentos de legitimidade ou externalidade económica, vide quando parecem desprezar a melhor funcionalidade e eficiência do sistema, não se afigura desejável outra postura que não a do diálogo construtivo e da relação sólida, no plano nacional, mas sobretudo internacional, ou global, o que melhor atende à universalidade e abrangência do ecossistema e aos princípios acordados por consenso que o governam.

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CAPÍTULO 6

RFCs – REQUEST FOR COMMENTS / REQUEST FOR CHANGES

A documentação como ferramenta da governação

We believe in: rough consensus and running code

David Clark (1992: 19)

A recetividade ao que é novo e diferente, a partilha de ideias e de avanços consentidos pela investigação, a difusão em regime livre e aberto das metodologias prosseguidas e do registo público de resultados, estão longe de ser estranhas à comunidade académica, que há muito as adota e incentiva, mesmo correndo o risco de as ver desfiguradas.

É, porém, lento, excessivo em formalismos e pleno de complexidade o processo tradicional de validação e publicação de comunicações científicas e artigos de reflexão teórica, completando um ciclo de etapas múltiplas, de dinâmica na aparência insensível às pressões da contemporaneidade.

São outras as exigências da Internet e das redes conectadas. Chave do seu crescimento exponencial é a abertura, o intercâmbio de ideias e o acesso livre e irrestrito à documentação técnica, em particular às especificações dos protocolos que garantem a interoperabilidade das redes.

Uma frase – we believe in: rough consensus and running code – dita por David Clark em 1992, capta a preceito o caráter inovador do processo de criação e implementação de standards, adotado por pioneiros como Cerf, Kahn, Postel e pelo próprio Clark, perante a incapacidade de organizações como a ITU e a ISO em acompanhar o ritmo da evolução tecnológica.

Do novo credo disse Lessig (1999: 2) ter relevância por ser um “manifesto que define a nossa geração”, e Drake (1993) por “condensar a política de conectividade seguida no último quartel do século XX e ser ponto de partida para indagar a razão por que os contemporâneos descrevem o confronto entre a ISO e a Internet (OSI vs. TCP / IP) como a “guerra religiosa da Internet”.

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O dia 7 de Abril de 1969 assinala, entretanto, a publicação do RFC 1 e, para alguns, “o nascimento“ disso que hoje referenciamos por Internet” (Long, 2007). Titulado “Host Software”, tem a assinatura de Steve Crocker, investigador na UCLA, e inicia a série de memorandos técnicos, informais, concebidos para explanar e intercambiar ideias, ao ritmo e velocidade requeridos pelo ciberespaço.

Impressos inicialmente em papel e distribuídos por correio normal, redigidos

online e acedidos tempos mais tarde via FTP (File Transfer Protocol), os Request for Comments, também conhecidos por Request for Changes, estão hoje disponíveis na World Wide Web, numa infinidade de sítios e endereços 56.

Deles constam propostas, procedimentos e metodologias aplicáveis às tecnologias da Internet, servindo para abrir caminho às reflexões e contributos das comunidades envolvidas; após triagem e maturação, são consensualmente adotados como novos standards pela IETF, que lhes outorga a imprescindível validade técnica. Nenhum RFC é editado ou corrigido de forma direta, pelo que a numeração sequencial baliza os novos memorandos, o que permite registar historicamente as alterações introduzidas e manter vivo o devir tecnológico.

Com o tempo, os RFCs direcionaram-se para os standards de protocolos, o que explica que sejam vistos pela comunidade informática e produtora de standards como “documents of record”. Tal não significa que não haja RFCs informativos, elaborados enquanto textos de elucidação e apoio às diversas questões técnicas. Com a generalização do email e a facilidade e rapidez na troca de mensagens que autoriza, os RFCs passaram a ser subscritos por mais do que um autor, sendo irrelevante a respetiva origem ou filiação académica.

Bom exemplo é o RFC 2026, de Outubro de 1996, da autoria de Scott Bradner, da Universidade de Harvard. Titulado The Internet Standards Process –

Revision 3, descreve o processo e as etapas a observar pela comunidade Internet na standardização de protocolos. Torna obsoleto o RFC 1602 (IAB / IESG), de Março de

1994, tendo por seu turno sido alvo de atualizações sucessivas, a última das quais em Março de 2015, pelo RFC 7475 (Dawkins, 2015).

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Um índice temático dos 7804 RFCs até hoje publicados está disponível em https://www.rfc- editor.org/rfc-index.html

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119 Após referir a Internet como produto da “cooperação informal, internacional, entre redes autónomas, interconectadas, que operam a comunicação emissor-recetor pela adesão voluntária a protocolos abertos e a procedimentos definidos por standards Internet”, o memorando enuncia as etapas do processo de criação – apresentação, desenvolvimento, interação com a comunidade, teste e incorporação de resultados, adoção pela entidade responsável e publicação irrestrita – a respeitar de modo ordenado e sequencial.

Na prática, o processo complexifica-se face à dificuldade em a) criar especificações de qualidade técnica elevada, b) tomar em consideração os interesses de todas as partes envolvidas, c) estabelecer consensos na comunidade e d) avaliar a real utilidade de uma especificação para a comunidade. Objetivos a alcançar são, por seu lado, os da excelência técnica, a validação dos ensaios realizados, a produção de documentação clara, precisa e facilmente entendível, a abertura / transparência do processo e, por último, a sua efetiva oportunidade, o momento certo de resposta às necessidades sentidas.

Quanto aos procedimentos exigidos, o documento deixa claro que foram pensados para permitir em cada uma das etapas a “participação e os comentários de todas as partes”, seja em debates abertos, seja por consulta em diretórios online. Noutro plano, impõem a prévia avaliação e teste no domínio da interoperabilidade, a cargo de múltiplas entidades independentes e em ambientes com variado grau de exigência. Enfim, têm a flexibilidade indispensável para responder aos circunstancialismos que rodeiam todo o processo.

Instrumento de governação técnica, ao RFC veio mais tarde juntar-se a

mailing list, de adesão livre, se bem que especializada. Com dezenas de grupos de

trabalho, a IETF, que herdou de Jon Postel a editoria dos RFCs e a gestão centralizada da atribuição de números de protocolos, serve-se das mailing lists como ferramenta essencial de diálogo e esboço de novos protocolos. Reunido o consenso em torno de um

draft inicial, é ultimada a versão definitiva, no que constitui um método de trabalho que

não só potencia as capacidades da comunidade informática, como revela ser determinante para fazer evoluir uma Internet cada vez mais global.

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