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3 OS MÚLTIPLOS SENTIDOS DO ATO DE LER: OS QUADRINHOS E AS

3.2 A ARTE DE ‘CANTAR’ HISTÓRIAS: A NARRATIVA COMO ESPELHO DO

Imagem 28 – Branca de Neve encontra Sheherazade. Fonte: Fábulas:1001 noites. São Paulo: Pixel Media, 2007, v.3, [p. 44]

Na Imagem 28 trazemos o encontro da personagem Branca de Neve da Série Fábulas com a famosa contadora de histórias dos contos árabes As mil e uma noites – Sheherazade, significativa para introduzir nossa fala sobre as narrativas. Antes dos entrelaces conceituais a presença daquela que noite após noite foi capaz de encantar e adoçar até mesmo o coração do terrível Sultão com suas histórias. Aquela que é a síntese de como as histórias seduzem e transformam.

Se HQs são um tipo de narrativa, como analisá-las? Que tipos existem e qual o lugar dos quadrinhos neste universo? Barthes (2013) e Tzvan Todorov (2006) ao analisarem estruturalmente as narrativas trazem elementos esclarecedores sobre sua natureza e complexidade.

Sobre a variedade das narrativas Barthes nos diz que:

Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro lugar, uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias; esta presente no mito na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura (recorde-se a Santa Úrsula de Carpaccio), no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disto, sob estas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, e, todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há em parte alguma povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas, e frequentemente estas narrativas são apreciadas em comum por homens de culturas diferentes, e mesmo opostas; a narrativa ridiculariza a boa e a má literatura: internacional, trans-histórica, trans-cultural; a narrativa está aí como a vida. (BARTHES, 2013, p. 19, grifo nosso).

Podemos dizer então que existem não apenas muitos gêneros como suportes e formas de narrar. Se o mundo é povoado por narrativas porque não aproveitamos tal diversidade? Porque, no caso da CI especificamente, focar apenas no registro escrito não ficcional devidamente legitimado como saber cientifico “sério”? Vamos abordar mais verticalmente esta questão no capítulo sobre fontes de informação, mas podemos ver na fala de Barthes que os quadrinhos são uma forma de narrar (n)o mundo.

Propomo-nos a analisar uma narrativa quadrinística para exemplificar como ela pode ser considerada fonte de informação. Mas como proceder? Segundo Barthes o fazer analítico é uma tarefa complexa que deve levar em conta diversos elementos:

Diante da infinidade de narrativas, da multiplicidade de pontos de vista pelos quais se podem abordá-las (histórico, psicológico, sociológico, etnológico, estético, etc.), o analista encontra-se na mesma situação de Saussure, posto diante do heteróclito da

linguagem e procurando retirar da anarquia aparente das mensagens um princípio de classificação e um foco de descrição. (Op. Cit., p.20).

Não realizamos uma análise estruturalista, mas acreditamos ser importante a reflexão que Todorov faz ao aplicar esta abordagem à literatura:

Podemos, primeiramente, opor duas atitudes possíveis diante da literatura: uma atitude teórica e uma descritiva. A análise estrutural terá sempre um caráter essencialmente teórico e não descritivo; por outras palavras, o objetivo de tal estudo nunca será a descrição de uma obra concreta. A obra será sempre considerada como uma manifestação abstrata, da qual ela é apenas uma das realizações possíveis; o conhecimento dessa estrutura será o verdadeiro objetivo de uma análise estrutural. O termo estrutura tem pois aqui um sentido lógico não espacial.

Uma outra oposição nos permitirá delimitar melhor a posição crítica que nos preocupa. Se opusermos uma abordagem interna da obra literária a uma abordagem externa, a análise estrutural estará ao lado da interna (TODOROV, 2000, p. 80). Acrescenta ainda:

A análise estrutural é diferente de cada uma dessas duas atitudes. Não se satisfaz com uma pura descrição da obra, nem com sua interpretação em termos psicológicos, ou filosóficos. Em outros termos, a análise estrutural da literatura coincide (em grandes linhas) com a teoria da literatura, com a poética. Seu objeto é o discurso literário mais do que as obras literárias, a literatura virtual mais do que a literatura real. O objetivo desse estudo não é mais articular uma paráfrase, um resumo argumentado da obra concreta, mas propor uma teoria da estrutura e do funcionamento do discurso literário, apresentar um quadro dos possíveis literários, do qual as obras literárias existentes aparecem como casos particulares realizados. É preciso acrescentar imediatamente que, na prática, a análise estrutural visará também a obras reais: o melhor caminho para a teoria passa pelo conhecimento empírico preciso. Mas, essa análise descobrirá em cada obra o que esta tem com as outras (estudo dos gêneros, dos períodos, etc.), ou mesmo com todas as outras (teoria da literatura); ela não saberia dizer a especificidade individual de cada uma. Na prática, trata-se sempre de um movimento continuo de ida e volta, das propriedades literárias abstratas às obras individuais e inversamente. A poética e a descrição são, de fato, duas atividades complementares. (Op. Cit., p.80-81).

Nossa proposta é analisar a narrativa quadrinística, a partir dos aspectos cultural e psicológico/simbólico.

Todorov nos traz o conceito de intriga e propõe categorias para sua interpretação: O conceito literário (abstrato) que eu gostaria de discutir é o da intriga. Isso não quer dizer, evidentemente, que para mim a literatura se reduza unicamente à intriga. Penso antes que a intriga é uma noção que os críticos não apreciam e, por essa mesma razão ignoram. O leitor comum, pelo contrário, lê um livro antes de tudo como a narrativa de uma intriga; mas esse leitor ingênuo não se interessa pelos problemas teóricos. Meu objetivo será propor um certo número de categorias que podem servir àquele que identifica e descreve intrigas. Essas categorias juntar-se-ão pois àquele pobre vocabulário de que dispomos na análise da narrativa e que consiste nos termos: ação, personagens, reconhecimento, etc. (Op. Cit., p.84). A reflexão seguinte do autor nos traz as divisões da análise narrativa, dentro qual o nosso estudo se aproximaria do que ele chama de um estudo temático.

Essas três direções correspondem às três grandes subdivisões da análise da narrativa: estudo da sintaxe narrativa, estudo temático e estudo retórico. Chegados a esse ponto, podemos perguntarmos para que serve tudo isso? Essa análise nos revelou algo sobre as novelas em questão? Mas essa seria uma má pergunta. Nosso objetivo não é o conhecimento do Decameron (embora tal análise possa servir também a esse objetivo) mas o conhecimento da literatura ou, no caso preciso da intriga. As categorias da intriga aqui introduzidas podem permitir uma descrição mais avançada e mais precisa de outras intrigas. O objeto do estudo deve ser os modos narrativos, ou pontos de vista, ou as sequencias, e não tal ou tal conto, em si mesmo e por ele mesmo. (Op. Cit., p. 87, grifo nosso).

Dentre os tipos de narrativas Todorov nos traz aquele que ele chama de maravilhoso dos quais fazem parte os contos fada que são parte importante da narrativa que analisamos:

No caso do maravilhoso, os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas personagens nem no leitor implícito.

Não é uma atitude para com os acontecimentos contados que caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos. Os contos de fada e a ficção científica são algumas das variedades do maravilhoso; mas eles já nos levam longe do fantástico. (Op. Cit., p. 160, grifo nosso).

Eco em seu ensaio Leitura “Steve Canyon” (2008) procura:

fornecer um exemplo de recurso à experiência direta: e da leitura, o mais possível analítica e minuciosa de uma página de estória em quadrinhos, extrair-se-á um índice de problemas que abarcará todo o campo dos meios de massa, implicando numa definição metodológica dos vários tipos de pesquisa possível. (ECO, 2008, p. 28).

A proposta deste autor se aproxima bastante da análise estrutural, pois se propõe a analisar mais do que o enredo do quadrinho e apresenta uma análise mais ampla sobre os meios de massa, dos quais fazem parte as HQs, e seus elementos. Começa com a analise da mensagem da narrativa com base em seu contexto de criação destacando, inclusive, como os objetivos do criador do quadrinho se espelham na organização da história apresentada. Um olhar sobre a narrativa a partir de seu contexto de criação (perspectiva cultural) é o que fazemos, também, em nossa proposta analítica de Fábulas, referente o arco Lendas no Exílio, como veremos no próximo capítulo.

Eco delineia como o criador de Steve Canyon prepara a sua mensagem. Inicialmente nos apresenta a página inteira do quadrinho e depois parte para investigar cada enquadramento. Descreve como a estrutura de cada quadro é construída para causar o efeito desejado no leitor.

Imagem 29 - Página de Steve Canyon analisada por Eco. Fonte: Eco, Umberto. Apocalípticos e integrados, p.130.

No primeiro quadro introduz o personagem em um enquadramento cinematográfico.

Steve Canyon aparece aos poucos; primeiro de costas e só no meio da página conhecemos sua

aparência, mas antes disto o seu autor já havia delimitado traços de sua personalidade que o fazem simpático ao leitor. Como o cordial cumprimento trocado com o policial no quadro inicial.

Imagem 30 - Enquadramento da página de Steve Canyon analisada por Eco. Fonte: Eco, Umberto. Apocalípticos e integrados, p.131.

A proposta apresentada por Eco é exemplo de um processo de análise quadro a quadro que expõe em detalhes a narrativa e seu contexto de criação.

Naturalmente as narrativas são portadoras de simbolismos “universais” e/ou aqueles que refletem o estado de espírito de determinadas época e sociedade. Para que sejam apropriadamente analisadas é preciso que leitor, autor e texto compartilhem o mesmo contexto cultural.

Dentre os tipos de narrativa, além da quadrinística de modo geral, enfatizamos os contos de fada e os mitos de criação de que nos fala Marie-Louise von Franz (2003) – as narrativas fundadoras portadoras de aspectos simbólicos que contribuem de forma significativa para a nossa pesquisa, já que nosso objeto de análise é um quadrinho que traz os personagens e as histórias destes contos para o mundo contemporâneo.